São as meninas dos Correios, como numa dada altura eram as meninas dos Telefones. Sei do que falo, porque me dirijo amiúde ao posto mais próximo que tem um quadro de pessoal exclusivamente feminino. Compro selos, peço estampilhas de correio azul, levanto cartas registadas, atento nas últimas publicações. A menina lá está, fardada, com uns óculos tristes, um cabelo aloirado e desinteressante, um olhar irrequieto e envergonhado. Recebe simpatias com uma cara que ruboresce, enfrenta uma observação com desculpas que tendem para infinito.
Esta menina dos Correios é uma rapariga nova, pintada de forma displicente, que poderia usar um letreiro em forma de súplica: não olhem para mim, finjam que eu não existo. Chama-se Clotilde e é filha de uma professora primária e viúva precoce de um motorista da Câmara Municipal. Convicta da irreversibilidade do estado civil, a senhora devotou-se por inteiro aos meninos, a quem transmitiu valores que formam as mentes e salvam as almas. Clotilde cresceu entre um aviso de recepção e um luto permanente, com uma Mãe que assumiu um pensamento constante: para onde caminhas tu, com esse feitio tímido e invisível?
Um destes dias levaram-me a um recinto no lado oriental da cidade, recuperado para uma malta mais alternativa, desta que não se revê em lado nenhum da noite – ou que quer tudo em simultâneo. Celebrava-se o dia de África, pelo que o estabelecimento era o continente negro copiado e colado na União Europeia.
Numa das salas dançava-se o kizomba: pernas que cruzam, ancas que roçam lateralmente para depois encaixarem de frente; a sensualidade, os cheiros, o ambiente, os sotaques, as saudades das noites africanas, do pôr-do-sol e do espaço sem fim. À minha frente, uma mancha negra movimentava-se ao som de uma toada ritmada e lasciva. No meio da pista, com um menear irrepreensível do corpo, uns cabelos loiros a revelarem cuidado, e uma saia curta que mal tapava umas pernas esguias, vi a Clotilde, esquecida dos carimbos e das encomendas, da franquia e do registo, a descobrir uma África que só conhece da TV Cabo. Com ela, um jovem negro com mais de 1,90 que lhe percorre o corpo como um alfaiate afaga uma peça de caxemira: com um vagar sensorial, de mão aberta e a toda a extensão do pano.
Quando saí, ainda a vi beijando o Valter, empregado de uma oficina na margem sul - um beijo longo, húmido, carregado de desejo e erotismo, de fluidos trocados e cor de pele contrastante. O rapaz sente no corpo da Clotilde a geografia africana e mata as saudades com o tacto, porque a lonjura é uma cegueira, e mão que não toca é alma que não sente. Para ela, que tem o horizonte visual de um balcão ao nível dos olhos, o mecânico é um canal de viagens com interacção erótica.
No dia seguinte a jovem voltará a ser a mesma menina do Correio, tímida, envergonhada, com uma farda estilizada e um cabelo démodé. Almoçará jardineira de vitela com uma Mãe que fala de Deus às crianças – sendo que a inversa também é verdadeira. Engolirá, nostálgica, um pedaço de carne, porque é, também, de nostalgia que se faz a pergunta guardada num coração dividido: sabes fazer moamba, mamã?
Conheço-a bem. No fundo, no fundo, somos todos do mesmo bairro.
JdB
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