É atribuída a Virgina Woolf a ideia de que nada aconteceu, na verdade, até ser descrito ou registado. Talvez por isso eu tenha decidido encimar a minha carta com esta imagem do relatório anual da Childhood Cancer International, organização onde estou de alma e coração. Quem aparece na capa tem uma personalidade registada, com uma doença descrita. Existe, portanto.
Conheci a criança que está na capa a poucos dias de fazer um ano, a poucos dias de ser diagnosticada com um neuroblastoma. Tal como referi no meu texto de abertura, talvez a cabeça careca e os olhos sorridentes sejam uma metáfora para a forma como vivemos estes dramas: com um sentimento de desafio e esperança. Conheço a C., os pais, avós, tios e primos. Do M. só conheço uns avós; de outro M. só conheço o pai; da L. não conheço ninguém... Estes três casos, que me tocam mais de perto, estão na fotografia da capa, a fotografia da C. Não os conheço mas têm uma existência real, descrita, chorada tantas vezes. Neles, como em tantos outros, o desafio e a esperança vêm com proporções desiguais, sempre injustas, porque não devia haver desafio. O desafio de uns pais é amarem e educarem os filhos, não ensaiarem despedidas ou adquirirem um vocabulário médico para o qual o nosso coração não está preparado.
O pai do M., com quem falo há meses e que só vi uma vez, num fio de tarde choroso e difícil para os dois, está a despedir-se do filho que tem 11 anos; os pais da L, que não conheço, vão ter de despedir-se da filha que tem 11 anos, mas ainda não é o tempo para eles. Qual é o tempo para nos despedirmos de um filho? Qual é o vocabulário certo para dizer a um Pai para se despedir de um filho?
Há casos que me tocam mais, e não sei se sei porquê. É o caso do M. e do pai, que eu conheci porque alguém conhecia alguém que conhecia alguém... O caso toca-me, repito. Não porque me reveja nas semelhanças (nada é igual a nada) mas porque imagino (e só posso mesmo imaginar, porque ninguém é igual a ninguém) o que é despedirmo-nos de um filho de 11 anos: despedirmo-nos hoje, amanhã, depois de amanhã, para a semana, de todas as vezes que o vemos, lhe damos um beijo ou atiramos meigamente uma bola, porque tudo - a força como que se atira e a força com que se recebe - já enfraqueceu. Despedimo-nos sem limite de vezes ou de tempo porque, como diz a Bíblia, não sabemos quando. Vigiamos, não porque alguém surgirá, mas porque alguém partirá.
Um dia receberei uma mensagem ou um telefonema e não será por bons motivos. Será o M., cujo caso acompanhei comovido e (quase) mudo, como nos versos de Sebastião da Gama, mas sem sonho. Será a L., para quem me pediram que falasse com alguém em Paris, porque ainda não era chegada a hora para a mãe. Os olhos da C, que me fitam sorridentes e orientais, mantêm a ideia de desafio e esperança. Nuns casos, o desafio da continuidade; noutros casos a esperança de que se consiga construir uma história, porque só assim o drama será suportável.
J, em nome de todos os que te lembram, também tu protagonista de desafio e esperança.
2 comentários:
Interpelado me senti. O seu anjo será o motivo, a causa, de eu consultar quase todos os dias o seu blogue.
Abraço de estima e de profundo respeito,
do eao
Obrigado, eao
Nuns anos o 4 de Novembro é celebrado neste estabelecimento com um toque mais esperançoso, noutros anos o tom é mais prostrado. 2021 é ano de mais tristeza; talvez pelos casos com que me confronto, talvez porque seja uma altura de menor resistência anímica.
Volte sempre, que noutros dias haverá mais alegria.
JdB
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