31 janeiro 2023

Da importância do nome dos cães

Teresa Lima Alexandre nascera no Porto, em 1886, filha de um militar e de uma costureira. Manifestara desde cedo uma veia poética, tendo participado em concursos liceais e saraus de declamação para jovens promessas. Assinava os poemas como TLA e tinha uma devoção incansável pelo alexandrino, que lhe vinha, talvez, do apelido, cuja semelhança só podia ser um presságio. Publicou 12 poemas ao longo de 12 meses e retirou-se de cena. Não podia ser de outra forma, porque cada verso também só tinha 12 sílabas métricas; e Jesus doze apóstolos, afirmava ela, como se entre os seguidores de Cristo e o alexandrino houvesse uma ligação cósmica por explicar.

Aos 25 anos, vítima de uma viuvez precoce, viu-se herdeira de dois cães pequenos, de uma moradia com jardim e de um convite para professora primária da escola local. Foi aí que conheceu o Pedro, um rapaz magro, de olhos tristes, voz cansada e 7 anos de idade. Afeiçoou-se ao miúdo a quem oferecia explicações, folhinhas com poesia e cubos de marmelada. O rapaz visitava-a em casa e brincava com o casal de cães, dando-lhes comida e afagos, deitando-se ao lado deles no relvado, deixando-se lamber e mordiscar. Num dia de Outubro tardio, já com o sol a pôr-se no meio de uma grande claridade, disse à professora que fazia um naperon numa cadeira de baloiço: "este cão não é grande!" A professora levantou os olhos, imobilizou o vaivém e respondeu-lhe ternamente, os olhos húmidos de um triste dia: "grande, grande era a Cidade", referindo-se, com nostalgia, a uma Grand Danois que lhe havia sido oferecida em criança. Pedro teve um sobressalto que a professora não conseguira explicar, mas que a perturbou. O naperon requeria atenção e a cadeira exigia impulso, pelo que o mundo continuou na sua rotina e os cães na brincadeira. Mas Pedro fixaria os olhos pequeninos num horizonte demasiado vasto para um rapaz daquela idade.

Teresa Lima Alexandre foi envelhecendo até à idade da reforma. Deixou de ver o Pedro, aquele rapaz magro, de olhos tristes e voz cansada que lhe iluminara os dias curtos de Outono. Continuou a viver no Porto, na sua moradia com jardim, alimentando-se de poesia, de lembranças - e de uma francesinha esporádica. Um dia, sentada em casa, passou os olhos por um desgraçado Coração de Jesus trespassado pelo pecado humano e por um vidro partido. Na telefonia, o locutor anunciava a estreia: Amália Rodrigues cantando Povo que Lavas no Rio, na melodia do Fado Vitória. Quando a fadista começou a cantar, Teresa, a devota do alexandrino e que assinava TLA, assentou a atenção, sem qualquer motivo aparente, numa fotografia de Pedro deitado no jardim com os cães, vestido com uma camisola verde e uma boina de marujo. Foi então que ouviu um verso que a comoveu de forma dolorosa: aromas de urze e de lama / dormi com eles na cama / tive a mesma condição. Imaginou-se-se trespassada por uma lança, não de maldade, mas de memória. Antes de se dobrar como um soluço sentiu ainda a presença do Urze e da Lama, o casal de caniches com que Pedro brincava no jardim. 

JdB                 

4 comentários:

ACC disse...

O que eu tinha saudades destas suas historias.

Anónimo disse...

Acredite nos meus instintos. JdB é um muito bom contador de histórias. Tem vindo a perder a vergonha.

Writing is not necessarily something to be ashamed of — but do it in private and wash your hands afterwards.

Abraço

JdB disse...

ACC: grato pela visita (que imagino com a frequência da francesinha) e pelo comentário.

Anónimo: agradeço também a sua visita frequente e os seus comentários desgraçadamente por responder. A citação em inglês é sua ou de outrém? Muito boa!

Anónimo disse...

A citação é de Robert Anson Heinlein.

Abraço

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