02 janeiro 2012

Vai um gin do Peter’s?


Na Gulbenkian, está patente até 8 de Janeiro a segunda parte da Exposição de Naturezas-Mortas na Europa(1), de 1840 a 1955, dando continuidade à exposição de há um ano e meio, referida no gin de 24 de Março de 2010. Desta vez, os empréstimos vêm dos museus mais modernos, como o MoMA ou a Tate, para além de uma imensidão de outras proveniências, onde se salienta o Museu d’Orsay e inúmeras colecções privadas, totalizando 37 instituições internacionais.

É um luxo ter em Lisboa 93 obras de 70 artistas, onde marcam presença Van Gogh, Picasso, Cézanne, Monet, Gauguin, Renoir, Fantin-Latour, Dali, Duchamps, Margritte, Matisse, Le Corbusier, George Braque, Morandi, Bonnard, Emil Nolde, além dos portugueses: Mª Helena Vieira da Silva, Amadeo de Souza Cardoso, Mário Eloy e Eduardo Viana.

Lembrando Alice no País das Maravilhas, entramos na exposição através de um espelho afunilado, a permitir-nos franquear um novo horizonte… Experimentem atravessar pelo vértice do triângulo espelhado, logo à entrada, e assim deslizar para dentro do ponto de fuga de um espelho colocado em perspectiva! Num certo sentido, espera-nos um jogo, porque as naturezas-mortas escondem charadas e mensagens cifradas que, a partir do século XIX, constituem também ensaios de novas concepções de arte, ignorando a força da gravidade e outras evidências na percepção da realidade.

«Natureza-Morta com Pote de Gengibre e Beringelas», Paul Cézanne, 1890-1894

The Metropolitan Museum of Art/Art Resource/Scala, Florence


A exposição está organizada por grupos temáticos, praticamente a coincidir com a sequência cronológica das telas, uma vez que as afinidades na pintura correspondem a círculos de pintores, que rapidamente dão lugar a novas gerações, novas fracturas conceptuais e novas correntes artísticas. A evolução galopante do período em exposição – 1840 a 1955 – reflecte na pintura a mesma progressão alucinante que observamos noutros domínios, a começar pela tecnologia e industrialização. Na sociedade assistimos a convulsões políticas e económicas, traçando novas fronteiras e fazendo emergir novos países. São tempos conturbados, onde o próprio mapa-mundi é redesenhado múltiplas vezes.

O percurso das telas patenteia bem as mutações de ideias e mentalidades em curso durante aqueles anos efervescentes, do meio do século XIX até ao pós-guerra, já em pleno século XX. Na pintura experimentam-se formas de expressão inovadoras, que extrapolam a tela, transmigrando para materiais de uso corrente, agora elevados à condição de obra-de-arte… ao menos para os artistas e seus seguidores. Frequentemente, pretende-se interpelar e chocar. Deparamo-nos com a: «Crise do objecto, sonhos e pesadelos» (um dos temas) ou «Exílios e (…) o eu interior» (outro dos temas). O subjectivismo e consequente primado do artista ganham foros de intocabilidade. O dogmatismo transita da velha elite para os artistas. Por exemplo, Duchamp transplanta utensílios domésticos directamente do seu habitat para os pedestais dos museus. Despoja-os da função utilitária para os converter em instalação artística, certificada pela sua chancela de pintor consagrado. Em concreto, a escola surrealista procura evadir-se do dia-a-dia, como o demonstra o telefone de Dali (1936), em forma de lagosta branca e fresca, acabada de sair das águas. Acintosamente desconfortável, com as suas tenazes atrevidas e acutilantes. Muito irónico e provocador, ou não fosse de Dali, embora as naturezas-mortas tenham uma carga humorística e simbólica bem mais intensa do que possa parecer à primeira vista, como foi sobejamente referido no gin anterior, relativo à Primeira Parte desta mostra sobre Naturezas-Mortas (Mar.2010).   

“O mundo necessita de mais fantasia. A nossa civilização é muito mecânica.
Podemos converter o fantástico em real, que então se torna mais real que o que existe na realidade” Salvador Dalí, 1940


Das muitas obras que valeria a pena mencionar, segue apenas uma alusão sumária a algumas, sem seguir a linha temática da exposição.

A tela que é capa de catálogo (era condição de empréstimo) pertence a Van Gogh (1853-1890) e é quase desconhecida do público, por fazer parte de uma colecção sediada em Zurique. A candura luminosa do pintor holandês está ali por inteiro. De uma beleza calma e meiga. Van Gogh revela-nos uma natureza que parece saída das aclamações ecológicas de S.Francisco de Assis, um apaixonado pela criação: o irmão sol, a irmã terra, o irmão lobo… Aqui, vemos o irmão castanheiro em flor, pintado no ano da sua morte. Sempre sob a luz vibrante do pintor, a irradiar uma alegria límpida e suave, talvez entre o céu e a terra…

«Ramos de Castanheiro em flor», Van Gogh, 1890.
Fundação E.G. Bührle Collection, Zurique. 


Uma das telas de referência, logo no início, é assinada por Cézanne e é precursora do modernismo (1877-78). Em versão ainda experimental, ensaia a inversão do efeito de perspectiva, testa um jogo de sombras e adopta um cromatismo ou um estudo de formas que se afastam da representação directa da realidade visível. Parece repudiar-se a expressão naturalista. O conceito de natureza-morta subverte-se, na senda da própria alteração do paradigma da pintura, a demarcar-se da reprodução acrítica da realidade.


«Natureza-Morta com Maças», Paul Cézanne, 1878


Com o surgimento da fotografia, os pintores deixam ao fotógrafo a representação próxima da percepção comum. Não por acaso, ao centro da sala impõe-se uma antecâmara rectangular com fotografias dos primeiros tempos, intitulada – «As próprias coisas: o choque da fotografia». A mais antiga do conjunto data de 1839! Uma outra, mostrando um cacho de uvas sumarentas (1864), está em despique com uma natureza-morta de uvas igualmente carnudas, de Coubert (1871). Até mais apetitosas que as da fotografia – um feito extraordinário para as possibilidades de representação da pintura!  



A meio da sala, num ecrã gigante correm 3 curta-metragens do início do século XX: «Filme é ritmo» (1921) de Hans Richter; «Le retour de la raison» (1923) de Man Ray; e «Ballet Mécanique» (1924) de Fernand Léger e Dudlay Murphy, numa sequência gráfica de objectos animados a formar padrões multiformes, que mostram bem quanto a focagem da arte explora novas perspectivas, em resposta aos desafios lançados pela Revolução Industrial.

O fascínio pela máquina, pela tecnicidade e pelo urbanismo estão na ordem do dia. Em Portugal, o heterónimo de Pessoa, Álvaro de Campos, é porta-voz desse novo mundo que encanta os ocidentais e moderniza as suas cidades. A arquitectura torna-se uma das expressões artísticas preferidas do poder político, que já não se contenta com imortalizações em pequenas imagens gravadas na tela ou na pedra. A escala mediática aumenta substancialmente. A produção em massa oferece oportunidades amplificadas e distribui riqueza por um novo segmento da sociedade, em rápida ascensão.

As experimentações da paleta de tintas e o estudo (por vezes, mostruário) das volumetrias, que é apanágio das naturezas-mortas, mantêm-se, embora no século XIX se combinem tons e formas inimagináveis um século antes. Assim acontece com uma tela de Gauguin, num diálogo extraordinário entre um leque carregado de verdes, azuis e encarniçados e umas maçãs muito redondas, nas mesmas tonalidades.

Picasso tem ali várias telas. Uma destaca-se como réplica mediterrânica do classicismo das naturezas-mortas de Chardin. No espanhol, há sol, um céu colorido e a luz clara, escancarada, do Sul da Europa. Tudo com a galhardia característica do pintor.

As duas telas de Juan Gris, sobretudo a «Vista da Baía» (1921), têm uma beleza tocante pelos tons complementares e pela criatividade nas perspectivas invertidas ou na exploração de efeitos de zoom ao contrário.

A «Natureza-Morta com Garrafa»(1912), de Umberto Boccioni, arrumada na zona do Modernismo, destaca-se por uma espiral de verdes luminosos, espectacular. Um autêntico bailado cromático, com entradas de luz em triângulo, estrategicamente situadas no topo, à laia de holofotes.

O «Quadrado Azul» (1916) de Eduardo Viana é algo enigmático. A profusão de cores da tela, dominada por uma flor esplendorosa em tom de sangue, não tira protagonismo ao pequeno quadrado que inspira o título da obra e se situa no topo à esquerda, insignificante mas na primeira linha de leitura. Enquanto a Europa padecia as atrocidades da Primeira Guerra Mundial, o pintor trabalhava afincadamente no seu atelier, em Vila do Conde, para onde se retirara com o casal Delaunay. Note-se que apesar de Portugal ter enviado contingentes para a Guerra, o país estava longe do horror das trincheiras, mais ainda a bonita Vila situada na foz do rio Ave.     

«Quadrado Azul» (1916) de Eduardo Viana
São lindas as dálias fuchsia (1923) de Matisse, a sobressair a custo de um papel de parede equivocamente floral, provocando confusão na leitura diferenciada dos vários planos. Um exercício de percepção complexo e deliberadamente intrincado.

Ao fundo da sala, à esquerda, está afixado um painel de datas a cruzar quatro tipos de informação complementares, apresentadas em linhas paralelas: a cronologia das telas expostas, os acontecimentos mundiais, as grandes ocorrências em Portugal e os eventos culturais preponderantes. Desta forma, contextualiza-se o ambiente em que as obras foram concebidas. Isto permite observar a convergência de fenómenos que vão urdindo as grandes mudanças conceptuais em curso. Por exemplo, logo após a 1ª exposição do Impressionismo (1874), Cézanne pinta a tela precursora do modernismo (1877-78). Claro que quase tudo acontece em Paris, epicentro das artes ocidentais, até à Segunda Guerra.

Uma pintura do britânico William Scott (1947) mostra-nos uns peixes de reflexos azuis, muito esguios, pousados em folhas pardas de jornal, numa mesa em tons terra, esvaziada. Uma expressão forte do depauperamento das grandes potências europeias no final da Segunda Guerra Mundial, inclusive das vencedoras.

A componente de sedução ainda é evidente nas Naturezas-Mortas. Tal como nos séculos anteriores, perduram as poses de objectos e o afã / labor das formas para nos deliciarmos entre o colorido intenso das porcelanas ou a claridade dos vidros, a riqueza de volumetria dos instrumentos musicais ou do mobiliário e até a comida numa profusão de frutas, caça, marisco, queijos, bebidas, doces. A novidade desta Segunda Parte (1840-1955) reside na austeridade dos objectos em foco, intencionalmente menos resplandecentes, numa proletarização nítida da arte. Não por acaso, passa a evitar-se a sumptuosidade dos cristais, abundando antes as garrafas opacas ou os líquidos baços, as peças de mobiliário pobres e um menu simplificado, sinal de alguma penúria. Tudo bem menos apetitoso. As mesas de festa dão lugar ao quotidiano, assim como os heróis épicos dão lugar aos protagonistas comuns. Nos ateliers, o campo de experimentação investe sobretudo em objectos de linhas indefinidas e de coloridos excêntricos, prescindindo dos sinais de ostentação, de status, que eram apreciados no passado.

De facto, a exposição propõe-nos uma leitura interpelativa da história contemporânea, na óptica da arte. Curiosamente, não é uma abordagem menos incisiva do que o estudo clássico da história, baseado na sucessão de acontecimentos considerados de referência. Assim, recomendo vivamente esta viagem no tempo, através do olhar dos artistas.

A concluir, desejo a todos um Feliz Ano Novo, com a ousadia espantosa de Camus – a forma mais saudável (creio!) de olhar o tempo de vida que nos espera: «Sejam realistas, peçam o impossível!» já em 2012.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) A Perspectiva das Coisas -  A Natureza-Morta na Europa. Séculos XIX-XX, patente até  
       8.Janeiro.2012.  Galeria de Exposições da Sede.
        Horário: 10h-20h, estando aberto até às 23h nos três últimos dias.
        Preço: 5€. Óptima documentação: folheto gratuito e catálogo à venda
 na livraria.

O objecto imóvel ainda posa para o pintor, mas em versão menos esplendorosa.
«Natureza Morta com melão», Monet, 1872 

   
 

2 comentários:

Anónimo disse...

Belo comentário. A exposição ainda não vi. Conto vê-la antes que se vá embora. Gostei muito da exposição anterior, não sei se gostarei tanto desta até porque já vi muitas, muitas obras deste género espalhadas por vários museus. As fotografias: belíssimas. Sobretudo as cores fascinam-me. Mas o máximo dos máximos é a frase do Camus, um dos meus escritores preferidos: sejam realistas, peçam o impossível! Bjs. pcp

Anónimo disse...

Cá para nós, pcp, gostei ainda mais da Primeira Parte desta Mostra, que esteve há c. de um ano na Gulbenkian. Bjs gds, MZ

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