Na Gulbenkian, está patente até 8 de
Janeiro a segunda parte da Exposição de
Naturezas-Mortas na Europa(1), de 1840 a 1955, dando continuidade à exposição de há um ano e meio, referida no gin de 24
de Março de 2010. Desta vez, os empréstimos vêm dos museus mais modernos, como
o MoMA ou a Tate, para além de uma imensidão de outras proveniências, onde se
salienta o Museu d’Orsay e inúmeras colecções privadas, totalizando 37
instituições internacionais.
É um luxo ter em Lisboa 93 obras de
70 artistas, onde marcam presença Van Gogh, Picasso, Cézanne, Monet, Gauguin,
Renoir, Fantin-Latour, Dali, Duchamps, Margritte, Matisse, Le Corbusier, George Braque, Morandi, Bonnard, Emil Nolde, além dos
portugueses: Mª Helena Vieira da Silva, Amadeo de Souza Cardoso, Mário Eloy e
Eduardo Viana.
Lembrando Alice no País das Maravilhas, entramos na exposição através de um
espelho afunilado, a permitir-nos franquear um novo horizonte… Experimentem atravessar
pelo vértice do triângulo espelhado, logo à entrada, e assim deslizar para dentro do ponto de fuga de um espelho colocado
em perspectiva! Num certo sentido, espera-nos um jogo, porque as
naturezas-mortas escondem charadas e mensagens cifradas que, a partir do século
XIX, constituem também ensaios de novas concepções de arte, ignorando a força
da gravidade e outras evidências na
percepção da realidade.
«Natureza-Morta com Pote de Gengibre e Beringelas», Paul
Cézanne, 1890-1894
The Metropolitan Museum of Art/Art Resource/Scala, Florence
A exposição está organizada por grupos
temáticos, praticamente a coincidir com a sequência cronológica das telas, uma
vez que as afinidades na pintura correspondem a círculos de pintores, que
rapidamente dão lugar a novas gerações, novas fracturas conceptuais e novas
correntes artísticas. A evolução galopante do período em exposição – 1840 a
1955 – reflecte na pintura a mesma progressão alucinante que observamos noutros
domínios, a começar pela tecnologia e industrialização. Na sociedade assistimos
a convulsões políticas e económicas, traçando novas fronteiras e fazendo
emergir novos países. São tempos conturbados, onde o próprio mapa-mundi é
redesenhado múltiplas vezes.
O percurso das telas patenteia bem as
mutações de ideias e mentalidades em curso durante aqueles anos efervescentes,
do meio do século XIX até ao pós-guerra, já em pleno século XX. Na pintura experimentam-se
formas de expressão inovadoras, que extrapolam a tela, transmigrando para
materiais de uso corrente, agora elevados à condição de obra-de-arte… ao menos para
os artistas e seus seguidores. Frequentemente, pretende-se interpelar e chocar.
Deparamo-nos com a: «Crise do objecto, sonhos e pesadelos» (um dos temas) ou
«Exílios e (…) o eu interior» (outro dos temas). O subjectivismo e consequente
primado do artista ganham foros de intocabilidade. O dogmatismo transita da
velha elite para os artistas. Por exemplo, Duchamp transplanta utensílios domésticos
directamente do seu habitat para os pedestais dos museus. Despoja-os da função
utilitária para os converter em instalação
artística, certificada pela sua chancela de pintor consagrado. Em concreto,
a escola surrealista procura evadir-se do dia-a-dia, como o demonstra o
telefone de Dali (1936), em forma de lagosta branca e fresca, acabada de sair
das águas. Acintosamente desconfortável, com as suas tenazes atrevidas e acutilantes.
Muito irónico e provocador, ou não fosse de Dali, embora as naturezas-mortas
tenham uma carga humorística e simbólica bem mais intensa do que possa parecer
à primeira vista, como foi sobejamente referido no gin anterior, relativo à
Primeira Parte desta mostra sobre Naturezas-Mortas (Mar.2010).
“O mundo necessita de mais fantasia. A
nossa civilização é muito mecânica.
Podemos converter o fantástico em real, que
então se torna mais real que o que existe na realidade”
Salvador Dalí, 1940
Das muitas obras que valeria a pena
mencionar, segue apenas uma alusão sumária a algumas, sem seguir a linha temática
da exposição.
A tela que é capa de catálogo (era
condição de empréstimo) pertence a Van Gogh (1853-1890) e é quase desconhecida
do público, por fazer parte de uma colecção sediada em Zurique. A candura luminosa
do pintor holandês está ali por inteiro. De uma beleza calma e meiga. Van Gogh revela-nos
uma natureza que parece saída das aclamações ecológicas de S.Francisco de Assis, um apaixonado pela criação: o
irmão sol, a irmã terra, o irmão lobo… Aqui, vemos o irmão castanheiro em flor, pintado no ano da sua morte. Sempre sob a luz
vibrante do pintor, a irradiar uma alegria límpida e suave, talvez entre o céu
e a terra…
«Ramos de Castanheiro em flor», Van Gogh, 1890.
Fundação E.G. Bührle Collection, Zurique.
Uma das telas de referência, logo no
início, é assinada por Cézanne e é precursora do modernismo (1877-78). Em
versão ainda experimental, ensaia a inversão do efeito de perspectiva, testa um
jogo de sombras e adopta um cromatismo ou um estudo de formas que se afastam da
representação directa da realidade visível. Parece repudiar-se a expressão
naturalista. O conceito de natureza-morta subverte-se, na senda da própria
alteração do paradigma da pintura, a demarcar-se da reprodução acrítica da realidade.
«Natureza-Morta com Maças», Paul Cézanne, 1878
Com o surgimento da fotografia, os
pintores deixam ao fotógrafo a representação próxima da percepção comum. Não
por acaso, ao centro da sala impõe-se uma antecâmara rectangular com
fotografias dos primeiros tempos, intitulada – «As próprias coisas: o choque da
fotografia». A mais antiga do conjunto data de 1839! Uma outra, mostrando um
cacho de uvas sumarentas (1864), está em despique com uma natureza-morta de
uvas igualmente carnudas, de Coubert (1871). Até mais apetitosas que as da
fotografia – um feito extraordinário para as possibilidades de representação da
pintura!
A meio da sala, num ecrã gigante
correm 3 curta-metragens do início do século XX: «Filme é ritmo» (1921) de
Hans Richter; «Le retour de la raison» (1923) de Man Ray; e «Ballet Mécanique»
(1924) de Fernand Léger e Dudlay Murphy, numa sequência gráfica de objectos
animados a formar padrões multiformes, que mostram bem quanto a focagem da arte
explora novas perspectivas, em resposta aos desafios lançados pela
Revolução Industrial.
O fascínio pela máquina, pela
tecnicidade e pelo urbanismo estão na ordem do dia. Em Portugal, o heterónimo
de Pessoa, Álvaro de Campos, é porta-voz desse novo mundo que encanta os
ocidentais e moderniza as suas cidades. A arquitectura torna-se uma das
expressões artísticas preferidas do poder político, que já não se contenta com
imortalizações em pequenas imagens gravadas na tela ou na pedra. A escala
mediática aumenta substancialmente. A produção em massa oferece oportunidades amplificadas
e distribui riqueza por um novo segmento da sociedade, em rápida ascensão.
As experimentações da paleta de
tintas e o estudo (por vezes, mostruário) das volumetrias, que é apanágio das
naturezas-mortas, mantêm-se, embora no século XIX se combinem tons e formas inimagináveis
um século antes. Assim acontece com uma tela de Gauguin, num diálogo
extraordinário entre um leque carregado de verdes, azuis e encarniçados e umas
maçãs muito redondas, nas mesmas tonalidades.
Picasso tem ali várias telas. Uma
destaca-se como réplica mediterrânica do classicismo das naturezas-mortas de
Chardin. No espanhol, há sol, um céu colorido e a luz clara, escancarada, do
Sul da Europa. Tudo com a galhardia característica do pintor.
As duas telas de Juan Gris, sobretudo
a «Vista da Baía» (1921), têm uma beleza tocante pelos tons complementares e
pela criatividade nas perspectivas invertidas ou na exploração de efeitos de
zoom ao contrário.
A «Natureza-Morta com Garrafa»(1912),
de Umberto Boccioni, arrumada na zona do Modernismo,
destaca-se por uma espiral de verdes luminosos, espectacular. Um autêntico bailado
cromático, com entradas de luz em triângulo, estrategicamente situadas no topo,
à laia de holofotes.
O «Quadrado Azul» (1916) de Eduardo
Viana é algo enigmático. A profusão de cores da tela, dominada por uma flor
esplendorosa em tom de sangue, não tira protagonismo ao pequeno quadrado que
inspira o título da obra e se situa no topo à esquerda, insignificante mas na
primeira linha de leitura. Enquanto a Europa padecia as atrocidades da Primeira
Guerra Mundial, o pintor trabalhava afincadamente no seu atelier, em Vila do
Conde, para onde se retirara com o casal Delaunay. Note-se que apesar de
Portugal ter enviado contingentes para a Guerra, o país estava longe do horror
das trincheiras, mais ainda a bonita Vila situada na foz do rio Ave.
«Quadrado Azul» (1916) de
Eduardo Viana
São lindas as dálias fuchsia (1923)
de Matisse, a sobressair a custo de um papel de parede equivocamente floral,
provocando confusão na leitura diferenciada dos vários planos. Um exercício de
percepção complexo e deliberadamente intrincado.
Ao fundo da sala, à esquerda, está
afixado um painel de datas a cruzar quatro tipos de informação complementares,
apresentadas em linhas paralelas: a cronologia das telas expostas, os acontecimentos
mundiais, as grandes ocorrências em Portugal e os eventos culturais preponderantes.
Desta forma, contextualiza-se o ambiente em que as obras foram concebidas. Isto
permite observar a convergência de fenómenos que vão urdindo as grandes
mudanças conceptuais em curso. Por exemplo, logo após a 1ª exposição do
Impressionismo (1874), Cézanne pinta a tela precursora do modernismo (1877-78).
Claro que quase tudo acontece em Paris, epicentro das artes ocidentais, até à
Segunda Guerra.
Uma pintura do britânico William
Scott (1947) mostra-nos uns peixes de reflexos azuis, muito esguios, pousados
em folhas pardas de jornal, numa mesa em tons terra, esvaziada. Uma expressão forte
do depauperamento das grandes potências europeias no final da Segunda Guerra
Mundial, inclusive das vencedoras.
A componente de sedução ainda é
evidente nas Naturezas-Mortas. Tal como nos séculos anteriores, perduram as
poses de objectos e o afã / labor das formas para nos deliciarmos entre o colorido intenso das porcelanas
ou a claridade dos vidros, a riqueza de volumetria dos instrumentos musicais ou
do mobiliário e até a comida numa profusão de frutas, caça, marisco, queijos,
bebidas, doces. A novidade desta Segunda Parte (1840-1955) reside na
austeridade dos objectos em foco, intencionalmente menos resplandecentes, numa proletarização nítida da arte. Não por
acaso, passa a evitar-se a sumptuosidade dos cristais, abundando antes as
garrafas opacas ou os líquidos baços, as peças de mobiliário pobres
e um menu simplificado, sinal de alguma penúria. Tudo bem menos apetitoso. As
mesas de festa dão lugar ao quotidiano, assim como os heróis épicos dão lugar
aos protagonistas comuns. Nos ateliers, o campo de experimentação investe
sobretudo em objectos de linhas indefinidas e de coloridos excêntricos,
prescindindo dos sinais de ostentação, de status, que eram apreciados no
passado.
De facto, a exposição propõe-nos uma leitura interpelativa da história
contemporânea, na óptica da arte. Curiosamente, não é uma abordagem menos
incisiva do que o estudo clássico da história, baseado na sucessão de
acontecimentos considerados de referência. Assim, recomendo vivamente esta viagem no tempo, através do olhar dos
artistas.
A concluir, desejo a todos um Feliz
Ano Novo, com a ousadia espantosa de Camus – a forma mais saudável (creio!) de
olhar o tempo de vida que nos espera: «Sejam realistas, peçam o impossível!» já em
2012.
Maria Zarco
(a preparar o
próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) A
Perspectiva das Coisas - A Natureza-Morta na Europa. Séculos XIX-XX,
patente até
8.Janeiro.2012. Galeria de Exposições da Sede.
Horário: 10h-20h, estando aberto até às 23h nos três últimos dias.Preço: 5€. Óptima documentação: folheto gratuito e catálogo à venda na livraria.
O objecto imóvel ainda posa para o pintor, mas
em versão menos esplendorosa.
«Natureza Morta com melão», Monet, 1872
2 comentários:
Belo comentário. A exposição ainda não vi. Conto vê-la antes que se vá embora. Gostei muito da exposição anterior, não sei se gostarei tanto desta até porque já vi muitas, muitas obras deste género espalhadas por vários museus. As fotografias: belíssimas. Sobretudo as cores fascinam-me. Mas o máximo dos máximos é a frase do Camus, um dos meus escritores preferidos: sejam realistas, peçam o impossível! Bjs. pcp
Cá para nós, pcp, gostei ainda mais da Primeira Parte desta Mostra, que esteve há c. de um ano na Gulbenkian. Bjs gds, MZ
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