Entrei em casa de Josephine pela primeira vez já no final de Outubro. Gatteville
le Phare estava quase deserta, açoitada por um vento norte, húmido, forte e
constante, oriundo da escuridão do Canal
da Mancha. No céu, tapado com um manto espesso de nuvens baixas e negras que pressagiava chuva, não se via uma estrela, Do mar, uma negritude persistente,
vencida esparsamente pelo ciclo ritmado e luminoso do farol local. Perdi-me
numa deambulação desorientada pela vila deserta até descortinar o meu destino.
À porta, dois vasos grandes com flores locais, despidas na sua nudez outonal.
Por cima, um candeeiro baloiçando desenfreado, espalhando uma luz errática pelo
alpendre. Tudo parecia triste e lúgubre à excepção de um tapete grande, cor-de-rosa,
em formato de meia lua, onde se tinham desenhado rosas num tom desmaiado mas bonito. Acanhei-me
de limpar os pés ao único elemento que derramava um pouco de alegria naquela tristeza nocturna.
(Antoine LeBon, Um Outono no fim do mundo, 1958, Edições Largo da Boa-Hora)
Um capacho será apenas um capacho? Num certo sentido, o da procura individual do equilíbrio das formas e das cores que condiciona as opções e revela escolhas, nada dirá mais sobre o mistério de uma casa onde se penetra pela primeira vez do que o capacho à entrada. Noutra perspectiva, a que é objecto desta reflexão, o capacho tem uma dimensão figurativa que congrega mitos à escala global, como se fossemos todos iguais, independentemente de latitudes, geografias humanas, divindades adoradas.
A definição encontrada
nos dicionários é manifestamente curta, reduzindo o artigo em apreço ao
utilitarismo das mercadorias vulgares: tapete de esparto a
que se limpa o calçado. Numa tentativa de redenção da secura linguística, o dicionário ainda
nos proporciona um sentido figurado para a palavra – pessoa servil. Não obstante, a conotação excessivamente negativa destas
definições remete o artigo para um estatuto que o impede, algum dia, de alcandorar-se
a objecto de estudo e reflexão.
Há uma limitação
intelectual – talvez seja correcto dizer-se sensorial – na redução do capacho à sua funcionalidade mais
estrita. Na soleira de uma porta o capacho é mais do que um objecto, devendo
ser visto como a representação material de uma fronteira que liga, numa
primeira fase, o exterior ao interior e, numa fase posterior, a sua inversa.
A limpeza dos sapatos
num capacho é mais do que o esfregar intenso, ritmado e em sentidos opostos de
uma sola numa superfície rugosa, com o objectivo de remover sujidade
indesejável. Este acto, valorizado nos dias de hoje por quem procura apenas uma
visão asséptica da vida, tem uma conotação profunda e que nos remete
para dimensões mais vastas do nosso colectivo. Anne Deschamps, uma francesa dos finais do séc. XIX, esposa de um missionário escocês no oriente longínquo, escreveria
a um dos seus irmãos:
(...) todos limpam os sapatos num tapete à entrada, ainda que depois se
descalcem para entrar. John explicou-me o simbolismo: “entra-se num lar e
deixamos o que é exterior no exterior. Entra-se puro, sem influências externas
que prejudiquem a harmonia portas adentro”.
Muitos exemplos
poderiam ser dados para justificar este
desejo de promover o capacho, artigo tão profusamente maltratado, a um estatuto
mais condigno com a sua verdadeira raison
d’être. A natureza forçosamente
curta deste pequeno texto não o permite, no entanto. Não podemos, apesar das
limitações de espaço, deixar de referir o significado do capacho no movimento
de saída, isto é, do interior doméstico para o exterior mundano. Culturas há –
e referimos novamente Anne Deschamps – que olham este movimento de forma
diversa.
À saída os habitantes locais contornam o capacho, não porque este
esteja sujo, mas porque está repleto de tudo o que para eles significa
desequilíbrio da Terra, dos elementos, da sua ligação ao divino – e que pode trazer infortúnios
indomáveis.
Deixei a citação da
Bíblia – o livro dos livros – para o fim, porque é revelador de um outro ponto de vista. Repare-se na cultura substancialmente
diferente da que Anne Deschamps encontrou no oriente, onde o seu marido revelava Jesus aos pagãos:
Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser um cajado:
nem
pão, nem alforge, nem dinheiro no cinto;
que fossem calçados com sandálias,
e
não levassem duas túnicas.
E disse-lhes também:
«Em qualquer casa em que
entrardes ficai nela até partirdes dali.
E se não fordes recebidos numa localidade,
se
os habitantes não vos ouvirem,
ao sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés
como
testemunho contra eles».
(Marcos 6, 8-11).
Ver um capacho é ver um símbolo,
o espaço medial entre uma casa, no que isso tem de espaço de protecção, e o
mundo que a rodeia, ameaçador e violento. Tal como a letra que está no meio de uma
palavra, o capacho está no centro de um mundo global que se divide em duas
partes distintas e desiguais, porventura antagónicas.
O capacho não é um
artigo, mas uma alegoria.
(Jorge Antunes, in Devaneios de uma 2ª feira à tarde, Edições Campos Velhos, 2012).
2 comentários:
Muito bem escrito. Muito interessante esta elevação do capacho. Este seu amigo Jorge Antunes faz-se, mas o excerto de Antoine LeBon é divinal.
Muito bem escrito. A tal ponto que fiquei perturbada na própria compreensão do texto. A sua forma de escrever está absolutamente soberba, JdB. O Gonçalo M Tavares vai tornar-se um seu fã, trust me. Bjs. pcp
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