16 novembro 2015

Vai um gin do Peter’s?

Recentemente, passou na Gulbenkian a música originalíssima e empolgante do suíço Arthur Honegger (1892-1955), com uma produção musical muito extensa, a incluir bandas sonoras de filmes e actuações na rádio. 

A dimensão cinéfila perpassa toda a sua obra, indo muito além das composições feitas para o cinema. Assim acontece com a oratória que compôs a partir de um texto extraordinário de Paul Claudel (1868-1955): «La danse des Morts».

A parceria e cumplicidade artística entre o escritor e o compositor chegou por intermédio da actriz-bailarina Ida Rubinstein que, em 1934, apresentou o músico ao mestre das letras na altura Embaixador de França em Bruxelas.  

Apesar do feitio reservado, Honegger frequentava as tertúlias dos artistas e intelectuais que fervilhavam por Paris, à cabeça Jean Cocteau, com quem formou o Grupo dos 6, desejosos de lançar uma nova escola de música clássica anti-romântica. Mas a sua participação naquele grupo foi sol de pouca dura. 

    
Com Claudel tudo correu melhor. Do primeiro trabalho em equipa resultou «Jeanne d’Arc au bûcher». Em 1938, com a Europa a assistir apavorada à escalada expansionista de Hitler, os artistas lançaram-se na feitura da revolucionária A Dança dos mortos. Um título algo chocante e insólito para o século XX e, mais ainda, para o nosso tempo.

A ideia partira de Claudel, que ficara impressionado com os desenhos do bávaro Hans Holbein (1497-1543) , com esqueletos entretidos numa coreografia híper animada, que pensaríamos saída da banda desenhada de um cartoonista provocador da actualidade. Difícil de acreditar que vinha do século XVI, seguindo aliás uma tradição muito em voga na Idade Média de lembrar a proximidade da morte, quase sempre com enorme sentido de humor e forte carga irónica, a aliviar o propósito didático. De facto, encarava-se abertamente o elo inalienável entre vida e morte explorando as várias ramificações do tema. Assoma, de imediato, a eternidade versus a caducidade visível do presente, representadas de braço dado.

A Morte, na gravura de Hans Holbein, o Jovem

É nos séculos posteriores, ditos mais científicos e modernos, que a morte ganha uma solenidade pesada para exorcizar e até camuflar o medo associado ao conceito, chegando à actualidade completamente relegada para a zona dos assuntos intocáveis, tornada o maior tabu do século XXI. E logo nós que seríamos uma geração pós-tabus, preparada para arrasar os adamastores que tinham importunado os nossos antepassados, esses sim, gente dada a temores menos racionais e crenças cegas.    

Em «La danse des morts», a prosa poética do francês funde-se com a melodia vanguardista do suíço, numa harmonia e expressividade invulgares, que nos transportam para um universo entre o céu e a terra onde, estranhamente, não nos sentimos estrangeiros. Talvez por tudo ali ser tão habitado...

II parte -



A ironia é máxima quando o coro entremeia cantos populares, nomeadamente «Sur le pont d’Avignon» com letra adaptada, a dançar sim, mas não sobre a bonita ponte, trocada agora pela tampa da tumba, que se escancara para o morto recuperar alguma vitalidade. A «visão dos ossos secos» inspira-se numa passagem do Antigo Testamento (cap. 37 do Livro de Exequiel), em que Deus conduz o profeta a uma planície coberta de ossaturas, a quem devolve o dom da vida para aludir à restauração do povo judeu.

O libreto de Claudel fala por si, desdobrando-se em partes recitadas e cantadas, num estilo híbrido, entre o musical e a ópera. Ao coro juntam-se os solistas – soprano, contralto e barítono –  e o recitante (narrador). O entusiasmo do escritor chegou ao pormenor de anotar recomendações musicais para a ária acompanhar em pleno o sentido das palavras. Exemplo: «Começa por um ribombar de trovão formidável, não um simples trovão de teatro, um trovão musical alargado, onde o som rola, vai e vem, ressalta sobre ele mesmo, como se ouve nas grandes trovoadas da primavera» – a estação do renascimento, por excelência.

O próprio Honegger confirma a musicalidade do trabalho do amigo: «Para A Dança dos Mortos, pedi a Claudel que me lesse e relesse todas as directrizes a fim de seguir o mais próximo possível o seu pensamento. Tudo estava previsto no seu espírito, todas as intenções especificadas, bem como as distribuições das vozes e a cor da orquestra.»

Excerto da letra da Oratória:

  Choeur parlé
     Souviens-toi homme que tu es esprit
      et la chair est plus que le vêtement
      et l'esprit est plus que la chair
      et l'oeil est plus que le visage
      et l'amour est plus que la mort.

Choeur chanté
       Dansons, sur le pont de la tombe,
       on y danse y danse y danse,
       sur le pont du tombeau
       tout le monde y danse en rond !
       En rond dansons la carmagnole,
       vive le son, vive le son,
       dansons la carmagnole,
       vive le son du clairon !

Récitant
       Le Pape !...
       L'Evêque !...
       Le Roi !...
       Le Chevalier !...
       Le Philosophe !...   (…)

Próximo do final, o recitativo recorda a mensagem de Deus ao homem, proclamando telegraficamente:

       «J’éxiste!»

No último número, o coro retoma um dos leit-motiv do libreto:

     «Lembra-te Homem que és pedra e sobre esta pedra edificarei a Minha Igreja
      e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.» (Mt.16, 18)

O coro entoa ainda uma frase do Salmo:

      «Souviens-toi de moi, Seigneur,
       parce que je suis poussière
       et que je retournerai en poussière !»

A Oratória termina com um sussurro do soprano, aparentemente apaziguador, mas a adensar aquele mistério de vida e morte entrelaçadas.

Já no século XIX, Camille Saint-Säens (1835-1921) produzira uma obra sobre a mesma temática, numa sonoridade mais confortável e ligeira, que teve enorme influência posterior, nomeadamente em Honegger. De título ainda mais provocador – «La danse macabre» – o humor é aqui desconcertante, até pelo colorido lindo da orquestração. Camille inspira-se numa superstição francesa bem antiga, sobre uma noite de Outono em que os mortos se evadiriam dos túmulos para dançar freneticamente até ao canto do galo os reconduzir ao silêncio mais profundo. Uma tese arrojada, a fazer fé na capacidade de os esqueletos auto-recuperarem a vida, embora só uma vez ao ano enquanto o sol não nasce, género recarga curtíssima. Um bocadinho inglório para os mortos e assustador para os vivos, mas q.b. certeiro enquanto pequena revanche dos que se sentem excluídos do ciclo temporal. Típico wishful thinking de alguns (a expressão inglesa é a mais lapidar)...



Muito refrescante redescobrir o vanguardismo extraordinário dos nossos antepassados, que nos fazem sentir próximos das gentes de outras épocas. Algumas bem distantes. Que bom esta caça aos tesouros do passado ser infindável. Então na música, as redescobertas são constantes. Até porque é a expressão de arte a que melhor se aplica a metáfora da Bela Adormecida, aquela tristinha escondida num castelo inacessível. Até ser executada, a pauta funciona como uma princesa à espera de ser acordada. Felizmente que a Gulbenkian tem ajudado grandemente, cumprindo na perfeição o papel difícil do príncipe. 

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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