Há um pragmatismo dentro de mim que, como todas as coisas assinaláveis (a vida, por exemplo) é uma faca: tudo está no lado pelo qual as pegamos. Numa dada altura, talvez numa fase mental ainda mais imberbe do que aquela que vivo agora, olhava para a tecnocracia como o segredo para a Nação: o país precisava de competência, sem a necessidade de valores nem convicções a não ser os que se extraem de uma tabela com várias entradas, ou de um gráfico com tendência. Queria homens que soubessem da poda, independentemente do partido de onde vinham. Queria ciência, tecnologia, organização e planeamento, rigor e ausência de discursos fúteis. Ainda que só imaginasse o que isso era, o país seria uma imensa fábrica, esse micro-cosmos da existência humana onde as máquinas imprimem o ritmo, onde o panóptico é a ferramenta que transforma a diversidade e a barbárie numa sequência de actividades controladas com vista a um fim maior.
Vem este intróito longo e desacertado a propósito de um texto e de uns comentários num blog de que sou frequentador, e onde escreve um monárquico que me dá a fineza da sua consideração. Escreveu ele, citando, sobre os nossos 800 anos de história, sobre a audácia dos conjurados, sobre as fronteiras inalteradas mais antigas da Europa. O meu pragmatismo veio ao de cima, como um cadáver putrefacto que assome à tona de um lago que ninguém visita. E disse-lhe que me parecia que que esta ideia da nossa História antiga ou das nossas fronteiras multi-seculares está sobrevalorizada: o país não cresce, há 2 milhões de pobres, as gerações abaixo da minha lutam com dificuldades, a prazo seremos ultrapassados por todos, mesmo por aqueles que estão parados. De que nos servem 800 anos de História, a palavra saudade ou a ideia saudosista de um Portugal de Minho a Timor? Não temos comida na mesa, mas dos lados de um prato simples da Vista Alegre (uma certa nobreza não liga à faiança onde põe o almoço) há talheres de prata. Somos pobres, mas somos antigos.
Há um discurso marcelista que me cansa: o de que somos os melhores em qualquer coisa. O país arde, mas temos os melhores bombeiros; a selecção perde, mas temos os melhores jogadores. O discurso não pretende reconhecer uma valência, mas evitar uma debandada. É uma espécie de discurso motivacional para uma hora de surdos ou, simplesmente, para um grupo de seres humanos que são os melhores em qualquer coisa, mas não em tudo - ou, sobretudo, não naquilo em que dizem que somos os melhores.
Este meu interlocutor de discussão revê-se na ideia do encanto dos violinos enquanto o paquete afunda. Por vezes também eu - é a nostalgia de uma nobreza arruinada mas cheia de tradições, uma certa gente que usa um vocabulário onde a expressão eficiência é bonita, mas que se revê numa existência mais suave, onde o dinheiro existe mas não é mencionado. Tenho dias assim, como tenho dias pragmáticos. Talvez, acima de tudo, me encante um discurso motivacional oco, que assenta na ideia de que somos os melhores e que saudade é uma palavra intraduzível, pelo que somos um povo eleito.
JdB
2 comentários:
Caro JdB,
Também eu sou pragmático… muitas vezes sou obrigado a isso, quer profissionalmente, quer em dias menos bons, onde por vezes estou tão farto de banalidade, vulgaridade e desonestidade que quase acho que alguém tem de “mandar em nós”, porque se assim não fôr, o país rebenta de vez. Eu, que estou nos antípodas do federalismo europeu, por vezes acabo a pensar se não seria a melhor solução… mas depois, quase diariamente, tenho a prova que não; caso se viesse a verificar, não seriamos mais do que uma espécie de “bairro de lata” de uma qualquer Finlândia, Holanda ou até de Espanha, para voltar a 1640. Isto é um exemplo, claro, mas às vezes tenho mais medo da Administração do que de uma qualquer Comissão Europeia. Percebo lindamente o que diz; é um facto que a eficácia (não é só uma expressão bonita, pois é necessária diariamente) se mistura com uma existência mais suave, a que procuro dar valor por ainda a poder ir tendo, nem sempre, mas com bastante regularidade. Dizem-me que sou uma alma antiga e, efectivamente, praticamente nada tenho nada a ver com os supostos princípios que nos norteiam actualmente. Digo praticamente, porque também eu sou pragmático e, se quiser, sobrevivente, embora eu deteste “sobreviventes” (não os que são mesmo, na verdadeira acepção da palavra; refiro-me aos outros). Tudo o que diz também me preocupa e é por isso que tenho de acreditar nos meus filhos e nos amigos deles que, multiplicados por mais uns quantos, têm a oportunidade e obrigação de “dar a volta”; lutam com mais dificuldades… não sei… sei que estas são diferentes e se calhar mais exigentes, mas o truque, penso eu, é não serem tubarões e, simultaneamente, não serem comidos por eles, o que só se faz com educação, formação e cidadania. O resto, virá com toda a certeza depois. O amor a Portugal e às tais linhas que foram definidas há tanto tempo só pode servir, digo eu, como “motor de arranque” para um país mais próspero e solidário. No fundo, é o nosso berço. Um abraço
Caro Laurus Nobilis,
Obrigado pela sua visita. O seu comentário é um post e nada me daria maior gosto de que conversá-lo consigo (não haveria discussão, porque estamos alinhados no essencial).
Uma vez conversava com alguém que me dizia que tinha de educar os filhos a viver nestes tempos: ensiná-los a serem tubarões porque o tempo era de tubarões. Eu disse que tinha de ensinar os meus filhos a não serem tubarões em tempo de tubarões; tinha de lhes ensinar ética, educação (embora perceba, a expressão "cidadania" enerva-me), atenção aos mais fracos, a não perder o sentido de justiça. É uma tarefa difícil para eles, mas não percamos a esperança.
Quanto ao bairro de lata, temo que venhamos a ser o nosso próprio bairro da lata - uma imensa favela pontilhada de gente decente, excessivamente povoada de canalhice.
Enviar um comentário