Éramos quatro sentados à mesa - onde não se envelhece, dizem os alentejanos - de onde nos levantámos já passava da uma da manhã. Une-nos uma amizade tardia, nascida essencialmente, mas não exclusivamente, de uma vida profissional mais ou menos próxima. Falámos de tudo: das anedotas, da política, dos livros, das comidas e dos carros; mas também falámos das desarmonias interiores de cada um de nós, da forma como as combatemos, dos triggers aos quais é fundamental estarmos atentos porque são episódios que desencadeiam o que temos de mais complicado. Falámos de terapias, das experiências de um ou de outro. Quatro homens feitos e direitos que vão desnudando a alma sem que isso constitua humilhação ou voyeurismo social.
Tenho um interesse muito grande por terapias. Nas vésperas falava com um amigo cuja namorada faz hipnoterapia para curar algumas fobias. Tive vontade de experimentar, embora não tenha fobias dignas de registo. Mas este tratamento à base de hipnose, assim como o de dois comensais, interessa-me, não do ponto de vista técnico, mas do ponto de vista do efeito no auto-conhecimento da pessoa que passa por isso. Interessa-me o que aprendemos de nós, não só as misérias humanas que nos habitam, mas a forma de as controlar, de as dominar ou de as contornar. Interessa-me perceber o que em cada um de nós desencadeia um ataque de raiva incontida ou uma vontade súbita de ceder a uma adição. Interessa-me o impacto secundário da terapia na pessoa, sendo que o directo é o conseguir não beber ou o não ser excessivamente agressivo com alguém. Mas o que verdadeiramente me suscita curiosidade é o que a terapia fez na pessoa, como a alterou para melhor, o que ela passou a saber sobre si própria que a enriqueceu interiormente.
Depois, num âmbito diferente em termos de tempo e interlocutor - mas não, em bom rigor, de tema -, conversei sobre auto-conhecimento aplicado às características que temos. E surgiu esta tríade que pode resumir, ainda que de forma muito incompleta, a nossa atitude face ao pior que temos ou somos: aceitação, reconhecimento, modificação. Isto é, aceitamos os nossos defeitos, reconhecemos os nossos defeitos, modificamos o nosso comportamento (não modificamos o nosso defeito, parece-me). Numa visão muito repentista, a sequência seria, para mim: reconhecer, aceitar, modificar. Reconheço o que sou, aceito-me como sou, modifico o que sou. Mas podemos alterar as duas primeiras palavras? Isto é, podemos dizer aceitar, reconhecer, modificar? Se sim, o que nos diz isso? Ou fazemos apenas um jogo de palavras?
Num certo sentido, ser-se colérico é o mesmo que ser-se adicto. Quem o é, é-o para sempre. Como evidenciamos a nossa vontade de mudar? Principalmente através de gestos concretos, independentemente, para mim, da motivação. Serei sempre colérico, ou forreta, ou orgulhoso ou o que quer que seja, como um adicto o é. A alteração de comportamentos não significa mais do que uma alteração de comportamentos. Não pretende dizer a ninguém que afinal não sou, mas pretende mostrar aos outros que conseguimos controlar o que somos. A única forma de demonstrar uma mudança interior é através de gestos concretos, não através de deambulações interiores que pouco mudarão o que somos. O único (passe o simplismo) pensamento interior necessário é a vontade de "mudar". Não a vontade de ser outra pessoa, mas a vontade de ter outros comportamentos e, com isso, talvez, ser outra pessoa. Essa tem de ser a verdadeira motivação. Apaziguamentos da consciência ou desejo de passar uma imagem diferente não são mais do que folclore.
JdB
* publicado originalmente a 27 de Julho de 2016
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