ONDE OS ROBOTS NÃO CHEGAM E COMEÇA O NATAL
Há uns anos, num debate público decorrido em Londres, quatro sumidades da filosofia e da teologia foram convidadas a pronunciar-se sobre o lugar do ser humano num mundo em robotização acelerada. Encontrariam espaço para a humanidade, facilmente substituível pela eficiência da Inteligência Artificial no raciocínio lógico, no processamento de dados, etc.? Já nenhum humano consegue jogar xadrez com os computadores mais avançados, capazes de uma auto-aprendizagem, que lhes permite desencantar novas estratégias inacessíveis aos humanos!
Entre os convidados para o tal debate encontrava-se um académico de Yale, vários anglicanos e também um italiano, franciscano, teólogo e cardeal – Raniero Cantalamessa – que não hesitou sobre o atributo exclusivo e insubstituível do ser humano: Podemos conceber uma inteligência artificial; mas conseguimos conceber um amor artificial? Estão já a trabalhar num computador que pensa, mas conseguimos imaginar um computador que ama, que se enternece pelas nossas penas e se alegra com as nossas alegrias? E aqui começa o Natal.
Noutra ocasião, Cantalamessa(1) explica melhor esta novidade introduzida no Natal, ao lembrar que o grande rio da história chegou a uma ‘eclusa’ com a vinda de Cristo. Tudo recomeçou a partir de um nível mais alto, logo que o Criador se tornou acessível à criatura e esbateu o enorme desnível que separava a infinitude divina da precária condição humana. Tudo ficou novo e diferente. Como primeiros sinais da mudança: foram os pobres e os párias da sociedade os primeiros a ser chamados, enquanto os poderosos e cheios de si experimentaram a curta eficácia (e até impotência) dos seus estratagemas e das suas invencíveis armadas.
O frade franciscano conta ainda uma lenda especialmente natalícia, sobre a multidão de pastores que se apressou até Belém, entusiasmada com o anúncio dos anjos. Discretamente, seguia também um pobre pastorzinho, que nada tinha para levar ao Bebé anunciado pelos céus. Chegado à gruta, o pequenino resguardou-se no lusco-fusco, envergonhado por estar de mãos vazias. Enquanto a mãe do Recém-nascido se atrapalhava a tentar receber o que traziam uns e outros, descobriu o pastorzinho de mãos vazias. E logo lhe confiou o Filho, ficando assim mais disponível para acolher a avalanche de visitas. Como conclui Cantalamessa: «Não ter nada foi a sua sorte. Façamos com que seja também a nossa. (…) O que devemos fazer, como primeira coisa no Natal, é crer no amor de Deus por nós. (…) Parece algo fácil. Ao contrário, está entre as coisas mais difíceis no mundo. O homem é mais propenso a ser ativo do que passivo; a fazer, mais do que a deixar que lhe façam. Inconscientemente, não queremos ser devedores, mas credores; queremos, sim, o amor de Deus, mas como prémio, mais do que como dom. Assim, porém, realiza-se insensivelmente um deslocamento e uma inversão: em primeiro lugar, no topo de tudo, no lugar do dom, é colocado o dever; no lugar da graça, a lei; no lugar da fé, as obras. “Cremos no amor!”: este é um grito para o qual é preciso reunir todas as forças. (…) O dever de amar a Deus funda-se no facto de sermos amados por Deus, que nos amou primeiro. Esta é a novidade da fé cristã em relação a toda a ética baseada no “dever” ou no “imperativo categórico”. (…) O dom do “coração novo” não acontece sob anestesia total, como nos transplantes normais de coração! Nós vemo-lo a partir da mudança que se realiza nele. Nada mais de temores, rivalidades, timidez; homens novos, prontos a lançar-se pelas estradas do mundo e a dar a vida por Cristo. (…) A coisa mais bonita que podemos fazer no Natal não é nós oferecermos algo a Deus, mas acolher com espanto o dom do seu próprio Filho, que Deus Pai dá ao mundo.»
Este amor contagiante, que irrompe todos os anos no Natal, está na base da tradição da troca de presentes e de maior atenção aos que mais precisam. No bom espírito da época, a Fundação Medeiros e Almeida (FMA)(2) montou a mesa de festa na sala-de-jantar do seu museu com o serviço Vista Alegre, conhecido por «Natal em Belém». Este serviço foi colorido por crianças e adolescentes internados em hospitais públicos, no âmbito do projeto «Marinheiros da Esperança». O desenho-matriz é da autoria de Emília Dias da Costa e foi concebido para as comemorações dos 700 Anos da Marinha Portuguesa (2017), decorridas no Palácio de Belém.
No dia mais curto do ano, solstício de Inverno, sentimos bem a aproximação da longa noite onde irradiou uma luz nova e contagiante, porque Deus se fez um de nós. Feliz Natal a cada um!
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(2) https://www.museumedeirosealmeida.pt, na rua Rosa Araújo nº 41, perto do Marquês e da av.da Liberdade.
1 comentário:
Como é difícil mostrar a todos o que nos vai na alma.
Cumprimenta
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