10 julho 2025

Dos abismos

Paredão do Estoril, um dia destes pelas 7.30h da manhã

A vida é uma casa com duas portas. Há uns que entram e que têm medo de abrir a segunda porta. Ficam girando, dançando com o tempo, demorando-se na casa. Outros se decidem abrir, por vontade de sua mão, a porta traseira. Foi o que eu fiz, naquele momento. A minha mão volteou o fecho do armário, a minha vida rodeou o abismo. 

Mia Couto

***

Li esta frase, que me foi enviada por uma mão quase desconhecida, há muitos anos. Regresso ao pensamento volta e meia, não apenas para lembrar tempos que já foram, mas para lembrar tempos que são, ou serão.  

O que é o abismo que a nossa vida deve rodear? Anteontem conversei com duas pessoas diferentes sobre gratidão, sobre a importância de agradecer, não só a cortesia do obrigado a quem nos serve um café ou segura uma porta, mas a a cortesia da amizade em tempos difíceis, a cortesia da presença firme e segura, mesmo que nem sempre manifestada da melhor forma, a cortesia de um conselho que faz repensar o caminho. Ontem ouvia um podcast de um jovem chileno de quem sou amigo e que resistiu a 3 ou 4 cancros diferentes quando tinha meia dúzia de anos. Consciente de que a sua sobrevivência deve muito à sorte, pois pôde ser tratado nos EUA, dizia em resposta à pergunta quais são as tuas prioridades? que era importante devolver la mano

Os abismos da nossa vida nem sempre são mortes, perdas afectivas, desempregos, doenças incuráveis. Esses são abismos, mas há mais: a ausência da gratidão, o excesso de palavras críticas, o orgulho constante, o negativismo permanente, a incapacidade do perdão, o horror à escuta. Tenho, como muitos dos que me leem, a minha dose de abismos mais ou menos dramáticos - perdas, rupturas, pedidos de desculpa que faltaram a quem já não pode ouvi-los. Os outros, porém, continuam por cá, e é preciso enfrentá-los e dizer-lhes que não todos os dias, em função desta certeza, também, de que a vida é precária. E por vezes enevoada. 

JdB

09 julho 2025

Duas Últimas (ou da gestão das amizades) *

Como formamos amizades? Melhor ainda, como as mantemos? Poderíamos falar na antiguidade, no manancial de memórias comuns que revestem os amigos de um capa que os protege da erosão do tempo. Poderíamos falar na semelhança de interesses, sangue, percursos, que juntam seres humanos e lhes conferem um relacionamento mais ou menos duradouro. Poderíamos falar ainda da intensidade com que as pessoas convivem umas com as outras, o grau de intimidade, de proximidade, de partilha.

Não haverá, estou certo, argumentos que se excluam. Talvez a resposta à pergunta inicial seja apenas uma: tudo é possível, tudo é aplicável - a antiguidade, a semelhança, a proximidade, outras. Talvez uma resposta à pergunta inicial não esteja tanto na generalização do universo, mas na redução ao indivíduo: como formo eu as amizades, como as mantenho eu? Mesmo com este afunilamento do espectro não haverá, seguramente, respostas únicas. Se calhar a forma como criamos e mantemos os nossos amigos é mais uma vez díspar - a antiguidade, a semelhança, a proximidade, outras

Em momentos da vida de um indivíduo - e falo, sobretudo, da minha faixa etária - há escolhas que se fazem, porque somos amigos da maria e do manel e um deles desapareceu, porque somos amigos da maria e do manel e os dois estão desavindos, porque somos amigos da maria e do manel mas  aproximamo-nos naturalmente de um ou de outro. O que nos faz pender para a maria ou para o manel? O que nos faz continuar com um quando o outro desapareceu? Haverá respostas certas? Não sei, mas estou em crer que a proximidade é um factor importante. Não falo apenas da proximidade inerente a amizades antigas e militadas mas, sobretudo, da proximidade que advém da partilha da intimidade, da quantidade de vezes que abrimos a alma a quem, à nossa frente, aprecia um café e uma bola de berlim enquanto ouve as nossas angústias, as nossas incoerências, as nossas inseguranças.

Em momentos de viragem, dificilmente as amizades resistirão à antiguidade e à semelhança se a relação não tiver sido alimentada com outras coisas. Um pouco como se houvesse uma estética e uma rotina no relacionamento que não sobrevivem à eventualidade das escolhas, dos tempos difíceis, do desejo de interlocução e de intimidade, do lugar único à mesa que se prefere ocupar com um coração que se abriu connosco, e não com a finura de umas mãos ou com o porreirismo de uma conversa. 

Nicolas de Chamfort, francês e poeta, entre outras coisas, terá afirmado: M. dizia: "renunciei à amizade de dois homens, um porque nunca me falou de si, o outro porque nunca me falou de mim."   

Deixo-vos com Pavarotti and friends, porque me pareceu a propósito...

JdB

   

* publicado originalmente a 30 de Julho de 2013

08 julho 2025

Poemas dos dias que correm

Paredão do Estoril, um dias destes pelas 7.30 da manhã

soneto do amor e da morte 

quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

***

Quanto Morre um Homem

Quando eu um dia decisivamente voltar a face
daquelas coisas que só de perfil contemplei
quem procurará nelas as linhas do teu rosto?
Quem dará o teu nome a todas as ruas
que encontrar no coração e na cidade?
Quem te porá como fruto nas árvores ou como paisagem
no brilho de olhos lavados nas quatro estações?
Quando toda a alegria for clandestina
alguém te dobrará em cada esquina?

Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"

06 julho 2025

Carta a um anjo

Nasceste hoje, mas há 31 anos.

***

A semana que agora termina abalou Portugal e o mundo do futebol: Diogo Jota e o irmão, André Silva, ambos jogadores de futebol, morreram num brutal desastre de automóvel. 

Um acontecimento deste tipo suscita um olhar imediato de todos: o drama familiar, as qualidades profissionais das vítimas, a falta que fará à selecção ou ao seu clube, a consternação de colegas, políticos, dirigentes, artistas de várias proveniências. 

Um segundo olhar é sobre a precariedade da vida, um tema que me persegue desde há muito. No seu livro O ano do pensamento mágico (um livro sobre a morte súbita do seu marido) diz Joan Didion: [s]entamo-nos para jantar e a vida, tal como a conhecemos, acaba. Num certo sentido, esta frase poderia ser dita por todos os protagonistas da semana que passou: a massa humana que se condoeu com a morte dos dois irmãos poderia dizê-la; as famílias que perderam maridos, pais, filhos, primos, poderiam dizê-la. Mas também poderiam dizê-la o Diogo Jota e o André Silva que se sentaram para uma viagem de carro e a vida, tal como eles a conheciam, acabou. Ironicamente, vem-me à memória o verso de Fernando Pessoa: [a] morte é a curva da estrada.  

*** 

Deambular pela comunidade da oncologia pediátrica, como o faço há 24 anos, é conviver com a frase [s]entamo-nos para jantar e a vida, tal como a conhecemos, acaba. Há um tempo que começa quando os Pais ouvem o diagnóstico de cancro num filho pequeno - e esse tempo que começa marca o fim de uma vida, tal como a conhecemos; há outro tempo que começa - e que marca outro tempo que acaba - quando tudo se suspende num alívio, ou quando tudo termina numa dor. Todos estes tempos são marcados pela precariedade. O mundo no qual [a]inda víamos felicidade e saúde e amor e filhos bonitos como ‘dádivas vulgares' (Joan Didion, Noites Azuis) é um mundo precário, onde uma viagem de carro, uma saída de barco ou um exame que se manda fazer determinam uma tragédia imprevisível: não é suposto morrer-se aos 28 anos, não é suposto morrer-se aos 56 anos, não é suposto ter-se cancro aos 6 anos.

Para a precariedade da vida não há solução. Os desastres de carro não acabarão, as saídas de barco não acabarão, o cancro pediátrico não acabará. À ciência cabe desenhar carros mais seguros, barcos mais seguros, tratamentos mais eficazes. A nós, mortais na condição de Pais, filhos, irmãos, cônjuges, cabe-nos a preparação constante para a precariedade inevitável. Todos os dias teremos de pensar que este dia, este hoje, poderá ser o último para nós, ou para aqueles que amamos. E agir em conformidade. A morte do Diogo Jota e do irmão é um kind reminder (para usar uma expressão moderna) desta necessidade de vigilância afectiva. Por vezes hoje não é o primeiro dia da minha vida, mas hoje poderá ser o último dia da minha vida.  

Termino este texto com uma frase que usei há um ano e que já tinha usado no ano anterior: não somos os mesmos, não seremos os mesmos. A frase aplica-se ao dia de hoje, mas de há 31 anos, mas também se aplica ao dia de hoje, na evidência dramática da precariedade da vida.

***

Na sua bondade sem fim
Quis Deus olhar para mim
Dar-me um pouco do que é seu
Deu-me uma estrela pequena
A quem chamou Madalena
Que é uma das santas do Céu 

JdB, em nome de todos os que te lembram.

XIV Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 10,1-12.17-20

Naquele tempo,
designou o Senhor setenta e dois discípulos
e enviou-os dois a dois à sua frente,
a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir.
E dizia-lhes:
«A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos.
Pedi ao dono da seara
que mande trabalhadores para a sua seara.
Ide: Eu vos envio como cordeiros para o meio de lobos.
Não leveis bolsa nem alforge nem sandálias,
nem vos demoreis a saudar alguém pelo caminho.
Quando entrardes nalguma casa,
dizei primeiro: ‘Paz a esta casa’.
E se lá houver gente de paz,
a vossa paz repousará sobre eles:
senão, ficará convosco.
Ficai nessa casa, comei e bebei do que tiverem,
que o trabalhador merece o seu salário.
Não andeis de casa em casa.
Quando entrardes nalguma cidade e vos receberem,
comei do que vos servirem,
curai os enfermos que nela houver
e dizei-lhes: ‘Está perto de vós o reino de Deus’.
Mas quando entrardes nalguma cidade e não vos receberem,
saí à praça pública e dizei:
‘Até o pó da vossa cidade que se pegou aos nossos pés
sacudimos para vós.
No entanto, ficai sabendo:
Está perto o reino de Deus’.
Eu vos digo:
Haverá mais tolerância, naquele dia, para Sodoma
do que para essa cidade».
Os setenta e dois discípulos voltaram cheios de alegria, dizendo:
«Senhor, até os demónios nos obedeciam em teu nome».
Jesus respondeu-lhes:
«Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago.
Dei-vos o poder de pisar serpentes e escorpiões
e dominar toda a força do inimigo;
nada poderá causar-vos dano.
Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem;
alegrai-vos antes
porque os vossos nomes estão escritos nos Céus».

04 julho 2025

"Furriel não é nome de pai"

Vi 4ªfeira, na RTP1, o primeiro episódio de uma série intitulada Furriel não é nome de pai* sobre os filhos que os militares portugueses deixaram na Guerra Colonial. O episódio de ontem passava-se na Guiné-Bissau e, penso eu, é aí que surge o nome: um rapaz pequeno terá perguntado à mãe como é que se chamava o pai dele. A mãe ter-lhe á respondido: furriel. Foi um amigo mais tarde que lhe ensinou que furriel não é nome, mas posto. 

Há vários pontos por onde olhar para o episódio de ontem. Podemos ver o drama de crianças pequenas que são mais claras do que os amigos e família e que, por isso, são discriminados. Uma das crianças referiu que, quando havia visitas em casa, a mãe a colocava debaixo da cama por vergonha. Se as visitas se demorassem uma tarde inteira, a criança passava uma tarde inteira debaixo da cama, para onde lhe levavam comida ou água. Uma das crianças falou nos maus tratos de um tio que lhe puxava os cabelos e batia. Outra falava dos insultos na rua: és resto de tuga ou coisa semelhante.

Podemos também ver o episódio de ontem pela lente do afecto. Todas as pessoas entrevistadas (não sei se uma maioria ou uma minoria desta comunidade) falaram no gosto que teriam em conhecer o Pai, no orgulho que o Pai teria neles, no desejo de abraçar o Pai e mesmo de serem portugueses pela lei, uma vez que se sentem portugueses pelo afecto. Rezam o terço, depõem flores num cemitério local onde há campas de militares portugueses, falam na tristeza que sentem por lhes faltar uma fatia da família, têm confiança de que o governo da República repare este injustiça.

A guerra terminou há 50 anos. Alguns militares (pais destes restos de tugas) terão hoje 75 ou 80 anos, talvez até mais. Como reagirão se alguém lhes disser conheci o teu filho na Guiné, diz que gostava muito de te conhecer. Um Pai, parece-me, nem quis falar sobre o assunto. Alguns militares conviveram algum tempo com os filhos e as crianças têm memória desse tempo - a chegada no jipe, a carne que traziam do quartel, as promessas de que, chegando à metrópole, mandariam vir o filho e a mãe. Nada aconteceu.

Como seria o encontro destes Pais e filhos? O que diria um reformado de Oliveira de Azeméis ou de Beja ou do Funchal a um rapaz ou rapariga da Guiné com quem nunca conversaram? Como se estabelecem relações de afecto em pessoas que tiveram 50 anos sem saber uns dos outros, talvez porque uma das partes não quisesse? De que falariam, como falariam?

JdB

* quem estiver interessado no livro com o mesmo nome basta seguir este link


03 julho 2025

Poemas dos dias que correm

Genève, Maio de 2025

Humildade

Tanto que fazer!
livros que não se lêem, cartas que não se escrevem,
línguas que não se aprendem,
amor que não se dá,
tanto quanto se esquece. 

Amigos entre adeuses,
crianças chorando na tempestade,
cidadãos assinando papéis, papéis, papéis...
até o fim do mundo assinando papéis. 

E os pássaros detrás de grades de chuva,
e os mortos em redoma de cânfora. 

(E uma canção tão bela!) 

Tanto que fazer!
E fizemos apenas isto.
E nunca soubemos quem éramos
nem para quê

Cecília Meireles

02 julho 2025

Vai um gin do Peter’s ? 

 GENEROSIDADE EM BARCELONA E MAGIA EM PARIS

Há 20 anos que a neta do mítico oftalmologista catalão Barraquer viaja com uma equipa de médicos especialistas, até aos locais mais remotos e pobres do planeta, para oferecerem os seus préstimos e salvarem da cegueira quem não tem meios para, sequer, ir ao médico, quanto mais avançar para a sala de operações.

O título da entrevista «Ver con los ojos… y con el corazón» transmite o lema do trabalho missionário da dinastia de oftalmologistas catalães, baseada numa permuta perfeita: para uns voltarem a ver com os olhos, outros precisam de os olhar com o coração, que tanto completa o ofício médico:  


Segundo descreve a neta Elena, o avô tinha uma mentalidade de Robin Hood, com duas portas na sua concorridíssima clínica (onde a minha irmã mais nova foi consultada, em criança), aplicando a lógica de receber de quem podia, para ajudar a pagar por quem não podia e permitir que uma vasta maioria de doentes pudesse beneficiar dos bons serviços da célebre clínica de Barcelona.  

Os números da Fundação Barraquer (https://fundacionelenabarraquer.com/en/) são impressionantes e autoexplicativos sobre o bem imenso que têm espalhado por aqueles lugares omissos nas notícias, pois ninguém com voz os frequenta. As excepções são dois tipos de aventureiros: os ávidos de fazer fortuna com as riquezas e as matérias-primas locais e os generosos, simplesmente para ajudar, porque uns precisam e outros podem, na lógica das duas portas da Clínica de Barcelona…

Estas conversas-entrevistas, que circulam nas redes sociais, sabem um pouco aos bons livros ao serão, porque nos dão a conhecer pessoas cativantes, escolhas magnânimas e originais, olhares que iluminam, neste caso, em todas as acepções. Elena não se fica pelo descritivo das ‘expedições’ além-fronteiras, pois partilha também a sua visão do mundo actual, das diferentes atitudes face ao trabalho, resultando numa grande lição de vida. 

Saltando para Paris, embalados com a música celebrizada por Edith Piaf «Sous le ciel de Paris», percorremos recantos deliciosos e monumentos inconfundíveis da Cidade da Luz, desenhados e montados através da IA. Da Torre Eiffel à ponte de Bercy, das margens do Sena a Notre-Dame e ao coração de l’Île-de-la-Cité, dos boulevards parisienses às livrarias de Rîve Gauche a funcionar noite adentro, de Pigalle e das ruelas da colina de Montmartre às pracetas de onde se avista a Basílica do Sacré-Coeur, refrescamos memórias de uma das capitais mais bonitas do mundo. Percebe-se a fama de cidade dos apaixonados


A beleza e a bondade têm o mérito de desintoxicar e de serem especialmente contagiantes! 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

01 julho 2025

O dactilógrafo honesto *

 Não havia sido preciso mais nada para que a sua atenção se focasse naquele anúncio. Bastava o título: "cego precisa de dactilógrafo honesto". Não falava em invisuais, em técnicos disto ou daquilo, numa clima de confiança que sempre deve estabelecer-se entre parceiros do mesmo negócio, em contratos ou em evolução da carreira; nem sequer usava a terminologia politicamente correcta do dactilógrafo/a.  As palavras eram claras, curtas e concisas: cego, dactilógrafo, honesto.  

Vítor apresentou-se ao serviço numa segunda-feira em que o calor estalava as pedras da calçada e tudo, mesmo aquilo que seria um oásis, tinha uma vaga aparência de deserto. O calor era de facto brutal, naquela manhã de Agosto. Ao subir as escadas de um prédio velho da Avenida Almirante Reis (e pensou na tristeza de um homem da república - em bom rigor, no limbo entre um regime e outro - de quem não se sabe o nome próprio, apenas que é "almirante" e "reis") imaginou a Deolinda, namorada recente, em topless na costa alentejana, saltitando na arrebentação das vagas mansas. Mais do que imaginar-lhe uma nudez inquietante e uns seios diabólicos, tinha a certeza do olhar devorador do Mário, amigo de sempre que cobiçava a Deolinda como uma criança cobiça um rebuçado - guloso e sem pudor. Amigo - o Mário - que a acompanhara de férias, guiando o seat ibiza verde-claro em direcção ao parque de campismo. Tudo corria mal naquela segunda feira calorenta e enervada.  

- Bom dia, senhor Augusto, como vai hoje? 
- Olhe Vítor, é como vê...
- Está muito calor, senhor Augusto
- Pois está, Vítor; até se vê o sol a fritar as pedras da calçada...

Vítor sentou-se ao computador. Enquanto o windows fazia actualizações (algo que lhe parecia repetido e moroso) esticou e lançou um olhar à casa. Não viu nada, havia de confessar, porque só imaginava os saltos da Deolinda, o peito ofegante e perlado de suor, a toalha a correr aquela pele macia. E o Mário, esse malandro, a cobiçar-lhe tudo - os lábios, o corpo, a infidelidade, os cabelos pintados na Cátia, salão de cabeleireiro do Pragal. 

- Podemos começar, Vítor?
- Claro, Sr. Augusto... 

O sol punha-se no fio do horizonte: grande, alaranjado, lento, inspirador. Miriam recostou-se a uma duna e fechou os olhos para sentir a sua vida a correr-lhe pela frente. O pai autoritário, a mãe doce, a criada fiel, o primo namoradeiro. O mar, na suave rotina das marés, enchia o fim de tarde com um aroma de maresia e saudade. Miriam deixou-se ir e estava certo de sonhar algo igualmente perturbador e censurável: Charles, o maior amigo do seu marido, acariciava-lhe os pés e subia por aquela geografia humana como quem ascende aos céus, feito pecador com ambições de santidade. Oh não! Charles, o que dirá o meu marido? Mas Charles não parava, enchia-lhe a boca de beijos e o corpo de mãos ávidas e sedentas, afagando, desapertando, tocando. Oh Charles, oh Charles...  

Para Vítor, recém despedido de um stand de automóveis em segunda mão, tudo isto era de mais. Miriam era a Deolinda, Charles o Mário, esse malandro de olhos desvairados e mãos descontroladas a cobiçar-lhe a namorada, a espreitar-lhe as pernas bronzeadas ao ritmo de uma janela aberta na planície alentejana. E a sussurrar-lhe, estava certo, frases tentadoras: o Vítor não é para ti, não tem mão que abarque esse corpo... Em rapaz já o gozavam, e à pequenez dos atributos...  E o sacana do cego, que raio de romance havia ele de estar a escrever, um decalque da vida dele. 

Trabalharam mais 1 hora. 

- Leva-me o texto ao editor, Vítor? Vê se fica tudo bem?
- Claro, Sr. Augusto. Pode ficar descansado... 

À medida que o editor lia o texto o semblante carregava-se. Foi isto que ele ditou? E o dactilógrafo honesto, mirando com desinteresse uma ligeiríssima sujidade numa unha. Pois pode crer... Ele não está bem. E o editor entristecido, a ver-lhe fugir um novo concurso de uma câmara nortenha que incentivava escritores de mobilidade reduzida (e um cego não tem mobilidade reduzida?, gritava à administrativa camarária). 

A piscina está suja. Boiam cocós e seringas sujas. Ao lado da cadeira partida um cão mija de perna alçada. Há uma criança que grita e que leva porrada, uma mulher que grita e que também leva porrada. Há um bêbado que prega rasteiras a um cego, um mudo que chama palavrões ao primeiro ministro. Há a Deolinda nua e o porco do Mário que lhe espreita a borboleta tatuada numa bochecha do rabo. Se os apanhasse agora dava-lhes um enxerto de porrada que os virava. Rai's parta tudo, mais o sacana do cego. 

Cego precisa de dactilógrafo honesto. 

JdB  

* publicado originalmente a 25 de Fevereiro de 2016 

29 junho 2025

XIII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Lucas 9,51-62

Aproximando-se os dias de Jesus ser levado deste mundo,
Ele tomou a decisão de Se dirigir a Jerusalém
e mandou mensageiros à sua frente.
Estes puseram-se a caminho
e entraram numa povoação de samaritanos,
a fim de Lhe prepararem hospedagem.
Mas aquela gente não O quis receber,
porque ia a caminho de Jerusalém.
Vendo isto, os discípulos Tiago e João disseram a Jesus:
«Senhor,
queres que mandemos descer fogo do céu que os destrua?».
Mas Jesus voltou-Se e repreendeu-os.
E seguiram para outra povoação.
Pelo caminho, alguém disse a Jesus:
«Seguir-Te-ei para onde quer que fores».
Jesus respondeu-lhe:
«As raposas têm as suas tocas,
e as aves do céu os seus ninhos;
mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça».
Depois disse a outro: «Segue-Me».
Ele respondeu:
«Senhor, deixa-me ir primeiro sepultar meu pai».
Disse-lhe Jesus:
«Deixa que os mortos sepultem os seus mortos;
tu, vai anunciar o reino de Deus».
Disse-Lhe ainda outro:
«Seguir-Te-ei, Senhor;
mas deixa-me ir primeiro despedir-me da minha família».
Jesus respondeu-lhe:
«Quem tiver lançado as mãos ao arado e olhar para trás
não serve para o reino de Deus».

27 junho 2025

Textos dos dias que correm

 O Homem Perfeito 

A virtude subdivide-se em quatro aspectos: refrear os desejos, dominar o medo, tomar as decisões adequadas, dar a cada um o que lhe é devido. Concebemos assim as noções de temperança, de coragem, de prudência e de justiça, cada qual comportando os seus deveres específicos. A partir de quê, então, concebemos nós a virtude? O que no-la revela é a ordem por ela própria estabelecida, o decoro, a firmeza de princípios, a total harmonia de todos os seus actos, a grandeza que a eleva acima de todas as contingências. A partir daqui concebemos o ideal de uma vida feliz, fluindo segundo um curso inalterável, com total domínio sobre si mesma. E como é que este ideal aparece aos nossos olhos? Vou dizer-te.

O homem perfeito, possuidor da virtude, nunca se queixa da fortuna, nunca aceita os acontecimentos de mau humor, pelo contrário, convicto de ser um cidadão do universo, um soldado pronto a tudo, aceita as dificuldades como uma missão que lhes é confiada. Não se revolta ante as desgraças como se elas fossem um mal originado pelo azar, mas como uma tarefa de que ele é encarregado. «Suceda o que suceder», — diz ele — «o caso é comigo; por muito áspera e dura que seja a situação, tenho de dar o meu melhor!» Um homem que nunca se queixa dos seus males nem se lamenta do destino, temos forçosamente de julgá-lo um grande homem! Tal homem dá a conhecer a muitos outros a massa de que é feito, brilha tal como um archote no meio das trevas, atrai para junto de si todas as almas, dada a sua impassível tranquilidade, a sua completa equanimidade para com o divino e o humano. Tal homem possui uma alma perfeita, levada ao máximo das suas potencialidades, tal que acima dela nada há senão a inteligência divina, uma parte da qual, aliás, transitou até este peito mortal. E nada há de mais divino para o homem do que meditar na sua mortalidade, consciencializar-se de que o homem nasce para ao fim de algum tempo deixar esta vida, perceber que o nosso corpo não é uma morada fixa, mas uma estalagem onde só se pode permanecer por breve tempo, uma estalagem de que é preciso sair quando percebemos que estamos a ser pesados ao estalajadeiro.

Séneca, in "Cartas a Lucílio"

25 junho 2025

Histórias dos dias que correm *

“Se a Vida são Dois Dias o que Raios me Acontece Quando Saio à Noite?”

Vítor Sertório tem 35 anos. É alto e magro debaixo de um longo cabelo encaracolado que lhe cobre as orelhas e grande parte da testa. Tem o nariz equilibrado a despontar entre dois olhos escuros e tristes, uma boca bem desenhada que revela, dizem-lhe, “uma sensualidade perturbante”. As maçãs do rosto salientam-se numa pele pouco mais do que imberbe.  Tem umas mãos finas e compridas, numa expectativa de pianista que não houve. 

Há nele um apego às rotinas: o banho quente e poupado, a escolha criteriosa da roupa, o pequeno almoço rápido num desinteresse de fastio repetido, o beijo ao que sobra da família, o afago na cabeça fugidia do gato. Sofre o caos do trânsito e a alegria radiofónica de gente que se identifica pela voz, como se fossemos todos cegos, tacteando com os ouvidos. Trabalha: repreende e é repreendido, manda e é mandado, motiva e qualquer coisa por aí. Retorna a casa no silêncio do fim de dia, porque cavalo que sente cocheira não carece de estímulo para lá regressar. Saúda o que sobra da família e bichana ao Eros, que foge para cantos onde só o espanador chega. Depenica um jantar porque há a estética, a roupa que não estica, um enjoo constante aos condimentos, um certo asco aos odores.

Na contabilidade de alegrias e frustrações, Vítor Sertório equilibra-se nas contas finais. Conhece vidas felizes plenas de viagens, carros novos, rostos sorridentes; identifica as muitas outras que deprimem e convidam ao desespero. Tem 35 anos, e quando olha em frente o sorriso não lhe esmorece na face.

À quinta e à sexta-feira sai pela noite, integrado num grupo que se movimenta ruidoso pela capital, gargalhando e soltando piropos provocatórios. Cantam, acenam, empurram-se, contam histórias brejeiras que fazem rir e corar. Nesses dois dias Vítor Sertório é Anabela: encheu um soutien de algodão, pintou os lábios de um vermelho que torna a sensualidade desesperante, tingiu de carmim umas maçãs do rosto que sobressaem imberbes. O cabelo que agora lhe destapa as orelhas de onde pendem brincos provocantes, e a elegância nos saltos altos, suscitam inveja e admiração.

Para Vítor Sertório, que também é Anabela (embora não se saiba quem nasceu primeiro) a vida são estes dois dias. Quando lhe perguntam o que faz quando sai à noite, denuncia uma possível timidez num trejeito feito de vida escondida e responde, afagando um brinco: “sonho com os próximos dois dias”.  

JdB

* publicado originalmente a 7 de Janeiro de 2014  


24 junho 2025

Poemas dos dias que correm

 A Força Exacta é Violência


a Força Exacta é violência. 
a Força em espirro, ao acaso, não é violência, é existência. 
O mal é Fixar a Força (direccioná-la) porque a natureza espontânea não o FAZ. 
Natural é ser FORTE, isto é, avançar. 
Violento é o Percurso que antecede o viajante. Antes dos pés: 
Sapatos; a estrada. 
A Força Exacta é violência. 
A natureza não tem, nunca teve, Forças EXACTAS. 
E tudo o que o homem faz é tornar exacta a FORÇA. 
Ser violento é construir; todo o Edifício é violência. 
O homem é o Exacto da Natureza; a falha NATURAL; o Erro. 
Deus errou: 
fez o homem EXACTO. 

Gonçalo M. Tavares, in "Investigações. Novalis"

***

Em Plena Vida e Violência

Em plena vida e violência 
De desejo e ambição, 
De repente uma sonolência 
Cai sobre a minha ausência. 
Desce ao meu próprio coração. 

Será que a mente, já desperta 
Da noção falsa de viver, 
Vê que, pela janela aberta, 
Há uma paisagem toda incerta 
E um sonho todo a apetecer ? 

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro" 

***

Da Violência

A violência que trazemos no sangue 
ninguém a sabe e todos (casas 
desmoronadas) a exaltam e todos 
a descombinamos 
gota a gota 
em nossos movimentos de cinza 
transitória — esta violência 
residual 
tem do corpo a secura a configuração 
cavada no sono na fogueira sem cor 
de cidades levantadas sobre a doença sobre 
a simulação 
de fogo suspenso 
no arame dos ossos — 

Casimiro de Brito, in "Negação da Morte" 

22 junho 2025

XII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 9,18-24

Um dia, Jesus orava sozinho,
estando com Ele apenas os discípulos.
Então perguntou-lhes:
«Quem dizem as multidões que Eu sou?»
Eles responderam:
«Uns, João Baptista; outros, que és Elias;
e outros, que és um dos antigos
profetas que ressuscitou».
Disse-lhes Jesus:
«E vós, quem dizeis que Eu sou?»
Pedro tomou a palavra e respondeu:
«És o Messias de Deus».
Ele, porém, proibiu-lhes severamente
de o dizerem fosse a quem fosse
e acrescentou:
«O Filho do homem tem de sofrer muito,
ser rejeitado pelos anciãos,
pelos príncipes dos sacerdotes e pelos escribas;
tem de ser morto e ressuscitar ao terceiro dia».
Depois, dirigindo-Se a todos, disse:
«Se alguém quiser vir comigo,
renuncie a si mesmo,
tome a sua cruz todos os dias e siga-Me.
Pois quem quiser salvar a sua vida, há de perdê-la;
mas quem perder a sua vida por minha causa,
salvá-la-á».

20 junho 2025

Duas Últimas

 

Eglise Saint-Gervais-Saint-Protais (Paris)

Ontem postei esta fotografia num grupo de família com a seguinte pergunta: quem adivinha a musica para esta fotografia? As respostas foram diferentes:

The bells of notre dame
Knocking on heavens door
Stairway to Heaven
Highway to Hell

A resposta está abaixo, curiosamente uma música de um grupo de que nunca gostei muito: 


Fui à procura de uma explicação para a letra / música. Encontrei um site em que alguém perguntava isso mesmo e gostei de uma resposta: Estamos falando do Led Zep aqui. Ou é sobre sexo ou sobre O Senhor dos Anéis.

JdB

19 junho 2025

Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo

EVANGELHO – Lucas 9, 11b-17

Naquele tempo,
estava Jesus a falar à multidão sobre o reino de Deus
e a curar aqueles que necessitavam.
O dia começava a declinar.
Então os Doze aproximaram-se e disseram-Lhe:
«Manda embora a multidão
para ir procurar pousada e alimento
às aldeias e casais mais próximos,
pois aqui estamos num local deserto».
Disse-lhes Jesus:
«Dai-lhes vós de comer».
Mas eles responderam:
«Não temos senão cinco pães e dois peixes…
Só se formos nós mesmos
comprar comida para todo este povo».
Eram de facto uns cinco mil homens.
Disse Jesus aos discípulos:
«Mandai-os sentar por grupos de cinquenta».
Assim fizeram e todos se sentaram.
Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes,
ergueu os olhos ao Céu
e pronunciou sobre eles a bênção.
Depois partiu-os e deu-os aos discípulos,
para eles os distribuírem pela multidão.
Todos comeram e ficaram saciados;
e ainda recolheram doze cestos dos pedaços que sobraram.

 

"We'll always have Paris..." *

 





* Paris, 18 de Junho de 2025

18 junho 2025

Vai um gin do Peter’s ? 

 CAMÕES EM NOVA IORQUE 

Graças à Fundação portuguesa «Gaudium Magnum» foi constituída uma parceria artística com o Museu nova-orquino Hispanic Society Museum & Library para divulgar Camões no coração de Manhattan. A iniciativa conta também com o apoio da Embaixada de Portugal em Washington e do Instituto Camões. Começou, logo em Outubro de 2024, com uma conferência internacional sobre o poeta português, a que se seguirá a exposição «The Legacy of Luís de Camões: Portugal’s Greatest Poet | Hispanic Society of America», cuja inauguração decorrerá no próximo dia 26 de Junho terá inaugurada. Ficará patente até 3 de Setembro, no Terraço Audubon daquele museu da Broadway (between 155th and 156th Streets).    


«LUÍS DE CAMÕES: UMA ODISSEIA DE PALAVRAS E MUNDOS
Hispanic Society Museum & Library, Terraço inferior Audubon (Nova Iorque)

Quem és tu, Camões?”  Esta pergunta, feita ao lendário poeta português, convida-nos a reflectir sobre identidade, curiosidade e a busca pelo conhecimento. Para encerrar o programa desenvolvido pela Fundação e pela HSM&L de celebração dos 500 do nascimento de Camões, Isabel Almeida traz-nos uma exposição que investiga a vida, as viagens e o legado literário de Camões, um explorador tanto na poesia quanto na realidade.

O século XVI foi um período de transformações, uma era de Descobrimentos. Enquanto Portugal expandia a sua influência marítima, cartógrafos redesenhavam os mapas do mundo e a ciência florescia. Camões viveu essa época, capturando o espírito deste período em «Os Lusíadas», onde narra a viagem de Vasco da Gama à Índia. Inspirada na literatura clássica, mas profundamente moderna na sua visão, a sua obra épica expressa as tensões entre passado e presente, mito e realidade, exploração e introspecção.

Esta exposição ilustra como o mundo foi re-imaginado: como os continentes evoluíram na sua representação e como a cartografia influenciou as descrições poéticas dos mares de Camões. Quem é o verdadeiro herói de Os Lusíadas? Seria Vasco da Gama, a nação portuguesa ou o próprio Camões? Por meio de uma narrativa envolvente, a exposição examina a sua visão do heroísmo, desde o mítico Adamastor até às suas reflexões sobre destino, justiça e ambição humana.

Trata-se de uma obra que mistura a epopeia clássica com tradições ibéricas e sonetos líricos com uma crítica social afiada. Descubra como a sua poesia entrelaçou influências diversas, para criar um legado intemporal. Os visitantes são convidados a interagir de novas maneiras com as palavras e ideias camonianas, oferecendo uma nova perspectiva sobre o seu legado. 

Junte-se a nós nesta viagem literária—onde as palavras se tornam mapas, a poesia encontra a história e a voz de Camões ecoa através do tempo.» 

Sinopse da exposição no portal da Fundação Gaudium e Magnum

* * * 

«THE LEGACY OF LUÍS DE CAMÕES: PORTUGAL’S GREATEST POET PORTUGAL’S GREATEST POET

At the close of the European Renaissance, when intellectual curiosity and scientific inquiry were flourishing, Luís de Camões, Portugal’s most celebrated poet, lived a life marked by travel and exploration.

To commemorate the 500th anniversary of Camões’ birth, the Gaudium Magnum Foundation and the Hispanic Society Museum and Library are strengthening their partnership through a public program of events. It comprises an exhibition featuring a selection of rare books related to Luís de Camões and a symposium highlighting the major contributions of European humanists and artists to the cultural dynamics of the sixteenth century.

His writings were deeply influenced by his experiences as a navigator for the Portuguese empire. Camões’ most renowned work, the epic poem “Os Lusiadas”, published in 1572, immortalizes Vasco da Gama’s historic discovery of the sea route to India. This seminal text, considered the most important work in Portuguese literature, masterfully recounts the journeys of Vasco da Gama, as well as those of Pero da Covilha and Afonso de Paiva.» 

Sinopse da exposição no portal do Museu 
nova-iorquino – Hispanic Society Museum & Library 

Numa curta-metragem, a curadora da exposição em Nova Iorque antecipa uma visita guiada ao seu conteúdo, maioritariamente constituído por monografias antigas, exibidas num Museu onde os Descobrimentos das duas potências da Península Ibérica merecem lugar de honra: 


Aqui chegados, impõe-se desbravar um pouco da história da Fundação Gaudium Magnum, contada pela cofundadora Maria Cortez de Lobão, que recua à última década do século XX. Hoje, o acervo já abrange mais de uma centena de obras-primas, sobretudo pictóricas e de autores portugueses, que ombreiam com peças de escultura e de mobiliário, tapeçarias, ourivesaria e instalações diversas. O próprio nome da fundação diz muito sobre o espírito que a inspirou e continua a guiar – Grande Alegria (explicado a partir do min. 3:03 do seguinte vídeo) – cunhado na expressão latina «Gaudium Magnum». Trata-se da expressão vaticana, proferida pelo Cardeal Camerlengo, para anunciar a magna notícia da escolha do novo Papa: «Annuntio vobis gaudium magnum! Habemus Papam!”» (anuncio-vos uma grande alegria – temos Papa), como aconteceu há um mês (8 de Maio), quando Leão XIV assumiu a Cátedra de Pedro. Na analogia de M. Cortez de Lobão: corresponde à boa nova, que ecoa nas famílias, quando nasce um bebé:


Se esta aventura de colecionismo começou há perto de 30 anos, a Fundação só foi criada em 2018, com o objectivo de «enaltecer Portugal, a língua portuguesa, a sua cultura e as suas gentes. Pretende ser uma instituição aberta ao mundo, promover o Bem Comum e contribuir para uma sociedade mais justa, à luz dos valores cristãos e da missão de Portugal no mundo. Para isso, aposta em quatro eixos estratégicos: Cultura, Educação, Beneficência e Investigação. No campo cultural e, em particular, na sua coleção de arte, reúne um valioso espólio de peças centradas em Old Masters, com uma forte componente de autores portugueses.» [in https://www.gaudiummagnum.org/].

Em tempo de Santos Populares, onde até os manjericos servem de pedestal verde a versos divertidos e informais, percebe-se como a cultura nacional está eivada de poesia, em todos os formatos e gostos literários. Ainda bem que Portugal teve o privilégio de um dos seus compatriotas ser dos maiores poetas de todos os tempos. Até naqueles pequenos retângulos hasteados na ‘erva dos apaixonados’, típica desta quadra festiva caberiam, na perfeição, excertos de sonetos camonianos: «Busque Amor novas artes, novo engenho,/ Que dias há que n'alma me tem posto /um não sei quê, que nasce não sei onde,/ vem não sei como, e dói não sei porquê.»; «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, /Muda-se o ser, muda-se a confiança; /Todo o mundo é composto de mudança,/ Tomando sempre novas qualidades»; «(Amor) É um não querer mais que bem querer/ É um andar solitário entre a gente /É nunca contentar-se de contente /É um cuidar que se ganha em se perder», já para não falar da célebre abertura do seu soneto mais célebre: «Amor é fogo que arde sem se ver».  


Ainda bem que Amália cantou Camões no maravilhoso fado musicado por Alain Oulman: 


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

17 junho 2025

Poemas dos dias que correm

 Vivo na esperança de um gesto


Vivo na esperança de um gesto
Que hás-de fazer.
Gesto, claro, é maneira de dizer,
Pois o que importa é o resto
Que esse gesto tem de ter.
Tem que ter sinceridade
Sem parecer premeditado;
E tem que ser convincente,
Mas de maneira diferente
Do discurso preparado.
Sem me alargar, não resisto
À tentação de dizer
Que o gesto não é só isto...
Quando tu, em confusão,
Sabendo que estou à espera,
Me mostras que só hesitas
Por não saber começar,
Que tentações de falar!
Porque enfim, como adivinhas,
Esse gesto eu sei qual é,
Mas se o disser, já não é...

Reinaldo Ferreira (Livro I - Um voo cego a nada)

***

Ela, a Poesia de hoje

Ela, a Poesia de hoje,
Como que foge
De si mesma e se dói
De ter sido algum dia
Meramente poesia.

Erra,
Solitária e solene,
Nos caminhos da terra,
E vitupera o céu
E o que ele encerra:
- Ah! morra! Ah! esqueça Orfeu!

Canta a grilheta, a enxada
E a madrugada
Dos dias que hão-de-vir,
E como frutos, cair
Em nossas mãos...

Fala no imperativo,
E tem por vocativo
- Irmão! Irmãos!

Mas longe,
E perto, porque em nós,
Onde uma fonte canta
Uma toada clara,
Um fauno sabe e ri,
Na pedra gasta e escura,
Um fim de riso
De ironia rara...

Reinaldo Ferreira (Livro I - Um voo cego a nada)

16 junho 2025

Da redenção pela dança

 

O que há de comum entre Namoro, uma música interpretada por Fausto Bordalo Dias (muito cá de casa, como se dizia dantes) e Bela Portuguesa, uma música interpretada por Marante, um cançonetista que nunca havia passado por este estabelecimento? E não, a resposta não é são ambas músicas...

Fausto canta a desdita de Benjamim na sua paixão por uma rapariga cujo nome nunca vem a saber-se. Benjamim manda-lhe uma carta em papel perfumado e ela diz que não; manda-lhe um cartão que o amigo Maninho tipografou e ela diz que não; manda-lhe um recado pela Zefa do sete e ela diz que não; pede um feitiço forte e seguro, e o feitiço falhou; oferece-lhe jóias, paga-lhe doces, afaga-lhe as mãos e fala-lhe de amor, e ela diz que não.

Já Marante assenta toda a sua canção num refrão forte, poderoso e ritmado:

Eu sei, eu sei
És a linda portuguesa, com quem eu quero casar
Já corri mundo e não encontro outra igual com quem eu queira ficar
A mais formosa, mais gostosa das mulheres que Deus pode criar 
 

A resposta à pergunta o que há de comum em ambas as músicas? poderia ser, então, esta ideia de procura da mulher desejada. A resposta não me satisfaria, gostava de atirar-me mais para fora de pé.

***

Passei a noite de Sábado em Vila Real de Santo António, onde já tinha estado, por duas vezes, em 2007. Celebram-se, um pouco por toda a parte, aquilo a que no Brasil se chamam as festas juninas e aqui não foi excepção: um dueto composto por um cançonetista e um tocador de acordeão (com a prestimosa colaboração de um gingarelho que marca batidas diversas) animou, de cima de um palco, as largas dezenas de pessoas que se reuniram na bonita praça Marquês de Pombal e a dúzia de casais que se atiraram ao espaço para dançar.

Metade dos casais que bailaram eram compostos por duas mulheres: duas raparigas novas, duas senhoras mais de idade, algumas talvez irmãs, outras apenas amigas. Nalguns aspectos, o mundo está igual: como há 50 anos ou mais, as senhoras, à falta de parceiro masculino, atiram-se à pista, sem vergonha nem pudor, para dançar uma valsa, uma marcha, um arremedo de tango ou de de kudoro. É, no fundo, o que sempre foi nestes espectáculos mais populares onde o preconceito não entra. 

***

Volto à pergunta inicial: o que há de comum entre Namoro e a Bela Portuguesa? A resposta é simples: a redenção pela dança. A pista - ou o espaço indefinido onde se dançou - encheu-se com Marante a cantar a linda portuguesa com quem quer casar. Já Fausto termina de forma positiva a música que interpreta com maestria:

Tocaram uma rumba e dancei com ela
E num passo maluco voamos na sala
Qual uma estrela riscando o céu
E a malta gritou: Aí Benjamim!

Olhei-a nos olhos, sorriu para mim
Pedi-lhe um beijo
Lá-lá-láiá, ará-rá-lá
E ela disse que sim

Quando tudo o resto parece falhar, a dança redime-nos, seja para conquistar a rapariga com uma rumba, seja para dançar com quem nos dá mais gosto - ou que diz que sim. 

JdB 

15 junho 2025

Solenidade da Santíssima Trindade

 EVANGELHO – Jo 16,12-15

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Tenho ainda muitas coisas para vos dizer,
mas não as podeis compreender agora.
Quando vier o Espírito da verdade,
Ele vos guiará para a verdade plena;
porque não falará de Si mesmo,
mas dirá tudo o que tiver ouvido
e vos anunciará o que está para vir.
Ele Me glorificará,
porque receberá do que é meu
e vo-lo anunciará.
Tudo o que o Pai tem é meu.
Por isso vos disse
que Ele receberá do que é meu
e vo-lo anunciará».

13 junho 2025

Dia de Santo António



Passeio de Santo António

Saíra Santo António do convento,
A dar o seu passeio costumado
E a decorar, num tom rezado e lento,
Um cândido sermão sobre o pecado.

Andando, andando sempre, repetia
O divino sermão piedoso e brando,
E nem notou que a tarde esmorecia,
Que vinha a noite plácida baixando…

E andando, andando, viu-se num outeiro,
Com árvores e casas espalhadas,
Que ficava distante do mosteiro
Uma légua das fartas, das puxadas.

Surpreendido por se ver tão longe,
E fraco por haver andado tanto,
Sentou-se a descansar o bom do monge,
Com a resignação de quem é santo…

O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade,
O Menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto, uma bica de água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais.
Os rouxinóis ouviam-se distante.
O luar, mais alto, iluminava mais.
.
De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito.
Ela trazia ao ombro a cantarinha,
Ele trazia… o coração no peito.

Sem suspeitarem de que alguém os visse,
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O Menino, porém, ouviu e disse:
- Ó Frei António, o que foi aquilo?…

O Santo, erguendo a manga de burel
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como o mel:
- Não sei o que fosse. Eu cá não ouvi nada…

Uma risada límpida, sonora,
Vibrou em notas de oiro no caminho.
- Ouviste, Frei António? Ouviste agora?
- Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho.
.
- Tu não estás com a cabeça boa…
Um passarinho a cantar assim!…
E o pobre Santo António de Lisboa
Calou-se embaraçado, mas por fim,

Corado como as vestes dos cardeais,
Achou esta saída redentora:
- Se o Menino Jesus pergunta mais,
… Queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!

Voltando-lhe a carinha contra a luz
E contra aquele amor sem casamento,
Pegou-lhe ao colo e acrescentou: - Jesus,
São horas… e abalaram pró convento.

Augusto Gil

12 junho 2025

Dos ventos Algarvios

 



Estou a banhos no Algarve. Felizmente estou sóbrio e a senilidade ainda não me bateu totalmente à porta, porque senão imaginar-me-ia no Guincho, tal a ventania. Cheguei à praia pouco passava das 5 da tarde - praia vazia... Ao longo dos alguns quilómetros que palmilhei na maré baixa, uma pessoa a tomar banho. Há uma esperança que mude, para que não corramos de dizer eh pá! Mais valia ficares no Guincho: tem ondas e é mais perto... Uma praia vazia tem encantos e estar a 10 minutos a pé do mar encantos ainda maiores, onde quer que seja.

JdB 

11 junho 2025

do teu amor *

 numas águas furtadas perdidas,

a cidade branca lá fora,
e nós, poetas e poema 'in motion',
entretidos a ser felizes.

disse um poeta russo
que nada do que excluía a alegria lhe interessava.
dias houve, minha querida,
em que tudo o que te excluía me dizia nada vezes nada.

como disse outro poeta, daqueles a sério,
um mundo que te inclui não pode ser um mau mundo.
mas agora, em que restamos já só de memória,
isso vale um avo de mel coado - moeda fraca e incolor.

sobeja-nos o mistério - e a 'feérie' -
de um dia, num vão de escada, termos sido capazes
de reinventar (sujeito, complemento e predicado)
essa coisa do amor.

(e tudo isso e o seu contrário:
o que a vida tem de pior e de melhor)

incluo aqui os beatles, kafka, ruy belo,
mais os cinco violinos do sporting,
toda a música sacra,
nova iorque e a matemática,
o dia mais perfeito,
daqueles que fazem rimar agosto e calor.

nada, minha menina, nada de nada,
chega ao sabor da tua pele,
essa ideia desvairada e luzidia
de matar fome e sede e mágoa
com as migalhas do teu amor.


gi.

* publicado originalmente a 22 de Janeiro de 2010

10 junho 2025

10 de Junho

 O INFANTE


Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

s.d.
Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).  - 57.

***


Poema e imagem tirados daqui 

08 junho 2025

Solenidade do Pentecostes

 EVANGELHO – João 20,19-23

Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
onde os discípulos se encontravam,
com medo dos judeus,
veio Jesus, apresentou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou,
também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos».

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