“CONCERTO CAMÕES” E O APOIO DE FRANCISCO À UCRÂNIA (NOS BASTIDORES)
Na próxima Sexta-feira, às 21h, o Pavilhão de Portugal será palco do «Concerto Camões na Eternidade do Tempo», de entrada livre, sujeita à lotação da sala. Programa disponível em Temporada 24/25 Abr-Set da Música na Universidade de Lisboa.
No programa do concerto, menciona-se a encomenda ao compositor Nuno Côrte-Real (1971-…), comemorativa do magno poeta da língua portuguesa:
• «junto à entrada do Refeitório do Claustro do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, existe um relevo pétreo retratando Cristo atado a uma coluna. Daí, surgiu o mote para a encomenda a Nuno Côrte-Real, para celebrar o V Centenário do nascimento de Luís Vaz de Camões (1524-1580), que aí repousa, pelo menos em espírito, num cenográfico túmulo diante de outro, o de Vasco da Gama (1469-1524). Resultou na obra ‘Time Stands Still’, estreada a 27 de Abril de 2019, no festival do CCB ‘Dias da Música’.
• As sete canções do compositor renascentista inglês John Dowland, falecido em 1626, são intercaladas com interlúdios instrumentais de Nuno Côrte-Real, dedicados a amizades do seu universo pessoal». As canções de Dowland baseiam-se em danças da época: a pavana (lenta) e a galharda e sobre elas compôs o português, oferecendo uma leitura contemporânea da música de seiscentos: «apesar de já estarmos longe desse período da História, há, porém, uma certa melancolia nas entrelinhas do nosso tempo que tornam estas canções vivíssimas», observa Côrte-Real. No fundo, os dois compositores «são ‘musicus poeticus’ na sua mundividência, na sua evasão da realidade, procurando o infinito… Como diz Afonso Miranda, ‘a obra conclui com uma meditação sobre o mistério do tempo, a imobilidade da mudança, a eternidade’. O Tempo está parado» e Camões chega-nos através de um harmonioso diálogo musical entre gerações distantes.
Com a Partida de Francisco, a 21 de Abril, avivou-se o interesse pela biografia do Papa argentino, nascido em Buenos Aires, a 17 de Dezembro de 1936, filho de pais Italianos, recém imigrados para o Hemisfério Sul. A história de Bergoglio, que valorizava muito o ensino da literatura nos seminários, estende-se à sua amizade com Jorge Luís Borges, que convenceu a dar um conjunto de aulas aos seus alunos!
Também episódios do passado, passados nos bastidores da Santa Sé, estão agora a vir a lume, confirmando a abertura deste Papa muito atento aos outros. Uma semana depois da sua morte, foi publicado no Vatican News a história da relação filial do Pontífice jesuíta com um jovem contestatário ucraniano, que professava o protestantismo. Tudo começou por declarações do Papa sobre a invasão russa da Ucrânia, que magoaram Denys Koliada. De seguida, resolveu escrever a Francisco, sem esperar resposta, mas repondo o que considerava ser um noticiário mais factual sobre as atrocidades que testemunhava, quase diariamente. Imprevistamente, o Papa chamou-o a Santa Marta e assim começaram uma amizade fraternal, que desmente o que pareceu ser um certo distanciamento diplomático do Vaticano em relação à Ucrânia, numa equidistância estranha entre o país agressor e o agredido:
A AMIZADE ENTRE FRANCISCO E UM JOVEM UCRANIANO
Trata-se de uma história feita de cartas e encontros entre o Papa, pastor de todos, e Denys Koliada, protestante, testemunha das atrocidades da guerra. Um vínculo que nasceu das críticas do jovem ao Pontífice e seguiu através de troca contínua de cartas e 25 encontros em Santa Marta. (O Papa) "Sofria pela Ucrânia, perguntava-me sobre as pessoas. E disse-me: “os ucranianos têm o direito e o dever de se defender".
Antes do encontro, houve um confronto. Antes das cerca de 80 cartas de acompanhamento espiritual durante o período da guerra, antes dos 25 encontros na Casa Santa Marta, antes de estabelecer uma relação de filiação e de chegar a um ponto de confiança, a ponto de exclamar - diante das críticas recebidas na Ucrânia por algumas das suas expressões - “não têm o direito de dizer que não amo a Ucrânia”. Entre o Papa e Denys Koliada, um ucraniano de 30 anos, houve, de facto, um confronto. Denys, proveniente da pequena cidade de Kaniv, resolveu partilhar o seu testemunho com os media do Vaticano, para prestar homenagem àquele que foi um pai e um guia no momento mais sombrio do seu país. Conta-nos:
Quando a invasão em larga escala começou na Ucrânia, enviei ao Papa Francisco cartas escritas por crianças, por meio de um pastor argentino, Alejandro, seu velho amigo de Buenos Aires. Palavras de medo, de perda, de orações pela paz... Pouco tempo depois, ouvi algumas das declarações do Papa sobre a guerra, que me magoaram. Não por que ele quisesse magoar-nos, mas porque nós, na Ucrânia, vivíamos no epicentro da dor. E, às vezes, até mesmo uma boa palavra, se não for contextualizada, pode cortar como uma faca. Escrevi-lhe, então uma carta honesta, até mesmo dura, que terminava assim: "a Ucrânia dirige-lhe a pergunta de Pedro: Simão de Jonas, amas-Me?" Eu não esperava uma resposta. Quem precisa de outra voz num país onde todos gritam? No entanto, no dia seguinte, o Papa respondeu-me. Simplesmente, sem diplomacia: "Venha. Quero que seja você a contar-me pessoalmente. Preciso ouvir tudo de si".
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Um dos encontros na Casa Santa Marta entre o Papa e o jovem Denys |
O DIREITO E O DEVER DE SE DEFENDEREM
Então Denys foi a Santa Marta. Ele, filho de uma família protestante, ex-aluno da Universidade Católica Ucraniana. Foi até lá, não sem um medo inicial, além da curiosidade de conhecer o Papa, que sempre lhe pareceu “um pastor que nunca teve medo de ouvir, mesmo aqueles que se aproximavam dele com dor e acusações”.
Foi assim que nossa história começou – conta. Não foi uma audiência, mas um encontro entre uma ferida e um coração em busca de diálogo. Cheguei naquele dia com um pequeno grupo: eu, o meu professor Myroslav Marynovych (ex-prisioneiro político do Gulag), o pastor Alejandro e alguns amigos. Não trouxemos nada connosco, excepto a esperança de sermos ouvidos. E o Papa recebeu-nos e dedicou-nos uma hora e meia. Ainda assim, o mais significativo não foi o tempo despendido, mas a maneira como ele nos ouviu. Sem se defender. Sem se justificar. Ele ouviu, inclinando-se para a frente, lembrando-se de nomes, fazendo perguntas, pedindo esclarecimentos. Contou-nos sobre um dos seus professores, o Beato Vladyka Chmil, um padre ucraniano, que morrera num campo de concentração, porque não desistira de ser um pastor para todos, até mesmo para os seus inimigos. Naquela ocasião, ele disse uma frase simples, mas muito importante para mim: "os ucranianos não têm apenas o direito, mas também o dever de se defender. Porque quem não se defende, está perto do suicídio".
A PREOCUPAÇÃO PELOS SOLDADOS, PRISIONEIROS, VIÚVAS E CRIANÇAS
Com o jovem Denys, alcunhado por Francisco, com humor, como “protestante unificado”, a história continuou após aquele encontro. "Dê-me o seu endereço. Vou escrever-lhe", disse o Papa. A partir daí, trocaram uma série de cartas, cerca de 80, que o jovem guarda em casa e que atualmente considera um tesouro pessoal.
Eu contava ao Papa o que estava a acontecer na frente de guerra, partilhava as histórias dos soldados, dos prisioneiros, dos capelães, das viúvas, das crianças. E ele lembrava-se dos nomes. Perguntava-me sobre eles. Numa das cartas, escreveu-me: "Como está Gennadij?" (capelão militar ucraniano). E sua esposa, como se sente? E aquelas crianças? Estão todas vivas, depois do bombardeio?"
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Denys entrega alguns presentes ao Papa Francisco |
CARREGAR A CRUZ
Além das cartas entre Francisco e esse “querido jovem”, como lhe chamava o Papa, houve 25 encontros no Vaticano, nunca tornados públicos, apenas para se ouvir um ao outro, sobretudo a história de Denys e as histórias de um povo em guerra. Observa Denys sobre o Papa e as suas palavras de pai, pastor de todos: “era uma presença verdadeira, silenciosa e obstinada”.
Quando eu estava cheio de raiva - a raiva daqueles que vêem crianças a morrer todos os dias, daqueles que vêem casas destruídas, a esperança despedaçada - eu escrevia-lhe. Nem sempre com moderação, às vezes com dureza e desespero. Ele sempre respondia: “não carregue a sua cruz sozinho. Cristo também precisou de Simão” – repetia-me várias vezes. Era como se soubesse que eu iria cair novamente, que eu queria aliviar esse campo de dor. E naquelas palavras encontrei forças para ficar.
Lembro-me bem de uma de nossas conversas. Percebi que ele estava muito cansado. Então, eu disse-lhe: “Querido pai, não carregue a sua cruz sozinho. A cruz também carrega o fardo da solidariedade com o rebanho”.
Outra frase que Denys Koliada nunca esquecerá, foi proferida na altura em que muitos na Ucrânia criticaram fortemente Francisco por algumas das suas declarações públicas. Encontrei-o e disse-lhe: “muitos na Ucrânia estão magoados. Muitos dizem que o senhor não nos ama”. Com simplicidade, ele respondeu: “Vocês podem dizer que sou um pecador. E vocês têm razão. Mas não têm o direito de dizer que eu não amo a Ucrânia.”
Eu não poderia permanecer em silêncio diante do facto de que a guerra é maligna. E que as palavras sobre paz, se não forem bem explicadas, podem soar como um insulto àqueles que estão a morrer. Fui àquele encontro como um homem que estava a sofrer. Disse-lhe: 'Sua Santidade, até mesmo uma boa palavra pode tornar-se uma ferida, se não for explicada àqueles que gritam de dor. Mesmo a melhor das intenções precisa de clareza, quando se fala de guerra”. Ele olhou-nos nos olhos e respondeu: "Obrigado por me dizer isso. Talvez eu estivesse errado. Se necessário, venha novamente. Vamos conversar sobre isso, novamente. Quero entender”.
A DOR DA CRUELDADE COM AS PESSOAS
Algumas vezes, foi o próprio Papa que tomou a iniciativa e entrou em contato com o jovem. Fez isso, quando viu imagens da tortura sofrida pelos soldados ucranianos. “É horrível. Essa é a vossa Via-Sacra... Mas vocês não são apenas testemunhas do sacrifício. Vocês são testemunhas da Ressurreição”, escreveu ele, certa vez. “Ele sabia bem o que estava a acontecer. E sofreu profundamente”, garante Denys.
A crueldade nunca o tornou duro. Pelo contrário, ele permaneceu manso, capaz de ouvir, lembrar e rezar por pessoas que nunca terá conhecido. Acredito que essa foi sua verdadeira resposta à guerra: não com justificações, não com teorias, mas com uma compaixão que não desiste. Com um amor que não tem medo de ficar ao lado dos feridos. Vi um homem que, realmente, tentou estar próximo. E também vi com que frequência, cruel e deliberadamente, as suas palavras foram tiradas do contexto, construindo a imagem de um Pontífice indiferente, sem ouvir o que ele realmente dizia.
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O jovem ucraniano ao encontrar o Papa na Casa de Santa Marta |
A BOAS OBRAS NO SILÊNCIO
O Papa também deu apoio material a viúvas, órfãos, ex-presidiários e feridos. “Eu dizia-lhe: 'talvez devêssemos contar estas coisas, para que as pessoas soubessem'. E ele sorria e respondia: 'as boas obras precisam do silêncio'”.
Francisco não ficava apenas no nível dos apelos, das declarações. Preocupava-se com as pessoas concretas. Os rostos. As histórias. As mulheres que haviam perdido seus maridos. As crianças sem pai. Aqueles que haviam retornado da prisão. Muitas vezes, vi a sua emoção, quando lhe contava histórias de guerra, mas também a esperança nos seus olhos, quando eu falava da coragem dos voluntários, dos médicos, dos soldados que, apesar de tudo, não haviam perdido a humanidade.
ALGUÉM QUE SABIA OUVIR
Essa é a imagem que permanece com Denys, agora que o Papa Francisco partiu: “sinto-me como um órfão”, confessa, “como alguém que perdeu um amigo, que não tinha medo das minhas lágrimas, da minha raiva, das minhas perguntas. Lembro-me com frequência das suas cartas, das recomendações: 'rezo por si. Reze também por mim'. E, de vez em quando, pego instintivamente no telefone ou na caneta para lhe escrever, como fazia quando a dor era grande. Mas, desta vez, não haverá resposta.
Sinto falta dele. Muita No entanto, junto com essa dor, sinto uma profunda gratidão. Gratidão por ter tido alguém que sabia ouvir, que ficava ao meu lado, mesmo quando não tinha respostas para me dar.
Artigo de Salvatore Cernuzio, publicado no Vatican News,
a 30 de Abril de 2025 (adaptado ao português europeu)
Que saudades do Papa Francisco! E grande suspense à espera do “fumo branco”…
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)