30 maio 2025

Do (sor)riso *

 

De uma entrevista a Umberto Eco

O excerto de entrevista acima foi-me enviado pelo meu querido amigo ATM em resposta a uma quadra que lhe mandei (autoria de Álvaro Duarte Simões), cantada num fado da Amália - Algemas - de que gosto muito. Reza assim:

Desde sempre que conheço
Porque a vida me ensinou
Que o riso é sempre o começo
Do sorriso que findou

A quadra sempre me intrigou até ao momento em que descortinei, para mim, a diferença entre riso e sorriso. Rimos por tudo o que refere Umberto Eco: a timidez, a vergonha, a loucura, a felicidade. Rimos sozinhos ou acompanhados - em frente a uma televisão, do absurdo de alguém que escorrega e cai, do nervoso de uma situação qualquer, de uma frase cómica encontrada por acaso numa revista.

Mas, ao contrário do riso, o sorriso estabelece o comércio entre os seres humanos. O sorriso é o toque físico entre dois seres onde a mão não é uma condição necessária. Rimos da patetice, mas sorrimos para o próximo. Sorrir é estender o calor humano, é tocar o cotovelo da empregada de balcão, é encostar uma mão às costas sofridas de um operário, é abraçar aquele que nos salva a vida, seja um médico ou um padre ou um amigo, porque somos corpo e alma. Mesmo que não o façamos, e tudo se resuma ao sorriso.

Sorrir, como dançar ou amar, requer a existência de um outro. Quando já só rimos é porque algo se acabou. O sorriso, neste caso. Ou talvez o outro.

JdB


* publicado originalmente a 22 de Abril de 2015

29 maio 2025

Músicas dos dias que correm

(Announced plans to build a nuclear fallout shelter at Peterborough in Cambridgeshire)
(Three high court judges have cleared the way)
(It was announced today, that the replacement for the Atlantic Conveyor
The container ship lost in the Falklands conflict would be built in Japan, a spokesman for)
(Moving in. They say the third world countries, like Bolivia
Which produce the drug are suffering from rising violence)

Tell me true, tell me why, was Jesus crucified
Was it for this that Daddy died?
Was it for you? Was it me?
Did I watch too much TV?
Is that a hint of accusation in your eyes?
If it wasn't for the Nips
Being so good at building ships
The yards would still be open on the Clyde
And that can't be much fun for them
Beneath the rising sun
With all their kids committing suicide
What have we done, Maggie, what have we done?
What have we done to England?

Should we shout, should we scream
"What happened to the post war dream?"
Oh Maggie, Maggie what did we do?

28 maio 2025

Poemas dos dias que correm

 Não há mais metafísica no mundo senão chocolates

O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

Fernando Pessoa

27 maio 2025

O mal: uma difícil questão *

A Cabala judaica ensina que o mal surgiu no mundo quando um escriba preguiçoso se equivocou na escuta e transcreveu erradamente uma letra da Escritura Sagrada. Um rabino comentador da Cabala, Soloviel, afirma: «As duas vozes, aquela de Deus que não devemos nomear e a voz do mal, do mal inominável, são terrivelmente semelhantes. A diferença entre uma e outra é apenas o som de uma gota de chuva a cair no mar». Ambas são formas poéticas de interpretar a questão. Mas refletir sobre o mal, qualquer que seja a forma adotada, é já uma vitória, pois não raro ele nos aparece como austeríssimo lugar onde o pensamento entra em colapso.

O mal toca universalmente as existências e constitui a todos os níveis um desafio. O importante, porém, como explica o filósofo Paul Ricoeur, não é tanto insistir em encontrar uma solução. Mais relevante que pensar donde vem o Mal é sim descobrir o que podemos fazer contra ele. A experiência do mal desafia à luta prática contra o próprio mal. Reorienta-se, assim, o olhar para um novo futuro.

Como é que o mal deixa de ser o irreparável? Quando aproveitamos o contexto de mal para um acontecimento doutra ordem. Quando deixamos apenas de perguntar: «Porque é que isto me aconteceu?». E investimos antes as nossas forças criadoras a decidir: «Como é que devo reagir vitalmente a isto que aconteceu?». Apetece citar aqui uma página do impressionante Diário de Etty Hillesum, um dos grandes testamentos espirituais do nosso tempo. Está lá tudo. «Foi lá [e a autora está a falar da sua experiência no campo de concentração], entre as barracas, repletas de gente agitada e perseguida, que achei a confirmação para o meu amor por esta vida. Não tive um único corte com a vida. Havia como que uma grande continuidade, plena de sentido. Como é que alguma vez vou conseguir descrever isto tudo? Descrever de modo que outros também consigam sentir como na realidade a vida é bela!».

É preciso contrapor à experiência do mal uma sabedoria, enriquecida pela meditação interior, que dialogue com as transformações pelas quais passamos. O modelo talvez seja realmente o dos trabalhos do luto. O luto é a aprendizagem gradual da perda até senti-la dentro de nós como possibilidade misteriosa de reencontro. Chegarmos a sentir, por exemplo, que a morte dos que amamos ainda pode gerar vida, no sentido de que não nos perdemos deles, mas continuamos a crescer e a maturar conjuntamente, só que de forma diferente. O luto, quando bem vivido, é um trabalho espiritual, uma mudança qualitativa que nos entreabre a um outro entendimento da vida. Em relação ao mal precisamos disso: aprender que a experiência do mal não é uma faca que nos decepa a vida.

Progressivamente, e sublinhe-se aqui a importância da progressividade, podemos ir percecionando que a experiência do mal não acarreta necessariamente a destruição de nós próprios. Tornamo-nos então capazes de semear de novo, apesar de tudo e contra tudo o que aconteceu. A ampliação da vida e o seu florescimento estão prontos para acontecer.

Texto do Pe. José Tolentino Mendonça tirado daqui.

* publicado originalmente a 30 de Janeiro de 2011

25 maio 2025

VI Domingo da Páscoa

EVANGELHO – João 14,23-29

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Quem Me ama guardará a minha palavra
e meu Pai o amará;
Nós viremos a ele
e faremos nele a nossa morada.
Quem Me não ama não guarda a minha palavra.
Ora a palavra que ouvis não é minha,
mas do Pai que Me enviou.
Disse-vos estas coisas, estando ainda convosco.
Mas o Paráclito, o Espírito Santo,
que o Pai enviará em meu nome,
vos ensinará todas as coisas
e vos recordará tudo o que Eu vos disse.
Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz.
Não vo-la dou como a dá o mundo.
Não se perturbe nem se intimide o vosso coração.
Ouvistes o que Eu vos disse:
Vou partir, mas voltarei para junto de vós.
Se Me amásseis,
ficaríeis contentes por Eu ir para o Pai,
porque o Pai é maior do que Eu.
Disse-vo-lo agora, antes de acontecer,
para que, quando acontecer, acrediteis».

23 maio 2025

De uma breve estadia em Geneve (II)

Dia de curiosidades: 

  • Estou numa conferência (à margem da World Health Assembly) onde só estão estrangeiros. As duas primeiras pessoas que conheço são brasileiras. Qual a probabilidade de, numa reunião onde estão 60 pessoas, me cruzar com dois brasileiros no espaço de 5 minutos (e nem sequer estavam juntos...) 
  • Recebo uma chamada de um telefone que não conheço. Do lado de lá, um cavalheiro pergunta-me, antes sequer de se ter apresentado: o senhor foi alferes em Abrantes, em 1981? Respondo que sim, ao que me diz o cavalheiro, com um ar que intuo divertido: então está a dever-me dinheiro por tantas vezes que me mandou encher [jargão militar para 'fazer flexões'] na recruta. Perguntei-lhe o nome, por amabilidade, e percebi - o que seria mais do que natural - que não fazia a mais leve ideia de quem ele era, nem de quem seriam os outros recrutas. Já lá vão 44 anos... Percebi que estavam a organizar almoços de encontro de recrutas / aspirantes da altura. Não conhecerei ninguém, nem sei como chegaram ao meu telefone. Prevê-se um almoço para depois do Verão... 
  • Meto-me num Uber e reparo que o motorista - um cavalheiro na casa dos 50 e muitos - usa luvas para guiar, o que me parece fora do vulgar. Paramos num semáforo, e o carro da frente tarda em arrancar quando cai o sinal verde. O "meu" motorista começa a buzinar e eu tenho uma sensação de um déjá vue. Antes de perceber o que quer que seja, o cavalheiro das luvas vocifera entre-dentes mas audível: ‘f@^*#’. Era português de Belas e a mulher é de Viseu, onde têm um apartamento e uma vivenda. Falamos de chanfana e da terra da mulher e ele informa: onde se come bem aqui é na casa do Benfica. Há bacalhau, feijoada e vários outros pratos. Paga-se x francos e é tudo à gô-gô (que, presumo, signifique à discrição). E disse ainda à amiga filipina com quem eu estava no carro: há um português em todos os lugares do mundo; só não há na lua porque não há nada para limpar...
JdB
 

22 maio 2025

De uma breve estadia em Geneve (I)

Estou em Geneve (detesto a tradução Genebra, lembra-me a bebida) durante dois ou três dias para reuniões. Estive na Suiça há muitos anos, não sei se estive em Geneve, mas penso que não. Hoje andei muito a pé pela parte velha da cidade. O que posso dizer? que é uma cida simpática para se andar, com partes bonitas e outras menos interessantes. A minha primeira reacção é: já vi melhor...  


Não é por acaso que o país é de relojoeiros. Não sei se se consegue ler o renque de anúncios no topo dos edifícios acima, mas são só de marcas de relógios. Do outro lado do rio é quase a mesma coisa. 


Estas duas senhoras demoraram-se 10 minutos ao pé de mim, entretidas com selfies. Percebi que eram árabes, pelo que o turbante (uma coisa que as artistas de cinema de antigamente, e algumas senhoras mais chiques, usavam também) poderia substituir o hijab. Ao fim de algum tempo apareceu uma árabe, tapada dos pés à cabeça, mas com a cara destapada - que começou a gritar com elas. Não percebi o que dizia, mas percebi que não se conheciam. Não sei se bramava contra as selfies, se bramava contra um ar excessivamente ocidental das senhoras, que discretamente viraram as costas e seguiram à sua vida.


O meu tempo de viajar sozinho e com gosto acabou. Ando menos do que andava, pelo que os dias se tornam mais comprido. Falta-me a partilha, e a ideia de jantar num restaurante sozinho a olhar para um telemóvel não me agrada. O que vale é que amanhã e 6ªf já trabalho e depois regresso ao solo pátrio.  

JdB

21 maio 2025

Vai um gin do Peter’s ?

 VÍDEOS FANTÁSTICOS  

Começo pela música, com uma obra especialmente pacificante e vitamínica da banda irlandesa Kodaline: 


Na próxima Sexta-feira, às 19h00, a Gulbenkian volta a passar em sinal aberto o concerto onde será interpretado o Requiem de Mozart, pelo coro e pela orquestra da Fundação, sob a batuta da maestrina Stephanie Childress. Esta obra é especialmente intrigante, porque foi composta no final de vida do compositor. Sentindo-se em contra-relógio pela degradação galopante da sua saúde, Mozart empenhou-se nela freneticamente (segundo ficou para a história), o que agravou a sua débil condição física. O facto de a encomenda (1781) desta Missa de Requiem provir de um mecenas anónimo, reverberou em Mozart como um mau presságio do além sobre a aproximação da sua morte, como se estivesse a preparar as suas exéquias fúnebres. Embora não tenha conseguido concluir a peça, esta tornou-se proeminente no mundo ocidental, depois de o austríaco (que morreu esquecido, no mais sombrio anonimato) ter sido reabilitado por Beethoven. 

Outra gravação imperdível é a entrevista, em modo casual e empolgante, do académico de história da ciência Henrique Leitão (HL), doutorado em física, Prémio Pessoa, em 2014, membro da Academia de Ciências, onde é o responsável pela Biblioteca, além de inúmeros cargos internacionais relevantes. Expõe com limpidez e originalidade o contributo decisivo dos Descobrimentos portugueses para a história da ciência mundial, de quinhentos e de seiscentos. O diálogo integra o “CdK podcast” do português conhecido por ‘Guru Mike Billions’, que goza de enorme audiência junto dos mais novos.

A conversa arranca com a causa da quase inexistência de Prémios Nobel atribuídos a portugueses, que HL explica pela ancestral falta de qualidade do ensino luso. Segue-se um conselho audacioso para se aplicar ao ensino a meritocracia e o profissionalismo das nossas academias de futebol, capazes de produzir craques no ‘desporto rei’. Ciente de não faltar talento, mas antes boas estratégias educativas, ilustrou também com as medalhas de ouro ganhas por estudantes portugueses nas exigentíssimas Olimpíadas da Matemática, logo que o Ministério da Educação e os Clubes de Matemática nacionais começaram a preparar os alunos para aquele campeonato.

HL revela, depois, um traço invulgar do país, no período de século e meio a partir do segundo quartel do séc. XVI, que foge ao padrão interpretativo com que os historiadores tradicionais costumam descortinar o passado, procurando os génios, os heróis nos vários campos do conhecimento e das proezas bélicas. Como essa chave de leitura não se aplica ao período áureo dos Descobrimentos portugueses, com pouquíssimos génios identificáveis (excepção no campo científico para um Pedro Nunes, um Francisco de Melo, um Garcia da Orta), houve maior dificuldade em interpretar a história portuguesa… mas omito os motivos nomeados por HL, para evitar ser completamente spoiler desta óptima entrevista.    


É entusiasmante relembrar as provas e as causas da excelência do saber nacional, a partir do XVI, durante cerca de século e meio. Quando Portugal se propôs aventurar na navegação em alto-mar, requerida para sulcar o oceano Atlântico no Hemisfério Sul (onde é menos visível a estrela polar, que orientava a navegação no Mediterrâneo, para além de outras dificuldades), as necessidades náuticas impulsionaram a evolução dos conhecimentos matemáticos, da astronomia e da astrofísica, da geografia, da cartografia, etc. O resultado foi que o país acumulou um saber prático interdisciplinar, que o tornou líder e pioneiro na navegação oceânica. Por mais de um século, Portugal deteve o conhecimento mais avançado do mundo, elevando o patamar do saber científico global e até revolucionando o paradigma científico do Ocidente. Isto prova-se também pelos testemunhos dos estrangeiros sobre Portugal, palco de intensa guerra de espionagem de mapas e portulanos, além do pouco falado rapto de um piloto português, pelo famoso Francis Drake, que foi crucial para a Grã-Bretanha melhorar a sua capacidade naval!

Mais adiante, HL explica a relevância da expansão marítima como fase definidora de cada uma das duas potências ibéricas, forjando-lhes a identidade. Por isso, tratar esta época como um episódio vulgar e menor no somatório de novecentos anos de história acaba por ser redutor e tornar indecifrável o país que somos, hoje!  

Naturalmente, sabemos que aquela supremacia de Portugal se esvaiu no espaço de século e meio, o que HL volta a atribuir à falta de qualidade do nosso ensino, que já não nos permitiu acompanhar o salto científico e tecnológico de meados de seiscentos, começando a ficar para trás. Claro que a ocupação filipina e a Inquisição agravaram a situação nacional, mas estão longe de ser a primeira causa do nosso atraso. Lembra HL que é autoexplicativo, durante toda a Idade Média – bem antes da Inquisição e dos Filipes – ter sido necessário enviar os nossos melhores para estudarem nas universidades estrangeiras, por se reconhecer que as nacionais eram demasiado fracas e periféricas. 

A nossa endémica desvalorização da educação (começando por grande parte das elites, que encaravam o estudo com um hobby dispensável para um senhor) obstaculizou, durante séculos, a criação de talentos científicos, que exige um ensino muito sofisticado, estratificado a partir dos níveis mais elevados e trabalho árduo. Diz tudo – cita HL – a nossa hierarquia académica continuar tão dissociada da qualidade científica, atestando a ausência de meritocracia em todos os patamares do ensino e explicando a quantidade insólita de decisões inadequadas que são tomadas. Naturalmente, este fenómeno piorou com as cíclicas revoadas de igualitarismo ideológico cego (a última, bem recente), que nivelam sempre por baixo. Dá o exemplo da gala que um português comum e figuras públicas fazem de terem sido maus alunos, copiado nos exames ou feitos aos Domingos ou plagiado em provas científicas ou gabar-se de gerir uma empresas apenas com as quatro operações aritméticas básicas, que são práticas inconfessáveis em países onde se cultiva o saber e há níveis mínimos de meritocracia, como no Reino Unido, na Alemanha ou nos EUA. Para analisar melhor esta lacuna na mentalidade lusa, pouco a ver com as dificuldades financeiras, HL contrasta o caso dos emigrantes pobres e analfabetos, que vão para os Estados Unidos: enquanto o filho do pescador asiático já vai para a universidade, os descendentes lusos demoram, em média, quatro gerações a chegar à academia, insuficientemente valorizada pela sua família.

Ainda assim, HL revela algum optimismo quanto ao futuro, designadamente pelo acesso que a net proporciona ao que de melhor se produz, no mundo. Hoje, qualquer estudante nacional pode assistir (e fazem-no) às aulas dos melhores académicos ocidentais do planeta, rasgando horizontes. Refere ainda um programa lançado pela UE, que passou a dar bolsas financeiras avultadas a académicos com talento, em vez de as despejar pelas estruturas das universidades europeias, pejadas de carreiristas sem qualidade científica. 
   
A conversa flui sem se dar pelo tempo, numa abordagem original e interpelativa, que nos ajuda a repensar o país e as escolhas feitas, ao longo de séculos, antevendo-se algum potencial para se começar a inverter os parcos resultados nacionais a nível científico e cultural. Confirma-se, igualmente, a relevância do contributo individual, se houver coragem e ânimo para persistir, mesmo quando em redor predomina o desinteresse. 

No final, o Prof. HL conclui, sublinhando que o interesse pela história nacional é uma forma de afeição indispensável pelo próprio país. Mais: afirma que essa afeição constitui o élan do progresso nacional, que se alimenta (logo depende) do desejo de desenvolver o país. Faz este alerta, por detectar que o ensino recente da história nacional – por toda a Europa – deixou-se contaminar por um cinismo altamente corrosivo, marcado pelo repúdio do passado. A narrativa histórica reduziu-se ao desfile das atrocidades cometidas, algumas q.b. agigantadas, até por apenas se revelar o lado negro dos factos. Este viés negativo, crivado de ódio ao legado histórico, retira aos mais novos o gosto pelo seu país, considerado indigno de ser amado. Claro que não se pretende empolar glórias, nem fantasiar nada do que aconteceu, mas antes narrar com rigor e a isenção possível o curso dos acontecimentos. O passado de qualquer país merece ser conhecido e aprofundado, não por ser o melhor do mundo, mas por se relacionar com a história pessoal dos seus concidadãos, como sucede com a nossa família, onde o amor não provém dos méritos dos seus elementos (que dispensamos de serem campeões nalguma modalidade), mas por ser o nosso contexto de vida afectiva, a raiz da nossa identidade. 

Sabemos quanto algum wokismo tem tentado uniformizar os seres humanos, apagando essa raiz afectiva e constitutiva do “eu”, no fã de esbater todas as diferenças nacionais, regionais, individuais. Assim se subtraem as óbvias diferenças no passado de cada família, de cada povo, quando se pretende eliminar os traços de diferenciação, que residem no âmago da identidade humana. Precisamente Churchill, ciente do valor da história narrada com sentido crítico (sem picos emotivos nem distorções), para permitir ler os sinais dos tempos e fazer escolhas lúcidas, deu este conselho marcante à jovem Rainha Isabel II (contado pela própria): «the farther more you can look, the farther forward you are likely to see». HL acrescenta a importância do amor ao país tal e qual ele é, assim como a importância de se ter um horizonte de vida maximamente amplo, com sentido da transcendência, sem nos conformarmos com um dia-a-dia, em que se vai matando o tempo com os prazeres e as distracções possíveis.  Essa pessoa, cujo ideal se poderia traduzir em «ir andando benzinho», dificilmente se empenhará em grandes projectos, em feitos maiores, de longo prazo, para lá do seu tempo de vida... O progresso está comprometido, se não se recuperar um horizonte maior, em concreto na Europa, demasiado secularizada,  materialista, economicista. O dinheiro per se é um móbil curto para se querer arriscar e tentar ir mais longe. Vale a pena ouvir esta entrevista, como vale a pena a Europa acordar, começando por cada um... 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

20 maio 2025

Moleskine *

Do cenário

Abotoou o casaco assertoado azul que lhe assentava melhor desde que emagrecera por uma conjugação de nervos e disciplina, e pegou no microfone. Armado com competências de criatividade linguística, e temperado por uma convicção católica pré-Vaticano II [cruzes, inferno, Geena onde o verme não morre e o fogo nunca se apaga, culpa, etc.] disse com voz clara: 

Temos dois caminhos. Um sobe e o outro desce

Pelos trabalhadores [ou melhor, colaboradores, nesta modernidade inconsequente de achar as pessoas os nossos melhores activos] perpassou uma aragem de esperança, porque uma alternativa abre essa porta. Alguns sentiram fisicamente essa aragem, como se fosse a materialização de um porvir potencialmente feliz. 

O caminho que sobe leva-nos ao calvário. O caminho que desce conduz-nos ao inferno. No fundo é isto. Vamos reduzir e vamos aumentar, para que a empresa sobreviva. Aumentaremos os sacrifícios, reduziremos as regalias

O Director-geral coçou pensativamente uma parte da barba e rematou, já num tom de barítono em fim de vida útil: espero não ter sido excessivamente optimista.

Os trabalhadores entreolharam-se e identificaram a aragem de esperança: uma porta aberta no fundo do refeitório e uma corrente de ar com cheiro a vitela assada à lafões. 

Dos personagens
Alberto: engenheiro informático, especialista em sistemas da Qualidade, tem 32 anos e um casamento sem descendência que durou 14 meses. No fundo cumpri o ciclo de Deming (Plan, Do, Check Act). Quando fizemos a revisão do sistema havia demasiadas não conformidades. Não nos certificámos e a Júlia trocou-me por uma auditora chamada Laura, natural das Minas de S. Domingos, especialista em 6 Sigma. Monárquico, candidatou-se ao Observatório da Restauração por erro de raciocínio. Não estudou os conjurados e engordou dez quilos. 

Rogério: arquitecto, descontente com a profissão, concorreu à carreira diplomática defendendo o tema: O efeito de uma mesa descomposta no fracasso das negociações. Contribuições para o estudo da viuvez na história da diplomacia. Chumbou e remeteu-se a ansiolíticos durante dois anos, até ter-se cruzado com uma chinesa especialista em acupunctura, arte mandarim e churrasco no carvão. Têm dois filhos - Chiang e Pureza - que frequentam a catequese e o full-contact. 

Paula. É personal trainer mas já foi analista de laboratório. O trabalho em turnos baralhou-lhe o metabolismo, conduzindo-a a insónias terríveis e a uma especialização em televendas com sucesso em madrugadas invernosas. Tem uma altura média, pernas demasiado ginasticadas para a estética feminina, cabelo castanho comprido e uns olhos tristes. O seu sonho mais simples era ser feliz, conceito que não passa, como ela diz, por ajudar gordos a enfiarem-se num smoking para uma festa pindérica

Alberto e Rogério. Face à crise da empresa (reler Do cenário, acima) ambos têm excesso de tempo, pelo que entenderam que era altura de cultivar meticulosamente o físico (em itálico, porque a expressão é roubada). Até ao final da Primavera, disseram ambos. Contrataram Paula para um esquema em outdoor. Paredão do Estoril, das 7 às 8 da manhã. Parece-lhe bem, Paula? A ela pareceu-lhe bem, sempre podia comprar aquela frigideira indestrutível que anunciam por volta das 5 da manhã.

A história
Três vezes por semana, pelas 6.30h da manhã, os alunos recebem um sms de Paula com informações preciosas relativamente à meteorologia: humidade, visibilidade, nascer e pôr do sol, pressão atmosférica, ponto de orvalho, nível de UV, intensidade e direcção do vento. Seguem para o paredão onde o trio se cruza com as mesmas pessoas, inclusivamente alguém que os observa muito, como se fosse contar uma história e precisasse de vigiar os intervenientes. Durante um hora fazem flexões, elevações, treinam exercícios específicos, aprendem a função dos músculos. Paula é diligente, insistente, persistente. Rogério e Alberto perdem peso, eliminam adiposidades, graçolam sobre a dureza dos abdominais e a largueza das calças.

Com o decorrer do tempo Alberto, o engenheiro informático especialista em qualidade, demora o olhar sobre Paula. Onde antes via um tecido sintético de gosto indiferente e umas coxas demasiado musculadas, agora vê uma roupa suada em cima de um corpo suado. O que era odor passou a ser sensualidade, e a perspectiva de puxar aquela licra para desnudar uma personal trainer surge-lhe como um erotismo que perturba os sentidos. Os olhos tristes cativam-no, suscitam-lhe mãos piedosas por cima de um corpo com músculos trabalhados. [Poderia alongar-me na descrição das sensações, mas o texto vai longo e a clientela debanda para paragens mais sintéticas. Salto três cenas: a ideia de um croissant e um galão escuro na Garrett, o primeiro beijo discreto nuns lábios que se entreabriram, um convite claro sacudindo migalhas distraídas do fato de treino: gramava fazer amor contigo!].

Beijam-se intensamente no quarto de Paula [poderia descrever o quarto: posters de gatos, fotografias de um fim de semana em Tavira e de uma viagem a Marrocos, roupa espalhada num desarrumo de solteira, etc., mas encurto]. Alberto enebria-se com os cheiros, revolve os olhos, suspira ao puxar a licra para cima e para baixo [enfim, sempre são duas peças...] e não reprime um gemido ao ver a personal trainer, nua, esplêndida, espojada numa cama do Ikea comprada a preços de necessidade. Ela chama-o e ele avança, decidido, sôfrego, desejoso. Nesse momento cai no chão retorcido de dor, e a dor é tanta que obscurece o ridículo de um homem nu no chão [parquet mal encerado], enojado do suor próprio e alheio, raivoso contra a sua burrice de se atirar à ginástica, algo que só os Homens, de entre o reino da Criação, fazem [como beber leite em adulto]. Já não há desejo, há dor. Paula é apenas uma chamada de emergência numa nudez confrangedora, suada, com umas pernas demasiado musculadas, deixando no ar um hálito a galão escuro.

São os nadegueiros, Alberto, eu já te tinha dito que os nadegueiros - tanto o grande como o pequeno - tinham de ser mais treinados... Queres também fazer sábados? 

JdB 

* publicado originalmente a 2 de Outubro de 2012 

18 maio 2025

V Domingo da Páscoa

 EVANGELHO – João 13,31-33a.34-35

Quando Judas saiu do cenáculo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Agora foi glorificado o Filho do homem
e Deus glorificado n’Ele.
Se Deus foi glorificado n’Ele,
Deus também O glorificará em Si mesmo
e glorificá-l’O-á sem demora.
Meus filhos,
é por pouco tempo que ainda estou convosco.
Dou-vos um mandamento novo:
que vos ameis uns aos outros.
Como Eu vos amei,
amai-vos também uns aos outros.
Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos:
se vos amardes uns aos outros».

16 maio 2025

Da genealogia

Aqui há uns anos fiz um teste de ADN que consistia em esfregar um cotonete na parte interior da boca, colocar num saco próprio e enviá-lo para os EUA. Ao fim de algumas semanas recebi o resultado: x% dos meus antepassados eram europeus, y% africanos, tinha z% de sangue ashkenazi. Depois, através do registo num site, comecei a receber informações sobre pessoas que, por via do ADN, se entendia serem meus primos em 1º grau, 2º grau, 3º grau e mesmo 5º grau. Como sei quase tudo o que quero saber sobre a minha família, o assunto nunca me interessou muito. Na verdade, identificar potenciais descendentes do meu 5º avô, e que agora vivem no Brasil ou na Suécia ou em França, não me pareceu interessante. Sei, no entanto, que há pessoas que vão construindo a sua árvore genealógica com informações provenientes destes testes e do cruzamento de dados.

Há dias, num dos emails habituais sobre parentescos, recebo a informação de que a Maria (nome fictício) era minha prima em 3ª grau; relativamente a um primo direito meu, a Maria era prima em 2º grau. É com base neste potencial parentesco mais próximo que vou desenvolver o meu raciocínio. 

Ser minha prima em 2º grau significa que os nossos Pais eram primeiros direitos, os nossos Avós eram irmãos, os nossos Bisavós eram comuns. Isto tornava a Maria numa prima relativamente próxima, que valeria a pena conhecer um dia. Li o apelido da Maria e não me dizia nada enquanto potencial pessoa da minha família. Fui ver a ascendência da Maria (não sei se cheguei aos trisavós) - e nada! Não tínhamos um único apelido em comum.

Em contacto com um amigo ligado a este tema da genealogia, partilhei (do alto da minha ignorância) três possíveis hipóteses para este imbróglio:   

1) a Maria não é filha / neta / bisneta de quem acha que é;

2) eu não sou filho / neto / bisneto de quem acho que sou; 

3) estes testes são altamente falíveis. 

A resposta deste meu amigo foi rápida, sendo que votava na hipótese 3.

Havia quem afirmasse que uma em cada três pessoas não era filha (ou seria neta?) de quem acha que é. Sabemos que a nossa árvore genealógica assenta em convicções, mais do que certezas. Estamos convictos de que somos descendentes de alguém porque há documentos que o afirmam, mas não temos uma certeza inquestionável relativamente a isso. Acontece que estes testes de ADN têm, supostamente, uma base científica, pelo que, ou há um problema com as nossas ascendências (e alguém, num determinado momento, terá sido protagonista de infidelidade) ou os testes são uma trapaça que convém desmascarar. 

Não conheço a Maria, mas gostava de lhe perguntar: o que achou de saber que era prima relativamente próxima de umas pessoas cujo ascendente comum (conhecido) ninguém consegue identificar? O que é que isso lhe diz?

JdB

14 maio 2025

Poemas dos dis que correm

 Mamografia de Mármore 

Deliciam-me as palavras
dos relatórios médicos, os nomes cheios
de saber oculto e míticos lugares
como a região sacro-lombar ou o tendão de Aquiles.

Numa mamografia de rastreio,
incidência crânio-caudal seria
um bom título para uma tese teológica.

Alguns poetas falam disso. Pneumotórax
de Manuel Bandeira ou Electrocardiograma
de Nemésio, para não referir os vermelhos de hemoptise
de Pessanha ou as engomadeiras tísicas
de Cesário.

Mas nenhum(a) falou (ou fala)
de mamografia de rastreio. Versos dignos
só os de mamilo róseo desde o tempo
de Safo ou de Penélope. E, de Afrodite
enquanto deusa, só restaram óleos e
mamografias de mármore.

Inês Lourenço, in 'Coisa que Nunca'

***

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho, in 'Libertinagem'

13 maio 2025

Fátima

Faz hoje 25 anos que fui a Fátima pela primeira vez; fez ontem 24 anos que fui a Fátima pela primeira vez.  Esta informação não tem, em si, nada de relevante. Afinal, estive 40 anos sem nunca lá ter estado. 

Ontem uma amiga, a viver em França, perguntou-me se não quereria ir um dia a Lourdes. A minha hesitação na resposta revelou o que me vai na alma: apesar de eu ser mariano, a ideia de ir a um local onde se acredita que apareceu Nossa Senhora não me entusiasma por aí além. O meu baptismo de fogo em Fátima, num dia 12 de Maio já longínquo teve um impacto emocional muito grande: era o ano de todos os anos - 2001. Talvez eu estivesse particularmente sensível, sobretudo por levar quem levava. Tudo me sensibilizou: a devoção das pessoas, a procissão das velas, a multidão de crentes, as histórias que sabia ou adivinhava noutras pessoas.

Já aqui o escrevi: o milagre de Fátima não é, para mim, a aparição de Nossa Senhora em cima de uma azinheira, até porque estamos no domínio da fé. Enquanto católico, nada nem ninguém me obriga a acreditar em Fátima; não falamos de um dogma. O milagre de Fátima é o facto de ser ponto de partida ou de chegada para milhares de pessoas todos os anos: pessoas que se convertem, que agradecem, que pedem, que se transformam ou que sentem o impulso da transformação, que encontram um sentido para os desafios que a vida lhes põe. Os milagres em que acredito são os da alma, não os do corpo. 

Vencido pela desorganização ou pela inércia, há anos que não vou a Fátima no dia 12 de Maio. Faz-me falta, confesso, aquele banho de multidão anónima, voltada para o andor de Nossa Senhora que, longe ou perto do local onde cada um está, nos entra pelo coração adentro.

JdB

11 maio 2025

IV Domingo da Páscoa

 EVANGELHO – João 10,27-30

Naquele tempo, disse Jesus:
«As minhas ovelhas escutam a minha voz.
Eu conheço
as minhas ovelhas e elas seguem-Me.
Eu dou-lhes a vida eterna e nunca hão de perecer
e ninguém as arrebatará da minha mão.
Meu Pai, que Mas deu, é maior do que todos
e ninguém pode arrebatar nada da mão do Pai.
Eu e o Pai somos um só».

09 maio 2025

Papa Leão XIV

 

Foto: REUTERS/Yara Nard


Do essencial e do acessório *


Pietà (1499 - 1500) por Miguel Ângelo

O Êxtase de Santa Teresa (1647 - 1652) por Bernini

As duas fotografias acima (retiradas da net) só num certo sentido é que são muito diferentes. É um facto que a Pietà está fotografada muito de perto, enquanto O Êxtase de Santa Teresa está fotografado de longe. Há uma intenção por trás da escolha, já que poderia ter escolhido a Pietà fotografada de longe e a Santa Teresa de perto. 

Olhar para ambas as esculturas lança um desafio interessante, de entre muitos outros que poderiam ser suscitados por estas duas grandes obras de arte. Um desafio relaciona-se, obviamente com as fotografias e com a pergunta decorrente: por que motivo não faz sentido fotografar a Pietà de longe e Santa Teresa de perto? Por um motivo muito simples: a obra de Miguel Ângelo cabe toda numa fotografia normal, com alguma proximidade, enquanto a obra de Bernini não cabe - ou teríamos de usar uma grande angular. Dito de uma forma muito simples, a Pietà é aquilo; o Êxtase de Santa Teresa é aquilo. Só que a expressão "aquilo" tem que se lhe diga. 

A deambulação inútil acima levanta uma questão de identificação do que é essencial e do que é acessório. A intenção de Miguel Ângelo é representar a dor de uma mãe com o filho morto nos braços: uma proporção perfeita (mesmo que isso tenha implicado o reajuste dos tamanhos relativos) entre uma figura horizontal inserida numa figura vertical. A escultura é aquilo, esteja colocada ao lado de um altar, num nicho, numa sala de museu ou num coreto de aldeia. Por seu lado, a escultura de Bernini representa mais do que Santa Teresa de Ávila (com a sua boca levemente entreaberta, onde alguns veem sensualidade) a ser trespassada pela seta de amor divino de um anjo, embora isso chegasse para nos maravilhar. A escultura são aquelas duas figuras mais tudo o resto, nomeadamente os cardeais da família Cornaro que assistem ao êxtase.

Uma escultura não carece de mais nada, pois tudo o que precisamos de ver está ali, que o resto é suscitado pela nossa sensibilidade. A outra carece de tudo, e por isso não cabe em nada, porque ela contém, não é contida. A escultura é o espaço todo. Um escultor agarrou num bloco de pedra e, vendo o essencial da obra, retirou tudo o que era acessório. O outro escultor, vendo tudo o que era essencial para a sua obra, acrescentou elementos. Talvez a dor da morte de um filho seja de tal maneira essencial que torna tudo o resto acessório. Por sua vez, talvez o êxtase, mesmo que seja de uma mística, requeira testemunhas para que se torne essencial.

O que é essencial e o que é acessório?

JdB

* publicado originalmente a 6 de Novembro de 2017

07 maio 2025

Vai um gin do Peter’s ?

 “CONCERTO CAMÕES” E O APOIO DE FRANCISCO À UCRÂNIA (NOS BASTIDORES)  

Na próxima Sexta-feira, às 21h, o Pavilhão de Portugal será palco do «Concerto Camões na Eternidade do Tempo», de entrada livre, sujeita à lotação da sala. Programa disponível em Temporada 24/25 Abr-Set da Música na Universidade de Lisboa.  

No programa do concerto, menciona-se a encomenda ao compositor Nuno Côrte-Real (1971-…), comemorativa do magno poeta da língua portuguesa: 

«junto à entrada do Refeitório do Claustro do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, existe um relevo pétreo retratando Cristo atado a uma coluna. Daí, surgiu o mote para a encomenda a Nuno Côrte-Real, para celebrar o V Centenário do nascimento de Luís Vaz de Camões (1524-1580), que aí repousa, pelo menos em espírito, num cenográfico túmulo diante de outro, o de Vasco da Gama (1469-1524). Resultou na obra ‘Time Stands Still’, estreada a 27 de Abril de 2019, no festival do CCB ‘Dias da Música’.

As sete canções do compositor renascentista inglês John Dowland, falecido em 1626, são intercaladas com interlúdios instrumentais de Nuno Côrte-Real, dedicados a amizades do seu universo pessoal». As canções de Dowland baseiam-se em danças da época:  a pavana (lenta) e a galharda e sobre elas compôs o português, oferecendo uma leitura contemporânea da música de seiscentos: «apesar de já estarmos longe desse período da História, há, porém, uma certa melancolia nas entrelinhas do nosso tempo que tornam estas canções vivíssimas», observa Côrte-Real. No fundo, os dois compositores «são ‘musicus poeticus’ na sua mundividência, na sua evasão da realidade, procurando o infinito… Como diz Afonso Miranda, ‘a obra conclui com uma meditação sobre o mistério do tempo, a imobilidade da mudança, a eternidade’. O Tempo está parado» e Camões chega-nos através de um harmonioso diálogo musical entre gerações distantes. 

Com a Partida de Francisco, a 21 de Abril, avivou-se o interesse pela biografia do Papa argentino, nascido em Buenos Aires, a 17 de Dezembro de 1936, filho de pais Italianos, recém imigrados para o Hemisfério Sul. A história de Bergoglio, que valorizava muito o ensino da literatura nos seminários, estende-se à sua amizade com Jorge Luís Borges, que convenceu a dar um conjunto de aulas aos seus alunos! 

Também episódios do passado, passados nos bastidores da Santa Sé, estão agora a vir a lume, confirmando a abertura deste Papa muito atento aos outros. Uma semana depois da sua morte, foi publicado no Vatican News a história da relação filial do Pontífice jesuíta com um jovem contestatário ucraniano, que professava o protestantismo. Tudo começou por declarações do Papa sobre a invasão russa da Ucrânia, que magoaram Denys Koliada. De seguida, resolveu escrever a Francisco, sem esperar resposta, mas repondo o que considerava ser um noticiário mais factual sobre as atrocidades que testemunhava, quase diariamente. Imprevistamente, o Papa chamou-o a Santa Marta e assim começaram uma amizade fraternal, que desmente o que pareceu ser um certo distanciamento diplomático do Vaticano em relação à Ucrânia, numa equidistância estranha entre o país agressor e o agredido: 

A AMIZADE ENTRE FRANCISCO E UM JOVEM UCRANIANO

Trata-se de uma história feita de cartas e encontros entre o Papa, pastor de todos, e Denys Koliada, protestante, testemunha das atrocidades da guerra. Um vínculo que nasceu das críticas do jovem ao Pontífice e seguiu através de troca contínua de cartas e 25 encontros em Santa Marta. (O Papa) "Sofria pela Ucrânia, perguntava-me sobre as pessoas. E disse-me: “os ucranianos têm o direito e o dever de se defender".

Antes do encontro, houve um confronto. Antes das cerca de 80 cartas de acompanhamento espiritual durante o período da guerra, antes dos 25 encontros na Casa Santa Marta, antes de estabelecer uma relação de filiação e de chegar a um ponto de confiança, a ponto de exclamar - diante das críticas recebidas na Ucrânia por algumas das suas expressões - “não têm o direito de dizer que não amo a Ucrânia”. Entre o Papa e Denys Koliada, um ucraniano de 30 anos, houve, de facto, um confronto. Denys, proveniente da pequena cidade de Kaniv, resolveu partilhar o seu testemunho com os media do Vaticano, para prestar homenagem àquele que foi um pai e um guia no momento mais sombrio do seu país. Conta-nos:

Quando a invasão em larga escala começou na Ucrânia, enviei ao Papa Francisco cartas escritas por crianças, por meio de um pastor argentino, Alejandro, seu velho amigo de Buenos Aires. Palavras de medo, de perda, de orações pela paz... Pouco tempo depois, ouvi algumas das declarações do Papa sobre a guerra, que me  magoaram. Não por que ele quisesse magoar-nos, mas porque nós, na Ucrânia, vivíamos no epicentro da dor. E, às vezes, até mesmo uma boa palavra, se não for contextualizada, pode cortar como uma faca. Escrevi-lhe, então uma carta honesta, até mesmo dura, que terminava assim: "a Ucrânia dirige-lhe a pergunta de Pedro: Simão de Jonas, amas-Me?" Eu não esperava uma resposta. Quem precisa de outra voz num país onde todos gritam? No entanto, no dia seguinte, o Papa respondeu-me. Simplesmente, sem diplomacia: "Venha. Quero que seja você a contar-me pessoalmente. Preciso ouvir tudo de si".

Um dos encontros na Casa Santa Marta entre o Papa e o jovem Denys

O DIREITO E O DEVER DE SE DEFENDEREM

Então Denys foi a Santa Marta. Ele, filho de uma família protestante, ex-aluno da Universidade Católica Ucraniana. Foi até lá, não sem um medo inicial, além da curiosidade de conhecer o Papa, que sempre lhe pareceu “um pastor que nunca teve medo de ouvir, mesmo aqueles que se aproximavam dele com dor e acusações”.

Foi assim que nossa história começou – conta. Não foi uma audiência, mas um encontro entre uma ferida e um coração em busca de diálogo. Cheguei naquele dia com um pequeno grupo: eu, o meu professor Myroslav Marynovych (ex-prisioneiro político do Gulag), o pastor Alejandro e alguns amigos. Não trouxemos nada connosco, excepto a esperança de sermos ouvidos. E o Papa recebeu-nos e dedicou-nos uma hora e meia. Ainda assim, o mais significativo não foi o tempo despendido, mas a maneira como ele nos ouviu. Sem se defender. Sem se justificar. Ele ouviu, inclinando-se para a frente, lembrando-se de nomes, fazendo perguntas, pedindo esclarecimentos. Contou-nos sobre um dos seus professores, o Beato Vladyka Chmil, um padre ucraniano, que morrera num campo de concentração, porque não desistira de ser um pastor para todos, até mesmo para os seus inimigos. Naquela ocasião, ele disse uma frase simples, mas muito importante para mim: "os ucranianos não têm apenas o direito, mas também o dever de se defender. Porque quem não se defende, está perto do suicídio".

A PREOCUPAÇÃO PELOS SOLDADOS, PRISIONEIROS, VIÚVAS E CRIANÇAS

Com o jovem Denys, alcunhado por Francisco, com humor, como “protestante unificado”, a história continuou após aquele encontro. "Dê-me o seu endereço. Vou escrever-lhe", disse o Papa. A partir daí, trocaram uma série de cartas, cerca de 80, que o jovem guarda em casa e que atualmente considera um tesouro pessoal.

Eu contava ao Papa o que estava a acontecer na frente de guerra, partilhava as histórias dos soldados, dos prisioneiros, dos capelães, das viúvas, das crianças. E ele lembrava-se dos nomes. Perguntava-me sobre eles. Numa das cartas, escreveu-me: "Como está Gennadij?" (capelão militar ucraniano). E sua esposa, como se sente? E aquelas crianças? Estão todas vivas, depois do bombardeio?" 

Denys entrega alguns presentes ao Papa Francisco

CARREGAR A CRUZ

Além das cartas entre Francisco e esse “querido jovem”, como lhe chamava o Papa, houve 25 encontros no Vaticano, nunca tornados públicos, apenas para se ouvir um ao outro, sobretudo a história de Denys e as histórias de um povo em guerra. Observa Denys sobre o Papa e as suas palavras de pai, pastor de todos: “era uma presença verdadeira, silenciosa e obstinada”.

Quando eu estava cheio de raiva - a raiva daqueles que vêem crianças a morrer todos os dias, daqueles que vêem casas destruídas, a esperança despedaçada - eu escrevia-lhe. Nem sempre com moderação, às vezes com dureza e desespero. Ele sempre respondia: “não carregue a sua cruz sozinho. Cristo também precisou de Simão” – repetia-me várias vezes. Era como se soubesse que eu iria cair novamente, que eu queria aliviar esse campo de dor. E naquelas palavras encontrei forças para ficar

Lembro-me bem de uma de nossas conversas. Percebi que ele estava muito cansado. Então, eu disse-lhe: “Querido pai, não carregue a sua cruz sozinho. A cruz também carrega o fardo da solidariedade com o rebanho”.

Outra frase que Denys Koliada nunca esquecerá, foi proferida na altura em que muitos na Ucrânia criticaram fortemente Francisco por algumas das suas declarações públicas. Encontrei-o e disse-lhe: “muitos na Ucrânia estão magoados. Muitos dizem que o senhor não nos ama”. Com simplicidade, ele respondeu: “Vocês podem dizer que sou um pecador. E vocês têm razão. Mas não têm o direito de dizer que eu não amo a Ucrânia.”

Eu não poderia permanecer em silêncio diante do facto de que a guerra é maligna. E que as palavras sobre paz, se não forem bem explicadas, podem soar como um insulto àqueles que estão a morrer. Fui àquele encontro como um homem que estava a sofrer. Disse-lhe: 'Sua Santidade, até mesmo uma boa palavra pode tornar-se uma ferida, se não for explicada àqueles que gritam de dor. Mesmo a melhor das intenções precisa de clareza, quando se fala de guerra”. Ele olhou-nos nos olhos e respondeu: "Obrigado por me dizer isso. Talvez eu estivesse errado. Se necessário, venha novamente. Vamos conversar sobre isso, novamente. Quero entender”.

A DOR DA CRUELDADE COM AS PESSOAS

Algumas vezes, foi o próprio Papa que tomou a iniciativa e entrou em contato com o jovem. Fez isso, quando viu imagens da tortura sofrida pelos soldados ucranianos. “É horrível. Essa é a vossa Via-Sacra... Mas vocês não são apenas testemunhas do sacrifício. Vocês são testemunhas da Ressurreição”, escreveu ele, certa vez. “Ele sabia bem o que estava a acontecer. E sofreu profundamente”, garante Denys.

A crueldade nunca o tornou duro. Pelo contrário, ele permaneceu manso, capaz de ouvir, lembrar e rezar por pessoas que nunca terá conhecido. Acredito que essa foi sua verdadeira resposta à guerra: não com justificações, não com teorias, mas com uma compaixão que não desiste. Com um amor que não tem medo de ficar ao lado dos feridos. Vi um homem que, realmente, tentou estar próximo. E também vi com que frequência, cruel e deliberadamente, as suas palavras foram tiradas do contexto, construindo a imagem de um Pontífice indiferente, sem ouvir o que ele realmente dizia.

O jovem ucraniano ao encontrar o Papa na Casa de Santa Marta

A BOAS OBRAS NO SILÊNCIO

O Papa também deu apoio material a viúvas, órfãos, ex-presidiários e feridos. “Eu dizia-lhe: 'talvez devêssemos contar estas coisas, para que as pessoas soubessem'. E ele sorria e respondia: 'as boas obras precisam do silêncio'”.

Francisco não ficava apenas no nível dos apelos, das declarações. Preocupava-se com as pessoas concretas. Os rostos. As histórias. As mulheres que haviam perdido seus maridos. As crianças sem pai. Aqueles que haviam retornado da prisão. Muitas vezes, vi a sua emoção, quando lhe contava histórias de guerra, mas também a esperança nos seus olhos, quando eu falava da coragem dos voluntários, dos médicos, dos soldados que, apesar de tudo, não haviam perdido a humanidade. 

ALGUÉM QUE SABIA OUVIR

Essa é a imagem que permanece com Denys, agora que o Papa Francisco partiu: “sinto-me como um órfão”, confessa, “como alguém que perdeu um amigo, que não tinha medo das minhas lágrimas, da minha raiva, das minhas perguntas. Lembro-me com frequência das suas cartas, das recomendações: 'rezo por si. Reze também por mim'. E, de vez em quando, pego instintivamente no telefone ou na caneta para lhe escrever, como fazia quando a dor era grande. Mas, desta vez, não haverá resposta. 

Sinto falta dele. Muita No entanto, junto com essa dor, sinto uma profunda gratidão. Gratidão por ter tido alguém que sabia ouvir, que ficava ao meu lado, mesmo quando não tinha respostas para me dar. 

Artigo de Salvatore Cernuzio, publicado no Vatican News,
a 30 de Abril de 2025 (adaptado ao português europeu)

Que saudades do Papa Francisco!  E grande suspense à espera do “fumo branco”… 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

06 maio 2025

Poemas dos dias que correm

 O primeiro amor

Dizem
que o primeiro amor é o mais importante.
É muito romântico
mas não é o meu caso.
 
Algo entre nós houve e não houve,
deu-se e perdeu-se.
 
Não me tremem as mãos
quando encontro pequenas lembranças,
aquele maço de cartas atadas com um cordel,
se ao menos fosse uma fita.
 
O nosso único encontro, passados anos,
foi uma conversa de duas cadeiras
junto a uma mesa fria.
 
Outros amores
continuam até hoje a respirar dentro de mim.
A este falta fôlego para suspirar.
 
No entanto, sendo como é,
não lembrado,
nem sequer sonhado,
consegue o que os outros ainda não conseguem:
acostuma-me com a morte.
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006

04 maio 2025

III Domingo da Páscoa

 EVANGELHO – João 21,1-19

Naquele tempo,
Jesus manifestou-Se outra vez aos seus discípulos,
junto do mar de Tiberíades.
Manifestou-Se deste modo:
Estavam juntos Simão Pedro e Tomé, chamado Dídimo,
Natanael, que era de Caná da Galileia,
os filhos de Zebedeu e mais dois discípulos de Jesus.
Disse-lhes Simão Pedro: «Vou pescar».
Eles responderam-lhe: «Nós vamos contigo».
Saíram de casa e subiram para o barco,
mas naquela noite não apanharam nada.
Ao romper da manhã, Jesus apresentou-Se na margem,
mas os discípulos não sabiam que era Ele.
Disse-lhes Jesus:
«Rapazes, tendes alguma coisa de comer?»
Eles responderam: «Não».
Disse-lhes Jesus:
«Lançai a rede para a direita do barco e encontrareis».
Eles lançaram a rede
e já mal a podiam arrastar por causa da abundância de peixes.
O discípulo predileto de Jesus disse a Pedro:
«É o Senhor».
Simão Pedro, quando ouviu dizer que era o Senhor,
vestiu a túnica que tinha tirado e lançou-se ao mar.
Os outros discípulos,
que estavam apenas a uns duzentos côvados da margem,
vieram no barco, puxando a rede com os peixes.
Quando saltaram em terra,
viram brasas acesas com peixe em cima, e pão.
Disse-lhes Jesus:
«Trazei alguns dos peixes que apanhastes agora».
Simão Pedro subiu ao barco
e puxou a rede para terra,
cheia de cento e cinquenta e três grandes peixes;
e, apesar de serem tantos, não se rompeu a rede.
Disse-lhes Jesus: «Vinde comer».
Nenhum dos discípulos se atrevia a perguntar-Lhe:
«Quem és Tu?»,
porque bem sabiam que era o Senhor.
Jesus aproximou-Se, tomou o pão e deu-lho,
fazendo o mesmo com os peixes.
Esta foi a terceira vez
que Jesus Se manifestou aos seus discípulos,
depois de ter ressuscitado dos mortos.
Depois de comerem,
Jesus perguntou a Simão Pedro:
«Simão, filho de João, tu amas-Me mais do que estes?»
Ele respondeu-Lhe:
«Sim, Senhor, Tu sabes que Te amo».
Disse-lhe Jesus: «Apascenta os meus cordeiros».
Voltou a perguntar-lhe segunda vez:
«Simão, filho de João, tu amas-Me?»
Ele respondeu-Lhe:
«Sim, Senhor, Tu sabes que Te amo».
Disse-lhe Jesus: «Apascenta as minhas ovelhas».
Perguntou-lhe pela terceira vez:
«Simão, filho de João, tu amas-Me?»
Pedro entristeceu-se
por Jesus lhe ter perguntado pela terceira vez se O amava
e respondeu-Lhe:
«Senhor, Tu sabes tudo, bem sabes que Te amo».
Disse-lhe Jesus:
«Apascenta as minhas ovelhas.
Em verdade, em verdade te digo:
Quando eras mais novo,
tu mesmo te cingias e andavas por onde querias;
mas quando fores mais velho,
estenderás a mão e outro te cingirá
e te levará para onde não queres».
Jesus disse isto para indicar o género de morte
com que Pedro havia de dar glória a Deus.
Dito isto, acrescentou: «Segue-Me».

02 maio 2025

Desterro *

 (...)

Falhei em tudo. 
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. 
A aprendizagem que me deram, 
Desci dela pela janela das traseiras da casa, 
Fui até ao campo com grandes propósitos. 
Mas lá encontrei só ervas e árvores, 
E quando havia gente era igual à outra. 
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar? 


***


Florentino pousou o livro sobre as pernas e sorriu. Não o fez para ninguém em especial, porque estava sozinho no alpendre. Talvez tenha sorrido para si próprio, ou, quem sabe, tenha devolvido o sorriso com que o destino lhe pregara esta partida. De facto era uma partida: logo ele, um homem tão voltado para a cidade, para o espaço urbano, para as praças e para a circulação frenética das pessoas, para a vida de bairro e das lojas pequenas, herdar uma propriedade no meio do Alentejo. Mas que raio vou eu fazer aqui?, perguntou-se o engenheiro civil com um doutoramento em estruturas anti-sísmicas e coleccionador de boquilhas.

Florentino tinha passado o primeiro fim de semana na quinta. Passara a chamar-lhe desterro, não em homenagem ao bairro lisboeta, mas em sinal de pessimismo militante, como se fosse um político anti-regime condenado à extradição para ambientes inóspitos. Para ele havia o comércio local e as sedes do partido; para ele, também, havia o correio da manhã e os jornais chamados de referência. Tudo estava ligado - havia uma linha ténue, invisível, imperceptível para a maioria das pessoas, que unia a loja das revistas, a relojoaria de segunda mão e a padaria regional ao correio da manhã. Como? Como algo que veicula - talvez mesmo que é - o país real. Nas sedes dos partidos, no jornais de referência, nos restaurantes de autor e nos grandes hotéis a via era feita de artificialidade, de existências pintadas a blush e a botox, de cores que não são as existentes na natureza. Olhou em volta e não viu comércio local nem vida bairrista. Olhou em volta e não viu, simplesmente... Era um cego, de olhos lucidamente abertos, ou um esperto que olha para o vazio. 

Florentino olhava para o sobreiro, para a giesta, para a secura, para o pastor e para o eucalipto com o mesmo desespero com que se olha para a declaração do iva, para uma multa de trânsito ou para uma análise de sangue que revela excessos. E quedava-se mudo, imaginando uma venda ao desbarato, como quem despacha uma loja de gelados herdada de um tio louco e emigrante no Alasca. Decidiu-se pela venda, tendo partilhado a decisão com Veronika, uma namorada alemã muito recente, em Portugal a fazer um trabalho sobre a comida dos ganhões nos anos 60, e que cozinhava com primor e arrojo. Tomada a decisão, sentaram-se a jantar. Veronika apresentou-lhe um prato que cheirava divinamente. Perguntou-lhe o que era mas a rapariga, a dominar ainda mal o português, respondera-lhe apenas: roter gabeldorsh. E Florentino comeu e repetiu e sentiu-se bem. E só percebeu que comera um prato que toda a vida detestara quando Veronika lhe perguntou:

- O que quer dizer fui até ao campo com grandes propósitos?

Talvez não fosse tempo de vender.

JdB  

* publicado originalmente a 13 de Abril de 2017      

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