30 abril 2025

Músicas dos dias que correm

A propósito de uma visita, com amigos, a uma exposição na Fundação Albuquerque. É tudo muito bom - a arquitectura, o jardim, o enquadramento, a categoria das peças, a iluminação, o guia. Vale a pena ir.

JdB 

28 abril 2025

Moleskine

Sá de Miranda, num soneto que aqui postei há poucos dias, faz uma pergunta: que farei quando tudo arde? Fernando Pessoa, no seu poema O Conde D. Henrique (incluído na Mensagem) faz uma outra pergunta: que farei eu com esta espada? 400 anos separam ambos os poetas. Porém, apesar da distância temporal de quatro séculos, a interrogação aproxima-os: que farei...? 

A interrogação é a mãe da resposta, embora só possamos intuir que os poetas a descobriram. Sá de Miranda deixa a pergunta no último verso do poema; Fernando Pessoa só acrescenta mais um verso depois da pergunta (Ergueste-a, e fez-se). Mas ambos fazem a pergunta certa: o que farei com uma determinada situação (quando tudo arde) e o que farei com uma determinada ferramenta (esta espada). Perceber que a pergunta certa é o que farei com...? é abrir a porta à solução - e a solução está no futuro que se constrói todos os dias. Sá de Miranda não pergunta porque é que tudo arde e Pessoa sabe que tem uma ferramenta, faltando apenas o discernimento do que fazer com ela. 

***

Já aqui escrevi sobre o tema da dívida de gratidão para com pessoas que, em determinados momentos da vida, form particularmente importantes para nós. Um destes dias percebi (ou confirmei, não sei...) que estas dívidas de gratidão jogam muito a nosso favor. Não só somos gratos (e a gratidão verbalizada está em desuso) como percebemos a bondade que não desapareceu do mundo e a amizade que as pessoas têm por nós. Ter dívidas de gratidão faz bem à alma de credores e devedores.

***

É de um certo domínio do bom senso a afirmação de que a repressão de sentimentos não é positiva. Salomón Sellam, um médico francês especialista em psicossomática, de quem ouvi falar esta semana, afirmou: tudo o que não se pode expressar exteriormente fica impresso interiormente e manifesta-se sob a forma de sintoma. A vida obriga a um equilíbrio: se retrairmos tudo, o nosso bem-estar fica prejudicado; se exteriorizarmos tudo, o bem-estar dos outros fica prejudicado. A medida certa chama-se educação

JdB 

27 abril 2025

II Domingo da Páscoa

 EVANGELHO – João 20,19-31

Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
com medo dos judeus,
veio Jesus, colocou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhe-ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes serão retidos».
Tomé, um dos Doze, chamado Dídimo,
não estava com eles quando veio Jesus.
Disseram-lhe os outros discípulos:
«Vimos o Senhor».
Mas ele respondeu-lhes:
«Se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos,
se não meter o dedo no lugar dos cravos e a mão no seu lado,
não acreditarei».
Oito dias depois, estavam os discípulos outra vez em casa
e Tomé com eles.
Veio Jesus, estando as portas fechadas,
apresentou-Se no meio deles e disse:
«A paz esteja convosco».
Depois disse a Tomé:
«Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos;
aproxima a tua mão e mete-a no meu lado;
e não sejas incrédulo, mas crente».
Tomé respondeu-Lhe:
«Meu Senhor e meu Deus!»
Disse-lhe Jesus:
«Porque Me viste acreditaste:
felizes os que acreditam sem terem visto».
Muitos outros milagres fez Jesus na presença dos seus discípulos,
que não estão escritos neste livro.
Estes, porém, foram escritos
para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus,
e para que, acreditando, tenhais a vida em seu nome.

25 abril 2025

O fado, canção de vencidos - ou música para o dia de hoje

Arraial (Fado Pintéus)
Acabou o arraialFolhas e bandeiras já sem corTal e qual aquele dia em que chegasteTal e qual aquele dia, meu amor
Pra quê cantar?Se longe já não ouvesO nosso canto ainda está na fonteE o nosso sonho, nas estrelas do horizonte
Ainda nasce a lua nos moinhosAinda nasce o dia sobre os montesAinda vejo a curva do caminhoAinda os mesmos sons, as mesmas fontes
Sabes, meu amor, não estou sozinhoPelas salas do silêncio em que te escutoAbro as janelas, ainda cheira a rosmaninhoVejo-me ao espelho, ainda vejo luto
Abro as janelas, ainda cheira a rosmaninhoVejo-me ao espelho, ainda vejo luto
Letra de João Ferreira-Rosa

24 abril 2025

Poemas dos dias que correm

Que Farei quando Tudo Arde?

Desarrezoado amor, dentro em meu peito,
tem guerra com a razão. Amor, que jaz
i já de muitos dias, manda e faz
tudo o que quer, a torto e a direito.

Não espera razões, tudo é despeito,
tudo soberba e força; faz, desfaz,
sem respeito nenhum; e quando em paz
cuidais que sois, então tudo é desfeito.

Doutra parte, a Razão tempos espia,
espia ocasiões de tarde em tarde,
que ajunta o tempo; enfim vem o seu dia:

Então não tem lugar certo onde aguarde
Amor; trata traições, que não confia
nem dos seus. Que farei quando tudo arde?

Sá de Miranda, in 'Antologia Poética'

23 abril 2025

Vai um gin do Peter’s ? 

 O PAPA DA IGREJA  ‘HOSPITAL DE CAMPANHA’ 

Logo que foi eleito, num Conclave invulgarmente rápido, Jorge Mario Bergoglio baralhou todos os vaticínios. E surpreendeu a multidão, reunida na Praça de S. Pedro, ao apresentar-se como vindo «do fim do mundo». Referia-se à Argentina, bem a Sul do longínquo Hemisfério Sul. Era o dia 13 de Março de 2013. Tudo foi simples, descomplicado, sumamente humilde, a pedir a bênção dos fiéis! 

Inaugurou um nome novo, para seguir os passos do Santo dos pobres – Francisco de Assis. Somou mais uma invulgaridade ao ser o primeiro jesuíta (cujos superiores são alcunhados de Papas negros) e o primeiro latino-americano a ascender à cátedra de Pedro. 

Em doze anos de pontificado, marcou o mundo com críticas mordazes contra os abusos ambientais, o capitalismo desenfreado, a corrida às armas, as políticas belicistas, o cinismo e as mentiras dos oportunistas e manipuladores. Foi um defensor constante dos desfavorecidos, de uma Igreja capaz de ir até às periferias acudir a quem mais sofre e se sente desamparado. Proclamou tolerância zero aos crimes de pedofilia cometidos por membros da Igreja, na continuidade dos seus antecessores (sobretudo de Bento XVI). Mais, considerou «satânicos» aqueles crimes (e vários outros), mas nenhum dos militantes agnósticos e ateus do Ocidente se atreveu a interrogá-lo sobre a (in)existência de Satanás e, logo, sobre o despropósito do adjectivo, que o Papa usou múltiplas vezes… Curioso. Como curioso foi ver o afã dos líderes partidários de todo o espectro político, da extrema-esquerda à direita mais radical, a desfilarem na televisão com mensagens muito simpáticas de condolências pela morte de Francisco. Apesar de Portugal estar em campanha eleitoral, é raro tanta mente bem-pensante prescindir do típico disclaimer sobre a sua perspectiva agnóstica. Invulgarmente omissos e só elogiosos do Papa, muito prontos a gabá-lo e a citá-lo amiúde. 

Percebe-se quanto a mensagem de Francisco ecoou pelas quatro partidas do mundo. Lembro duas intervenções sobre um tema que lhe era especialmente caro — a misericórdia, recorrendo sempre a uma linguagem sumamente simples, directa, acessível a todos, todos, todos: «A misericórdia de Deus é a nossa libertação e a nossa felicidade. Vivemos da misericórdia e não podemos nos dar ao luxo de ficar sem misericórdia: ela é o ar que respiramos. Somos pobres demais para estabelecer condições, precisamos perdoar, porque precisamos ser perdoados».  Ainda a misericórdia sob o prisma do perdão: «Quantos de nós talvez mereceríamos uma condenação! E seria também justa. Mas Ele perdoa! Como? Com a misericórdia, que não apaga o pecado: é somente o perdão de Deus que o apaga, enquanto a misericórdia vai além. É como o céu: olhamos para o céu, tantas estrelas, mas quando o sol vem pela manhã, com tanta luz, as estrelas não podem ser vistas. Assim é a misericórdia de Deus: uma grande luz de amor, de ternura, porque Deus perdoa, não com um decreto, mas com uma carícia».

Num vídeo de 2 minutos, flui a expressiva colecção de graffitis que o artista italiano Maupal (Mauro Pallotta) dedicou a Francisco e à sua mensagem tão humanizante. 

https://drive.google.com/file/d/1emDz_0beOFPq1GGYrFsMxnyW4gzDlc7g/view?usp=drive_web 

Graffiti «PA-X» de Maupal, pintada na rua de Santa Justa (Baixa lisboeta)
para as JMJ de Lisboa (Agosto de 2023). O “x” é formado por uma cruz para indicar
que o caminho da paz é doloroso, tormentoso. Exige muita perseverança e coragem.
Na bagagem o Papa carrega valores, explicados por Maulpal como:
«il faticoso fardello della pace al mondo.» 

Na altura das JMJ, uma jornalista publicou na Forbes um artigo com doze dicas de gestão inspiradas no Papa e baseadas no livro do norte-americano Jeffrey A. Krames – «LEAD WITH HUMILITY: 12 Leadership Lessons from Pope Francis»: 

«As 12 lições de liderança do Papa que qualquer gestor pode aplicar

Como este líder carismático tem gerido e aumentado os católicos no mundo, usando a humildade e a inclusão. A obra de Jeffrey A. Krames “Lidere com Humildade” destaca 12 lições de liderança do Papa Francisco, que aqui reproduzimos:

1. LIDERAR COM HUMILDADE. O Papa Francisco acredita que a humildade capacita os líderes como nenhuma outra qualidade de liderança. “Se conseguirmos desenvolver uma atitude verdadeiramente humilde, poderemos mudar o mundo”. A humildade é a mãe de todas as virtudes.

2. CHEIRAR COMO O SEU REBANHO. Este é um preceito do Papa Francisco que significa: ”imergir em qualquer grupo que lidera”. Bergoglio, seu nome de batismo antes de se tornar Papa, é conhecido como o “Bispo dos pobres”, pela sua dedicação às favelas argentinas e por todo um quotidiano a fazer coisas básicas como arrumar o próprio quarto, cama, lavar a louça…

3. QUEM SOU EU PARA JULGAR? O Papa não se vê como tendo um papel superior no julgamento de pessoas. Assim, as lideranças deveriam – em vez de julgar os seus – ouvi-los, avaliá-los e concentrar-se nos seus pontos fortes.

4. NÃO MUDAR: REINVENTAR. Muitos criticam que o Papa Francisco “está a mudar tudo” dentro da Igreja. Na verdade, apenas reinventou a maneira de viver o Catolicismo.

5. FAÇA DA INCLUSÃO UMA PRIORIDADE. O Papa sublinhou a importância de um diálogo aberto e da comunicação; incluir todos, os de dentro e os de fora da Igreja, os “justos e pecadores”.  Como? Pedindo a todos que rezem por ele.

6. EVITE A MESQUINHEZ. O Papa não acha que pode conseguir tudo sozinho, pelo que apela à união e a aceitar a diferença.

7. ESCOLHA O PRAGMATISMO SOBRE A IDEOLOGIA. Papa Francisco dá a chave para abrir a porta da condução dos seres humanos: a realidade está acima da ideia. Quando atuamos de maneira contrária, na missão católica, colocamos a carroça à frente dos cavalos..

8. EMPREGAR A ÓTICA DE TOMADA DE DECISÃO. Por toda a sua professada humildade e defesa dos necessitados; o Papa Francisco tornou-se um praticante de política organizacional. Ele sabe que, como os líderes decidem, é tão importante quanto o que eles decidem.

9. COMANDE A SUA COMUNIDADE COMO UM HOSPITAL. O Papa Francisco vê um papel fundamental para a Igreja Católica em “curar as feridas e aquecer os corações” dos fiéis.

10. VIVA NA FRONTEIRA. A fronteira não é um lugar físico, não é uma linha ou muro. É a maneira de ser testemunha. Krames disse que é a combinação de uma atitude mental positiva e aberta juntamente com a coragem e a audácia de sair da zona de conforto. A fronteira é tudo aquilo “que não gira ao seu redor”. Ou seja, superar o narcisismo ou sair de si mesmo.

11. CONFRONTAR A ADVERSIDADE DE FRENTE. O Papa passou por muitas lutas para chegar ao topo da sua igreja. As lideranças podem aprender a transformar a adversidade numa vantagem. Fazer isso requer enfrentar as adversidades de cabeça erguida, em vez de fingir que não existem.

12. PRESTE ATENÇÃO AOS NÃO-CLIENTES. O Papa Francisco demonstra uma vontade de ir além dos frequentadores da Igreja Católica. O líder deve ter um objetivo similar. Sem esquecer os fiéis existentes. Francisco tem ido onde nenhum outro foi.»  

Artigo da FORBES Portugal, a 2 Agosto 2023,
assinado por Alexandra Silveira,
com síntese à obra de Jeffrey A. Krames  

Um cartoon especialmente feliz creio ser este, sem pretensões de saber o que se passará do lado de lá da Vida:

Mal dá para acreditar que passaram doze anos!  Esta não será a hora das palavras, que não estão à altura do mistério desafiante que é a morte. Mas vale um enorme OBRIGADA ao querido Papa Francisco e um pedido ao Espírito Santo para iluminar os Cardeais eleitores e, depois, o seu sucessor. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

22 abril 2025

Em memória do Papa Francisco (1936 - 2025)

 

Em 2023, aquando da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, tive a oportunidade de conhecer o Papa, de lhe dirigir algumas palavras e de cumprimentá-lo. Fi-lo enquanto presidente da Acreditar, tendo sido acompanhado por cerca de 25 pessoas, maioritariamente pais / mães e crianças / jovens doentes. Para um católico, o privilégio foi imenso.

***

Sou contemporâneo de cinco Papas, embora relativamente a dois - Paulo VI e João Paulo I - não tenha grande memória nem opinião, por motivos diferentes: o primeiro morreu em 1978, tinha eu 20 anos, e a religião ocupava um lugar rotineiro talvez menor na minha vida, numa altura em que estaria focado noutras áreas da existência. O outro Papa não viveu tempo suficiente para deixar marca.

O meu Papa não é o Papa Francisco. Não por uma questão política ou doutrinária, mas, talvez, porque João Paulo II tenha imprimido uma marca suficientemente forte em mim para relegar os Papas seguintes para uma posição menos cimeira. Como qualquer católico - e uma vez que o Papa só é infalível em matéria de fé - olho para o papado de Francisco com um olhar misto. Não concordei com tudo, mais na forma do que no conteúdo, mas reconheço que houve momentos determinantes para a Igreja nos últimos anos: mudou-se o discurso, o foco, a importância relativa das coisas. Abordaram-se temas fracturantes para o mundo católico, mas que são temas que merecem ser discutidos, nomeadamente o acesso aos sacramentos por parte dos recasados e a relação da Igreja com os homossexuais; deu-se uma conotação mais significativa à palavra periferia e a expressão igreja em saída deixou de ser mera retórica. Para a posteridade ficará o rompimento do Papa Francisco com alguns sinais de grandeza tradicionais e, na memória de muitos, o todos, todos, todos. 

Perguntei há pouco tempo a um padre quem seria o próximo Papa. Falou-me de um asiático (bispo de Manila) ou de um africano (Guiné Equatorial ou Gana, talvez). A ver vamos quem tocará esta difícil barca da igreja para a frente. A mim, como católico, resta-me rezar para que o Espírito Santo ilumine quem vai ter de escolher a pessoa mais indicada para os tempos que atravessamos.

JdB    

20 abril 2025

I Domingo da Páscoa

 EVANGELHO – João 20,1-9

No primeiro dia da semana,
Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro
e viu a pedra retirada do sepulcro.
Correu então e foi ter com Simão Pedro
e com o discípulo predileto de Jesus
e disse-lhes:
«Levaram o Senhor do sepulcro
e não sabemos onde O puseram».
Pedro partiu com o outro discípulo
e foram ambos ao sepulcro.
Corriam os dois juntos,
mas o outro discípulo antecipou-se,
correndo mais depressa do que Pedro,
e chegou primeiro ao sepulcro.
Debruçando-se, viu as ligaduras no chão, mas não entrou.
Entretanto, chegou também Simão Pedro, que o seguira.
Entrou no sepulcro
e viu as ligaduras no chão
e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus,
não com as ligaduras, mas enrolado à parte.
Entrou também o outro discípulo
que chegara primeiro ao sepulcro:
viu e acreditou.
Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura,
segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos.

18 abril 2025

Sexta-feira Santa

 

Raising of the Cross (Rembrandt) 

Pietà 

Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado,
Da pedra e da tristeza, no teu canto,
Comigo ao colo, morto e nu, gelado,
Embrulhado nas dobras do teu manto.

Sobre o golpe sem fundo do meu lado
Ia caindo o rio do teu pranto;
E o meu corpo pasmava, amortalhado,
De um rio amargo que adoçava tanto.

Depois, a noite de uma outra vida
Veio descendo lenta, apetecida
Pela terra-polar de que me fiz;

Mas o teu pranto, pela noite além,
Seiva do mundo, ia caindo, Mãe,
Na sepultura fria da raiz.

Miguel Torga


17 abril 2025

Da repetição e da recordação *

Para Platão, todo o conhecimento é reminiscência. Para Kirkegaard, repetição e recordação são um mesmo movimento, mas em sentidos opostos: aquilo de que nos recordamos, já foi; a repetição propriamente dita é uma recordação para a frente. Por isso a recordação provoca nostalgia, tristeza, enquanto que a repetição, em sendo possível, torna o Homem feliz. 

O tema da repetição embateu-me na testa num dia qualquer da semana passada, tendo-se reavivado este fim de semana quando li um artigo no Observador sobre turismo. Eu próprio repeti viagens por gosto, por força das circunstâncias, por afecto. Como já o afirmei, uma parte substantiva de mim viaja em busca do regresso a casa. Repetimos viagens, talvez não repitamos as emoções - a nossa circunstância é diferente, os sítios estão diferentes, os nossos sentidos são diferentes. E no entanto, grande parte das cidades - pelo menos as zonas históricas - permanecem inalteradas de há muitos anos para cá. 

Para Kirkegaard havia dois tipos de viagens: as interiores e as exteriores. E havia dois tipos de viajantes: (i) os que numa cidade vão conhecer o que é suposto conhecer-se; e (ii) os que conhecem intensamente uma parte, ignorando sítios paradigmáticos (p. ex., ir a Paris e desconhecer a Torre Eiffel). Com o avançar do tempo as minhas viagens perderam um pouco o pendor cultural (museus, palácios, etc.) para se debruçarem mais sobre a vida das ruas. Comecei a privilegiar estar sentado numa esplanada e ver gente a passar, adivinhando-lhes a vida. Nada de muito original, portanto. 

Veneza (Photo by Ian Gavan/Getty Images)
Com excepção de Londres, a minha viagem mais repetida talvez tenha sido Roma: fui em 1982 ou 1983; repeti em 1986 e por alturas de 2002 ou 2003, num âmbito profissional. Visitei-a pela última vez em 2011, parece-me. Em 1982 sentava-me calmamente nas esplanadas, nas escadarias, na Trinitá dei Monti, na Piazza Navona, na Fontana di Trevi. Comia na rua ou em tascas, tentava exercitar o meu italiano com os locais. Em 2011, quase 30 anos depois, o que mudou nesta viagem repetida? A Roma arquitectónica estava lá toda, inalterada. A Piazza Navona continuava a ser, com as suas fontes, uma das mais bonitas praças do mundo; a Fontana di Trevi ainda tinha moedas lançadas pela superstição ou pela tradição. O que mudou, repito? O ruído ambiente: nas esplanadas ouve-se chinês, americano, francês, castelhano; atirar uma moeda para uma fonte é um exercício de atleta com treino, porque não há qualquer garantia de que a moeda, que é atirada de tão longe, caia onde deve. O que mudou de Roma? O que mudou na nossa relação com Roma quando o ruído ambiente também muda? 

Volto ao artigo do Observador, lembrado de dois amigos que, na semana passada, foram a Veneza pela primeira vez. Alguns números: nos últimos 30 anos, 46% da população de Veneza saíu da cidade - hoje são apenas 55.000; as previsões mais aterradoras apontam para que em 2030 não haja gente local a viver naquela cidade; há 22 milhões de visitantes por ano, sendo que apenas 2 milhões visitam museus pelo que, depreendo, o resto anda pelas ruas e canais. Ouve-se falar italiano em Veneza? E que impacto tem isso na forma como andamos de vaporetto ou nos sentamos numa esplanada na Praça de S. Marcos? 

A ideia de viajarmos para conhecer a vida local talvez tenha os dias contados, se entendermos vida local como interagir com os nativos. Não há garantia, ao contrário do que diria Kirkegaard, de que a repetição nos faça mais feliz; para um tipo de viajante, e relativamente a determinados locais, sobra-nos a recordação. Volta, nostalgia, estás perdoada. 

JdB 

* publicado originalmente a 27 de Abril de 2016   

15 abril 2025

Em memória de Mario Vargas Llosa (1936 - 2025

 Timidamente, o delegado de propaganda médica, já deitado sobre o divã mole, atreveu-se a murmurar, imaginando uma confusão de pessoas, que o que o trazia àquele consultório não era a barriga, mas sim o espírito.

- São indiferenciáveis - desemburrou-o a facultativa. - Um intestino que evacua pontual e totalmente é gémeo de uma mente clara e de uma alma bem pensada. Pelo contrário, um intestino carregado, preguiçoso, avarento, engendra maus pensamentos, avinagra o carácter, fomenta complexos e apetites sexuais tortos, e acredite, vocação de delito, uma necessidade de castigar nos outros o tormento excrementoso. 

Mario Vargas Llosa, in A Tia Julia e o Escrevedor

14 abril 2025

Músicas de um tempo que já foi *

 

Do youtube:

A «Ressurreição» foi escrita por Diogo Pacheco de Amorim e cantada por José Campos e Sousa durante o “Verão Quente” de 1975, num momento de grande vontade combativa e de alguma esperança, nas vésperas de uma tão desejada insurreição civil e militar contra o poder comunista-esquerdista secretariado.

Ressurreição 

É uma Pátria quebrando cadeias,
É um silêncio que volta a cantar,
É um regresso de heróis às ameias,
Da cidade que volta a lutar. 

É um deserto que vemos florir,
É uma fonte jorrando de novo,
É uma aurora que volta a sorrir
Nos olhos cansados do Povo. 

E já ardem bandeiras vermelhas,
Nos campos há gritos de guerra,
Nas trevas da noite há centelhas,
Das rosas em festa da terra. 

Canta o vento nos trigos doirados,
Dançam ondas à luz das fogueiras,
E nas sombras guerreiros alados
Erguem espadas entre as oliveiras.

É uma Pátria de novo sagrada,
Acordada da morte esquecida,
Vitória da nova alvorada:
Lusitânia em giesta florida.

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* partilhado por mão amiga

13 abril 2025

Domingo de Ramos

 LEITURA II – Filipenses 2, 6-11

Cristo Jesus, que era de condição divina,
não Se valeu da sua igualdade com Deus,
mas aniquilou-Se a Si próprio.
Assumindo a condição de servo,
tornou-Se semelhante aos homens.
Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais,
obedecendo até à morte e morte de cruz.
Por isso Deus O exaltou
e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes,
para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem
no céu, na terra e nos abismos,
e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor,
para glória de Deus Pai.

11 abril 2025

Poemas dos dias que correm

Aos amigos

Caros amigos, aqui digo amigos
No sentido mais amplo da palavra:
Mulher, irmã, camaradas, parentes,
Pessoas vistas uma só vez,
Ou com quem se conviveu toda a vida:
Contanto que entre nós, pelo menos um momento,
Se tenha estendido um segmento,
Uma corda bem definida.
 
A vocês vos digo, companheiros de um caminho
Denso, não poupado a trabalhos,
E também a vocês, que perderam
A alma, o ânimo, a vontade de viver.
Ou a ninguém, ou alguém ou talvez só a um, ou a ti
Que me lês: lembra o tempo,
Antes da cera endurecida,
Em que cada um era como um sinete.
Entre nós cada um traz a marca
Do amigo encontrado no caminho;
Em cada um o rasto de cada um.
Para o bem e para o mal
Em sageza ou em folia
Cada um estampado em cada um.
 
Agora que o tempo urge apressado,
Que as tarefas terminaram,
A todos faço o humilde voto
De que o Outono seja longo e brando.
 
16 de Dezembro, 1985  
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão

2024

10 abril 2025

Da finitude

Em 2006, a empresa na qual trabalhava há 20 anos já estava numa fase de redução forte da estrutura. Ao longo dos meses foram saindo quadros intermédios / superiores, num processo que, por mais generoso financeiramente que possa ter sido, provocou desconforto e angústia em muitas pessoas. A mim também me tocou ser protagonista desse movimento: no dia 26 de Abril comunicaram-me que o meu posto de trabalho seria extinto no dia 31 de Dezembro. Eu tinha 48 anos.

Este processo de despedimento / negociação de saída foi doloroso para muitos dos meus colegas, que se sentiram desconsiderados, descartados, e cuja auto-estima terá sido afectada. A mim salvou-me esta ideia que desenvolvi dentro de mim: se eu fosse a empresa para a qual trabalhava faria o mesmo, e 'negociaria' o JdB. Para além da extinção do posto de trabalho, quem eu era profissionalmente já não interessava à empresa. Eu pertencia a outra geração, que tinha trabalhado numa empresa que crescia anualmente a dois dígitos, empresa essa que se via agora confrontada com um decréscimo do volume de negócios. O que eu era já não interessava - e esse auto-conhecimento permitiu-me (também) perceber que se encerrava um tempo na minha vida. Saí tranquilo, consciente da finitude das coisas e do fecho dos ciclos. 

***

O Board da organização internacional de que faço parte - a Childhood Cancer International - juntou-se em Lisboa nos últimos dias para a sua habitual reunião de meio do ano. Será a última em que participo, pois sairei do Board em Outubro depois de cumpridos os 9 anos estatutários. O meu afastamento da comunidade internacional da oncologia pediátrica será quase total, por outro motivos, mas não é isso que me leva a este texto.

Na 2ªfeira, no meio de discussões sobre estratégia, branding, comunicação, crescimento, projectos, percepção da opinião pública, etc., tomei consciência de algo importante e igual ao que tinha sentido profissionalmente em 2006: o meu tempo - este meu tempo - tinha chegado ao fim. O meu discurso, as minhas ideias, os meus conhecimentos - o que eu era, no fundo - já não interessavam tanto a uma organização que (curiosamente e ao contrário da realidade de 2006) crescia anualmente a quase dois dígitos. Percebi que me faltava vocabulário para esta nova realidade. A minha voz continuará a ter alguma relevância dada a minha senioridade e conhecimento deste mundo, mas noutro enquadramento. Sairei tranquilo, consciente da finitude das coisas e do fecho dos ciclos.

***

Não sei se sou inteligente, se tenho sorte. Face a estas saídas - a de 2006 e a de 2025 - não sei se o meu auto-conhecimento é uma defesa do corpo, um discernimento do corpo, ambos ou nenhum. O que sei - e disso estou certo - é que esta noção da finitude das coisas e dos fechos dos ciclos me confere uma tranquilidade grande. Perceber que aquilo que sou acrescenta menos valor aos sítios onde estou, tira-me a sensação de vazio que vi em pessoas que deixaram actividades profissionais ou de voluntariado. 

Ninguém é a man for all seasons. Quando tudo acabar, que não me falta o discernimento de perceber que tudo acaba.

JdB

09 abril 2025

Vai um gin do Peter’s ?

 TRUQUE PARA OS CLIENTES LARGAREM OS TELEMÓVEIS 

Todos iguais, todos diferentes, dizia George Orwell! Assim também cada país, cada artista ou empresário ou pai desencanta uma solução própria para combater o vício desumanizante do excesso de telemóvel, que já será a arma antissocial mais disseminada (porque acessível) do mundo! Em Itália, um restaurante privilegiou uma abordagem deliciosamente positiva. Mas comecemos pelo cinema, onde pululam denúncias mais incisivas. 

Curiosamente, provém da Ásia uma onda de alertas, em versão animada – ora de pendor emotivo, ora mais satírico-corrosivo –, sobre o isolamento que o telemóvel pode provocar, naturalmente quando há excesso. O problema é a facilidade com que maus hábitos insignificantes resvalam, rapidamente, para o vício patológico. 

Percebe-se que a febre dos telemóveis esteja exacerbada em países com produção própria ou com populações adolescentes especialmente tecnológicas. Isso explicará por que se tornou num tema recorrente em curta-metragens animadas do Indo-Pacífico, merecidamente premiadas pela indústria cinematográfica.

O filme «Addiction» do malaio Ngu Yon Xian baseia o argumento numa experiência imprevista e dolorosa na vida de uma adolescente de 12 anos, a quem o pai ofereceu o presente da sua vida – um portentoso telemóvel. Mal sabia ela a armadilha que lhe caíra nas suas mãos imaturas e impreparadas para aquela proeza high-tech: 


O indiano Ashok Patel adopta um script semelhante na sua curta-metragem 3D «O ECRû (de 2023), também dramático e irónico, também protagonizado por um teenager irresponsavelmente viciado no telemóvel, com consequências trágicas para todos. A mensagem aos adolescentes surge em grandes parangonas, no final, se dúvidas houvesse: «Mobiles are made for humans, but humans are not made only for mobiles. STOP MOBILE ADDICTION»:


A perspectiva do jovem chinês Chenglin Xie é mais satírica e mordaz, sem discriminações etárias. Os adultos até são os mais visados na curta-metragem animada «LIFE SMARTPHONE» (de 2015). Será possível correr bem um dia-a-dia debruçado sobre o pequeno ecrã, alheado de tudo o que acontece em redor? A sucessão de gaffes e de desastres causados pela selfie mania, entre outros tiques tecnológicos, é acintosamente interpelativa: 


Claro que estes pequenos ‘rectângulos’ são neutros do ponto de vista ético. Não faria sentido imputar-lhes qualquer responsabilidade – menos ainda culpa – pelos nossos comportamentos, quando desvirtuamos a sua utilização. A atracção incontornável dos pequenos computadores-telemóveis tornam-se um perigo, sempre que nos afastam dos outros, da realidade, preferindo ver o mundo pela lente da pequena máquina que julgamos controlar. Quanta ilusão…  Porém, nunca é a faca que mata, mas o coração do homem, como lembrava o Papa João Paulo II. Claro que cabe a cada um decidir o tipo de utilização e o tempo a despender com estes equipamentos tão úteis. Bem sabemos como os excessos tendem a virar-se contra nós (com efeito direto no consumo desregrado de recursos básicos como comida & bebida, por exemplo e por azar). 
 
Em Verona, um restaurante optou por incentivo positivo para os clientes largarem os telemóveis e gozarem a companhia dos companheiros de mesa. O truque tem-se revelado um sucesso, quer por melhorar o convívio, quer também por reduzir o barulho infernal das chamadas e das muitas pessoas que berram recados para o outro lado da linha. 90% dos clientes tem alinhado no convite do Al Condominio, para deixarem o tm num cacife, à entrada, e assim ganharem direito a uma garrafa de vinho Maia (Pinot noire)! Há-de ser bom, atendendo à taxa de adesão à deliciosa proposta facultativa. Segundo explicava o dono, Angelo Lella, ao diário britânico The Guardian sobre os paradoxos do telemóvel, bem mais associal do que parece: «We live with our cell phones always in our hands, and this is making us unaccustomed to socialization and communication. We wanted to open a restaurant that was different from the others. So we picked this format – customers can choose to renounce technology while enjoying a convivial moment together. Technology is becoming a problem – there is no need to look at your phone every five seconds, but for many people it is like a drug … This way they have an opportunity to put it aside and drink some good wine.»  

Testemunho de Angelo Lella: «It really is a beautiful thing to see people embracing it – they are talking to each other
rather than looking at photos or responding to messages on their phone.»

© BFMTV.
O próprio restaurante se auto-define como antropocêntrico: em Verona «”Al Condominio” l’Human Centric Restaurant:
tutti pazzi per la #DigitalDetox! Il lusso di stare a tavola senza tecnologia.»

Na mesma senda do humor, uma tasca alentejana, cujo letreiro percorrei mundo pelo WhatsApp, deixa um aviso divertido:  


Páscoa é tempo de desacelerar, aliviar a agitação diária, recuperar paz interior, condiz com estes alertas de maior atenção aos outros, melhor foco sobre a realidade, mais abertura ao que nos rodeia. O convite a um silêncio reflexivo, que aguce o olhar e o ouvido, precisa sempre de desintoxicação, a começar por um saudável jejum dos múltiplos ecrãs que nos rodeiam. Serão os mínimos olímpicos para ganharmos disponibilidade – de agenda e de atitude – para o essencial. Boa Semana Santa e Feliz Páscoa a todos!  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

07 abril 2025

Poemas dos dias que correm *

Uma forma de oração

em istambul, como em lisboa,
é para o mar que caminhamos,

enquanto imaginamos o olho de falcão
que pelas costas nos captura,

enquadrando-nos para sempre
num polaroid de figuras distintas

- palavra que nos salva dessoutra:
um polaroid de figuras extintas.

em istambul, como em lisboa,
a nossa vez já passou a livro encadernado.

mas de lágrima janota e flor ao peito
fingimos sóis e estrelas em formato digital,

mantemos aparências, dignidade,
calorífero em mínimos serviços mínimos.

entretanto, a tarde cai aqui bem perto
contra meu coração feito em farrapos,

e flutua em mim a memória próxima da menina da loja
que cheirava a passado, a felicidade, ao

teu perfume e cabelo, ao teu nome ao vento,
coisas assim - detalhes que mais ninguém vê.

homens como eu são lugares mal situados
- diria o daniel faria se fosse vivo sobre a Terra.

mas ele vive em mim, ao som dos the go-betweens.
apologies accepted, my Lord. e ajoelho. 

gi. 

* publicado originalmente a 16 de Julho de 2010

06 abril 2025

V Domingo da Quaresma

EVANGELHO – João 8,1-11

Naquele tempo,
Jesus foi para o Monte das Oliveiras.
Mas de manhã cedo, apareceu outra vez no templo,
e todo o povo se aproximou d’Ele.
Então sentou-Se e começou a ensinar.
Os escribas e os fariseus apresentaram a Jesus
uma mulher surpreendida em adultério,
colocaram-na no meio dos presentes e disseram a Jesus:
«Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério.
Na Lei, Moisés mandou-nos apedrejar tais mulheres.
Tu que dizes?».
Falavam assim para Lhe armarem uma cilada
e terem pretexto para O acusar.
Mas Jesus inclinou-Se
e começou a escrever com o dedo no chão.
Como persistiam em interrogá-l’O,
ergueu-Se e disse-lhes:
«Quem de entre vós estiver sem pecado
atire a primeira pedra».
Inclinou-Se novamente e continuou a escrever no chão.
Eles, porém, quando ouviram tais palavras,
foram saindo um após outro, a começar pelos mais velhos,
e ficou só Jesus e a mulher, que estava no meio.
Jesus ergueu-Se e disse-lhe:
«Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?».
Ela respondeu:
«Ninguém, Senhor».
Disse então Jesus:
«Nem Eu te condeno.
Vai e não tornes a pecar».

04 abril 2025

Textos dos dias que correm

Éramos inseparáveis. Eu, o Hubert, o Karim. Jogávamos futebol durante o dia, tomávamos banho no rio no Verão. À noite saíamos para o cinema ou para os bares para jogar bilhar, envoltos em fumo e ruído. Bebíamos mais do que devíamos, naquele desequilíbrio adolescente cujo futuro é incerto. O que seria de nós, o que seria do mundo, se em jovens prevíssemos o preço que pagaríamos em adulto pelos nossos excessos?  

Bebíamos muito. Ao fim da noite o Hubert já ria quase descontroladamente, com os cabelos num desalinho de louco e metade da camisa fora das calças, aproximando-se ousadamente das raparigas locais que, gargalhando com gosto, fugiam dele. Foi para ele uma época que durou pouco, quase como se cumprisse um calendário ou fizesse um intervalo na sua verdadeira natureza. Encontrou-se na sobriedade da vida e vive feliz. O Karim mantinha-se sempre sossegado, encostado ao balcão ou a uma mesa de bilhar, de garrafa constante na mão. Era um sossego enervante, pois não emitia sinais do seu estado. Atravessou a vida assim: casou, separou-se; casou, separou-se. Vai voltar a casar e a separar-se, sempre silenciosamente, um pouco como se a vida não fosse mais do que um sucessão de cervejas bebidas no estabelecimento local. 

E eu? Eu colava-me aos outros quando o corpo acusava excesso de álcool. Uns riam, outros contavam piadas, outros ainda mantinham uma calma quase incomodativa. Eu colava-me nos bancos, encostava-me a uma parede, e maçava quem ali estava com uma conversa desajustada. Era assim que eu me dava ao fim da noite. Não voltei a embebedar-me desde que fui para Paris estudar veterinária. Mais do que dos excessos, quem sabe não fugia de uma natureza que não entretinha ninguém. Talvez continue a ser assim, a viver um desajuste momentâneo como se estivesse ébrio. Às vezes parece que fujo dos outros, que me afasto dos outros. É possível que só queira, com falta de jeito, reconheço, proteger os outros de mim. Como se a vida fosse um bar forrado de mesas de bilhar e as minhas conversas não fossem as conversas de mais ninguém. Como se as minhas conversas não fossem mais do que as minhas conversas. 

Marcel Larque (Lettres aux amies disparus,  Éditions Maison Jaune, 2010, tradução minha deste excerto)   

02 abril 2025

Poemas dos dias que correm

Quando vier a primavera

Quando vier a primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Alberto Caeiro / Fernando Pessoa
(1888 - 1935)
In "Poemas Inconjuntos"

01 abril 2025

Das aspas *

 Aspas: sinal gráfico que destaca títulos ou nomes comerciais, sendo também usado para delimitar citações ou realçar uma palavra ou expressão. 

***

Em 1979 tive uma curta experiência veraneante como jornalista. Durante meia dúzia de meses, se tanto, fui jornalista estagiário no jornal O Dia, um matutino importante pela sua não conotação com o governo vigente. Data dessa altura uma qualificação ternurenta que me apodaram - especialista em matéria vaga - já que, enquadrado na secção de informação geral, cobri o impacto do aumento do vinho na cooperativa de Palmela, um congresso de medicina dentária, o desaparecimento da pequena Sofia B da estrada da circunvalação onde vivia com os seus pais, e outras importâncias semelhantes. Também nesse âmbito generalista me deslocava amiúde à Polícia Judiciária para consultar o rol de actividades dos meliantes. E foi aí, à Gomes Freire, que acrescentei ao meu léxico a expressão varinha mágica - designação que desconhecia - artigo que havia sido furtado na véspera.

(De notar que foi só após 1981, já eu estudava integrais duplos, centipoises e resistência de materiais, que me confrontei com o termo trem de cozinha, novidade que fez de mim um homem diferente).

É também nessa altura jornalística que me atrevo, com 21 anos feitos de ignorância, despudor e ingenuidade, a escrever sobre corridas de touros. Um dia, proveniente de um bandarilheiro cujo nome não esqueci jamais, recebo o sobrescrito abaixo, irrepreensível na sua caligrafia de Futura preta. O conteúdo é irrelevante, apenas o cartaz de umas festas em Vila Franca de Xira.


O que podemos realçar no sobrescrito, para além de ser um documento com 36 anos guardado numa caixa com objectivo indefinido? A resposta está nas aspas em torno de crítico tauromáquico - um símbolo gráfico que muda tudo, que põe tudo em questão. 

Se eu escrever gato tem quatro patas, a frase está correcta. Se eu escrever gato tem quatro letras, a frase está incorrecta. Mas se eu escrever "gato" tem quatro letras, a frase torna-se de novo correcta. O que altera tudo? As aspas. As aspazinhas. O animal gato tem quatro patas mas não tem quatro letras. Só a palavra gato é que tem quatro letras. Vamos ao último raciocínio: a frase "'gato' tem quatro letras" tem quatro palavras. As aspas, de novo. 

Mudemos de âmbito. Se eu escrever Prof. Miguel Relvas a frase está incorrecta, porque o cavalheiro que ascendeu a ministro não é professor. Se eu substituir Prof. por Dr. a frase torna-se dúbia, porque não se sabe que habilitações literárias tem o senhor. Agora, se eu lhe dirigir um sobrescrito para indagar onde há seminários de folclore ou cursos de gestão de ranchos e o endereçar ao "Dr." Miguel Relvas a conclusão é simples: há gozo! A utilização das aspas não destaca títulos ou nomes comerciais, como o bandarilheiro usa em jornal "O Dia". No caso de Miguel Relvas reflecte uma ironia - ah! e tal, ele não é bem doutor...

O que significam as aspas na expressão abaixo do meu nome? Significam ironia, isto é, Miguel Relvas está para doutor como João Bragança está para crítico tauromáquico? Ou significam apenas a expressão crítico tauromáquico e, nesse sentido, poderia estar "apreciador de vinho" ou mesmo  "gente alta" ou ainda "oh laurentina, vem à janela...".

Houve gente que escreveu muito sobre isto, sobre uso e menção. Só me falta perceber porquê. 

JdB 

* publicado originalmente a 6 de Março de 2015 
    

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