A propósito de uma visita, com amigos, a uma exposição na Fundação Albuquerque. É tudo muito bom - a arquitectura, o jardim, o enquadramento, a categoria das peças, a iluminação, o guia. Vale a pena ir.
JdB
As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
A propósito de uma visita, com amigos, a uma exposição na Fundação Albuquerque. É tudo muito bom - a arquitectura, o jardim, o enquadramento, a categoria das peças, a iluminação, o guia. Vale a pena ir.
JdB
Sá de Miranda, num soneto que aqui postei há poucos dias, faz uma pergunta: que farei quando tudo arde? Fernando Pessoa, no seu poema O Conde D. Henrique (incluído na Mensagem) faz uma outra pergunta: que farei eu com esta espada? 400 anos separam ambos os poetas. Porém, apesar da distância temporal de quatro séculos, a interrogação aproxima-os: que farei...?
A interrogação é a mãe da resposta, embora só possamos intuir que os poetas a descobriram. Sá de Miranda deixa a pergunta no último verso do poema; Fernando Pessoa só acrescenta mais um verso depois da pergunta (Ergueste-a, e fez-se). Mas ambos fazem a pergunta certa: o que farei com uma determinada situação (quando tudo arde) e o que farei com uma determinada ferramenta (esta espada). Perceber que a pergunta certa é o que farei com...? é abrir a porta à solução - e a solução está no futuro que se constrói todos os dias. Sá de Miranda não pergunta porque é que tudo arde e Pessoa sabe que tem uma ferramenta, faltando apenas o discernimento do que fazer com ela.
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Já aqui escrevi sobre o tema da dívida de gratidão para com pessoas que, em determinados momentos da vida, form particularmente importantes para nós. Um destes dias percebi (ou confirmei, não sei...) que estas dívidas de gratidão jogam muito a nosso favor. Não só somos gratos (e a gratidão verbalizada está em desuso) como percebemos a bondade que não desapareceu do mundo e a amizade que as pessoas têm por nós. Ter dívidas de gratidão faz bem à alma de credores e devedores.
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É de um certo domínio do bom senso a afirmação de que a repressão de sentimentos não é positiva. Salomón Sellam, um médico francês especialista em psicossomática, de quem ouvi falar esta semana, afirmou: tudo o que não se pode expressar exteriormente fica impresso interiormente e manifesta-se sob a forma de sintoma. A vida obriga a um equilíbrio: se retrairmos tudo, o nosso bem-estar fica prejudicado; se exteriorizarmos tudo, o bem-estar dos outros fica prejudicado. A medida certa chama-se educação.
JdB
EVANGELHO – João 20,19-31
Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
com medo dos judeus,
veio Jesus, colocou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhe-ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes serão retidos».
Tomé, um dos Doze, chamado Dídimo,
não estava com eles quando veio Jesus.
Disseram-lhe os outros discípulos:
«Vimos o Senhor».
Mas ele respondeu-lhes:
«Se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos,
se não meter o dedo no lugar dos cravos e a mão no seu lado,
não acreditarei».
Oito dias depois, estavam os discípulos outra vez em casa
e Tomé com eles.
Veio Jesus, estando as portas fechadas,
apresentou-Se no meio deles e disse:
«A paz esteja convosco».
Depois disse a Tomé:
«Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos;
aproxima a tua mão e mete-a no meu lado;
e não sejas incrédulo, mas crente».
Tomé respondeu-Lhe:
«Meu Senhor e meu Deus!»
Disse-lhe Jesus:
«Porque Me viste acreditaste:
felizes os que acreditam sem terem visto».
Muitos outros milagres fez Jesus na presença dos seus discípulos,
que não estão escritos neste livro.
Estes, porém, foram escritos
para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus,
e para que, acreditando, tenhais a vida em seu nome.
Que Farei quando Tudo Arde?
O PAPA DA IGREJA ‘HOSPITAL DE CAMPANHA’
Logo que foi eleito, num Conclave invulgarmente rápido, Jorge Mario Bergoglio baralhou todos os vaticínios. E surpreendeu a multidão, reunida na Praça de S. Pedro, ao apresentar-se como vindo «do fim do mundo». Referia-se à Argentina, bem a Sul do longínquo Hemisfério Sul. Era o dia 13 de Março de 2013. Tudo foi simples, descomplicado, sumamente humilde, a pedir a bênção dos fiéis!
Inaugurou um nome novo, para seguir os passos do Santo dos pobres – Francisco de Assis. Somou mais uma invulgaridade ao ser o primeiro jesuíta (cujos superiores são alcunhados de Papas negros) e o primeiro latino-americano a ascender à cátedra de Pedro.
Em doze anos de pontificado, marcou o mundo com críticas mordazes contra os abusos ambientais, o capitalismo desenfreado, a corrida às armas, as políticas belicistas, o cinismo e as mentiras dos oportunistas e manipuladores. Foi um defensor constante dos desfavorecidos, de uma Igreja capaz de ir até às periferias acudir a quem mais sofre e se sente desamparado. Proclamou tolerância zero aos crimes de pedofilia cometidos por membros da Igreja, na continuidade dos seus antecessores (sobretudo de Bento XVI). Mais, considerou «satânicos» aqueles crimes (e vários outros), mas nenhum dos militantes agnósticos e ateus do Ocidente se atreveu a interrogá-lo sobre a (in)existência de Satanás e, logo, sobre o despropósito do adjectivo, que o Papa usou múltiplas vezes… Curioso. Como curioso foi ver o afã dos líderes partidários de todo o espectro político, da extrema-esquerda à direita mais radical, a desfilarem na televisão com mensagens muito simpáticas de condolências pela morte de Francisco. Apesar de Portugal estar em campanha eleitoral, é raro tanta mente bem-pensante prescindir do típico disclaimer sobre a sua perspectiva agnóstica. Invulgarmente omissos e só elogiosos do Papa, muito prontos a gabá-lo e a citá-lo amiúde.
Percebe-se quanto a mensagem de Francisco ecoou pelas quatro partidas do mundo. Lembro duas intervenções sobre um tema que lhe era especialmente caro — a misericórdia, recorrendo sempre a uma linguagem sumamente simples, directa, acessível a todos, todos, todos: «A misericórdia de Deus é a nossa libertação e a nossa felicidade. Vivemos da misericórdia e não podemos nos dar ao luxo de ficar sem misericórdia: ela é o ar que respiramos. Somos pobres demais para estabelecer condições, precisamos perdoar, porque precisamos ser perdoados». Ainda a misericórdia sob o prisma do perdão: «Quantos de nós talvez mereceríamos uma condenação! E seria também justa. Mas Ele perdoa! Como? Com a misericórdia, que não apaga o pecado: é somente o perdão de Deus que o apaga, enquanto a misericórdia vai além. É como o céu: olhamos para o céu, tantas estrelas, mas quando o sol vem pela manhã, com tanta luz, as estrelas não podem ser vistas. Assim é a misericórdia de Deus: uma grande luz de amor, de ternura, porque Deus perdoa, não com um decreto, mas com uma carícia».
Num vídeo de 2 minutos, flui a expressiva colecção de graffitis que o artista italiano Maupal (Mauro Pallotta) dedicou a Francisco e à sua mensagem tão humanizante.
https://drive.google.com/file/d/1emDz_0beOFPq1GGYrFsMxnyW4gzDlc7g/view?usp=drive_web
Na altura das JMJ, uma jornalista publicou na Forbes um artigo com doze dicas de gestão inspiradas no Papa e baseadas no livro do norte-americano Jeffrey A. Krames – «LEAD WITH HUMILITY: 12 Leadership Lessons from Pope Francis»:
«As 12 lições de liderança do Papa que qualquer gestor pode aplicar
Como este líder carismático tem gerido e aumentado os católicos no mundo, usando a humildade e a inclusão. A obra de Jeffrey A. Krames “Lidere com Humildade” destaca 12 lições de liderança do Papa Francisco, que aqui reproduzimos:
1. LIDERAR COM HUMILDADE. O Papa Francisco acredita que a humildade capacita os líderes como nenhuma outra qualidade de liderança. “Se conseguirmos desenvolver uma atitude verdadeiramente humilde, poderemos mudar o mundo”. A humildade é a mãe de todas as virtudes.
2. CHEIRAR COMO O SEU REBANHO. Este é um preceito do Papa Francisco que significa: ”imergir em qualquer grupo que lidera”. Bergoglio, seu nome de batismo antes de se tornar Papa, é conhecido como o “Bispo dos pobres”, pela sua dedicação às favelas argentinas e por todo um quotidiano a fazer coisas básicas como arrumar o próprio quarto, cama, lavar a louça…
3. QUEM SOU EU PARA JULGAR? O Papa não se vê como tendo um papel superior no julgamento de pessoas. Assim, as lideranças deveriam – em vez de julgar os seus – ouvi-los, avaliá-los e concentrar-se nos seus pontos fortes.
4. NÃO MUDAR: REINVENTAR. Muitos criticam que o Papa Francisco “está a mudar tudo” dentro da Igreja. Na verdade, apenas reinventou a maneira de viver o Catolicismo.
5. FAÇA DA INCLUSÃO UMA PRIORIDADE. O Papa sublinhou a importância de um diálogo aberto e da comunicação; incluir todos, os de dentro e os de fora da Igreja, os “justos e pecadores”. Como? Pedindo a todos que rezem por ele.
6. EVITE A MESQUINHEZ. O Papa não acha que pode conseguir tudo sozinho, pelo que apela à união e a aceitar a diferença.
7. ESCOLHA O PRAGMATISMO SOBRE A IDEOLOGIA. Papa Francisco dá a chave para abrir a porta da condução dos seres humanos: a realidade está acima da ideia. Quando atuamos de maneira contrária, na missão católica, colocamos a carroça à frente dos cavalos..
8. EMPREGAR A ÓTICA DE TOMADA DE DECISÃO. Por toda a sua professada humildade e defesa dos necessitados; o Papa Francisco tornou-se um praticante de política organizacional. Ele sabe que, como os líderes decidem, é tão importante quanto o que eles decidem.
9. COMANDE A SUA COMUNIDADE COMO UM HOSPITAL. O Papa Francisco vê um papel fundamental para a Igreja Católica em “curar as feridas e aquecer os corações” dos fiéis.
10. VIVA NA FRONTEIRA. A fronteira não é um lugar físico, não é uma linha ou muro. É a maneira de ser testemunha. Krames disse que é a combinação de uma atitude mental positiva e aberta juntamente com a coragem e a audácia de sair da zona de conforto. A fronteira é tudo aquilo “que não gira ao seu redor”. Ou seja, superar o narcisismo ou sair de si mesmo.
11. CONFRONTAR A ADVERSIDADE DE FRENTE. O Papa passou por muitas lutas para chegar ao topo da sua igreja. As lideranças podem aprender a transformar a adversidade numa vantagem. Fazer isso requer enfrentar as adversidades de cabeça erguida, em vez de fingir que não existem.
12. PRESTE ATENÇÃO AOS NÃO-CLIENTES. O Papa Francisco demonstra uma vontade de ir além dos frequentadores da Igreja Católica. O líder deve ter um objetivo similar. Sem esquecer os fiéis existentes. Francisco tem ido onde nenhum outro foi.»
Um cartoon especialmente feliz creio ser este, sem pretensões de saber o que se passará do lado de lá da Vida:
Mal dá para acreditar que passaram doze anos! Esta não será a hora das palavras, que não estão à altura do mistério desafiante que é a morte. Mas vale um enorme OBRIGADA ao querido Papa Francisco e um pedido ao Espírito Santo para iluminar os Cardeais eleitores e, depois, o seu sucessor.
Em 2023, aquando da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, tive a oportunidade de conhecer o Papa, de lhe dirigir algumas palavras e de cumprimentá-lo. Fi-lo enquanto presidente da Acreditar, tendo sido acompanhado por cerca de 25 pessoas, maioritariamente pais / mães e crianças / jovens doentes. Para um católico, o privilégio foi imenso.
***
Sou contemporâneo de cinco Papas, embora relativamente a dois - Paulo VI e João Paulo I - não tenha grande memória nem opinião, por motivos diferentes: o primeiro morreu em 1978, tinha eu 20 anos, e a religião ocupava um lugar rotineiro talvez menor na minha vida, numa altura em que estaria focado noutras áreas da existência. O outro Papa não viveu tempo suficiente para deixar marca.
O meu Papa não é o Papa Francisco. Não por uma questão política ou doutrinária, mas, talvez, porque João Paulo II tenha imprimido uma marca suficientemente forte em mim para relegar os Papas seguintes para uma posição menos cimeira. Como qualquer católico - e uma vez que o Papa só é infalível em matéria de fé - olho para o papado de Francisco com um olhar misto. Não concordei com tudo, mais na forma do que no conteúdo, mas reconheço que houve momentos determinantes para a Igreja nos últimos anos: mudou-se o discurso, o foco, a importância relativa das coisas. Abordaram-se temas fracturantes para o mundo católico, mas que são temas que merecem ser discutidos, nomeadamente o acesso aos sacramentos por parte dos recasados e a relação da Igreja com os homossexuais; deu-se uma conotação mais significativa à palavra periferia e a expressão igreja em saída deixou de ser mera retórica. Para a posteridade ficará o rompimento do Papa Francisco com alguns sinais de grandeza tradicionais e, na memória de muitos, o todos, todos, todos.
Perguntei há pouco tempo a um padre quem seria o próximo Papa. Falou-me de um asiático (bispo de Manila) ou de um africano (Guiné Equatorial ou Gana, talvez). A ver vamos quem tocará esta difícil barca da igreja para a frente. A mim, como católico, resta-me rezar para que o Espírito Santo ilumine quem vai ter de escolher a pessoa mais indicada para os tempos que atravessamos.
JdB
EVANGELHO – João 20,1-9
No primeiro dia da semana,
Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro
e viu a pedra retirada do sepulcro.
Correu então e foi ter com Simão Pedro
e com o discípulo predileto de Jesus
e disse-lhes:
«Levaram o Senhor do sepulcro
e não sabemos onde O puseram».
Pedro partiu com o outro discípulo
e foram ambos ao sepulcro.
Corriam os dois juntos,
mas o outro discípulo antecipou-se,
correndo mais depressa do que Pedro,
e chegou primeiro ao sepulcro.
Debruçando-se, viu as ligaduras no chão, mas não entrou.
Entretanto, chegou também Simão Pedro, que o seguira.
Entrou no sepulcro
e viu as ligaduras no chão
e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus,
não com as ligaduras, mas enrolado à parte.
Entrou também o outro discípulo
que chegara primeiro ao sepulcro:
viu e acreditou.
Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura,
segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos.
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Raising of the Cross (Rembrandt) |
Para Platão, todo o conhecimento é reminiscência. Para Kirkegaard, repetição e recordação são um mesmo movimento, mas em sentidos opostos: aquilo de que nos recordamos, já foi; a repetição propriamente dita é uma recordação para a frente. Por isso a recordação provoca nostalgia, tristeza, enquanto que a repetição, em sendo possível, torna o Homem feliz.
O tema da repetição embateu-me na testa num dia qualquer da semana passada, tendo-se reavivado este fim de semana quando li um artigo no Observador sobre turismo. Eu próprio repeti viagens por gosto, por força das circunstâncias, por afecto. Como já o afirmei, uma parte substantiva de mim viaja em busca do regresso a casa. Repetimos viagens, talvez não repitamos as emoções - a nossa circunstância é diferente, os sítios estão diferentes, os nossos sentidos são diferentes. E no entanto, grande parte das cidades - pelo menos as zonas históricas - permanecem inalteradas de há muitos anos para cá.
Para Kirkegaard havia dois tipos de viagens: as interiores e as exteriores. E havia dois tipos de viajantes: (i) os que numa cidade vão conhecer o que é suposto conhecer-se; e (ii) os que conhecem intensamente uma parte, ignorando sítios paradigmáticos (p. ex., ir a Paris e desconhecer a Torre Eiffel). Com o avançar do tempo as minhas viagens perderam um pouco o pendor cultural (museus, palácios, etc.) para se debruçarem mais sobre a vida das ruas. Comecei a privilegiar estar sentado numa esplanada e ver gente a passar, adivinhando-lhes a vida. Nada de muito original, portanto.
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Veneza (Photo by Ian Gavan/Getty Images) |
Volto ao artigo do Observador, lembrado de dois amigos que, na semana passada, foram a Veneza pela primeira vez. Alguns números: nos últimos 30 anos, 46% da população de Veneza saíu da cidade - hoje são apenas 55.000; as previsões mais aterradoras apontam para que em 2030 não haja gente local a viver naquela cidade; há 22 milhões de visitantes por ano, sendo que apenas 2 milhões visitam museus pelo que, depreendo, o resto anda pelas ruas e canais. Ouve-se falar italiano em Veneza? E que impacto tem isso na forma como andamos de vaporetto ou nos sentamos numa esplanada na Praça de S. Marcos?
A ideia de viajarmos para conhecer a vida local talvez tenha os dias contados, se entendermos vida local como interagir com os nativos. Não há garantia, ao contrário do que diria Kirkegaard, de que a repetição nos faça mais feliz; para um tipo de viajante, e relativamente a determinados locais, sobra-nos a recordação. Volta, nostalgia, estás perdoada.
JdB
* publicado originalmente a 27 de Abril de 2016
Timidamente, o delegado de propaganda médica, já deitado sobre o divã mole, atreveu-se a murmurar, imaginando uma confusão de pessoas, que o que o trazia àquele consultório não era a barriga, mas sim o espírito.
Do youtube:
A «Ressurreição» foi escrita por Diogo Pacheco de Amorim e cantada por José Campos e Sousa durante o “Verão Quente” de 1975, num momento de grande vontade combativa e de alguma esperança, nas vésperas de uma tão desejada insurreição civil e militar contra o poder comunista-esquerdista secretariado.
Ressurreição
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* partilhado por mão amiga
LEITURA II – Filipenses 2, 6-11
Cristo Jesus, que era de condição divina,
não Se valeu da sua igualdade com Deus,
mas aniquilou-Se a Si próprio.
Assumindo a condição de servo,
tornou-Se semelhante aos homens.
Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais,
obedecendo até à morte e morte de cruz.
Por isso Deus O exaltou
e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes,
para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem
no céu, na terra e nos abismos,
e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor,
para glória de Deus Pai.
Em 2006, a empresa na qual trabalhava há 20 anos já estava numa fase de redução forte da estrutura. Ao longo dos meses foram saindo quadros intermédios / superiores, num processo que, por mais generoso financeiramente que possa ter sido, provocou desconforto e angústia em muitas pessoas. A mim também me tocou ser protagonista desse movimento: no dia 26 de Abril comunicaram-me que o meu posto de trabalho seria extinto no dia 31 de Dezembro. Eu tinha 48 anos.
Este processo de despedimento / negociação de saída foi doloroso para muitos dos meus colegas, que se sentiram desconsiderados, descartados, e cuja auto-estima terá sido afectada. A mim salvou-me esta ideia que desenvolvi dentro de mim: se eu fosse a empresa para a qual trabalhava faria o mesmo, e 'negociaria' o JdB. Para além da extinção do posto de trabalho, quem eu era profissionalmente já não interessava à empresa. Eu pertencia a outra geração, que tinha trabalhado numa empresa que crescia anualmente a dois dígitos, empresa essa que se via agora confrontada com um decréscimo do volume de negócios. O que eu era já não interessava - e esse auto-conhecimento permitiu-me (também) perceber que se encerrava um tempo na minha vida. Saí tranquilo, consciente da finitude das coisas e do fecho dos ciclos.
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O Board da organização internacional de que faço parte - a Childhood Cancer International - juntou-se em Lisboa nos últimos dias para a sua habitual reunião de meio do ano. Será a última em que participo, pois sairei do Board em Outubro depois de cumpridos os 9 anos estatutários. O meu afastamento da comunidade internacional da oncologia pediátrica será quase total, por outro motivos, mas não é isso que me leva a este texto.
Na 2ªfeira, no meio de discussões sobre estratégia, branding, comunicação, crescimento, projectos, percepção da opinião pública, etc., tomei consciência de algo importante e igual ao que tinha sentido profissionalmente em 2006: o meu tempo - este meu tempo - tinha chegado ao fim. O meu discurso, as minhas ideias, os meus conhecimentos - o que eu era, no fundo - já não interessavam tanto a uma organização que (curiosamente e ao contrário da realidade de 2006) crescia anualmente a quase dois dígitos. Percebi que me faltava vocabulário para esta nova realidade. A minha voz continuará a ter alguma relevância dada a minha senioridade e conhecimento deste mundo, mas noutro enquadramento. Sairei tranquilo, consciente da finitude das coisas e do fecho dos ciclos.
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Não sei se sou inteligente, se tenho sorte. Face a estas saídas - a de 2006 e a de 2025 - não sei se o meu auto-conhecimento é uma defesa do corpo, um discernimento do corpo, ambos ou nenhum. O que sei - e disso estou certo - é que esta noção da finitude das coisas e dos fechos dos ciclos me confere uma tranquilidade grande. Perceber que aquilo que sou acrescenta menos valor aos sítios onde estou, tira-me a sensação de vazio que vi em pessoas que deixaram actividades profissionais ou de voluntariado.
Ninguém é a man for all seasons. Quando tudo acabar, que não me falta o discernimento de perceber que tudo acaba.
JdB
TRUQUE PARA OS CLIENTES LARGAREM OS TELEMÓVEIS
Todos iguais, todos diferentes, dizia George Orwell! Assim também cada país, cada artista ou empresário ou pai desencanta uma solução própria para combater o vício desumanizante do excesso de telemóvel, que já será a arma antissocial mais disseminada (porque acessível) do mundo! Em Itália, um restaurante privilegiou uma abordagem deliciosamente positiva. Mas comecemos pelo cinema, onde pululam denúncias mais incisivas.
Curiosamente, provém da Ásia uma onda de alertas, em versão animada – ora de pendor emotivo, ora mais satírico-corrosivo –, sobre o isolamento que o telemóvel pode provocar, naturalmente quando há excesso. O problema é a facilidade com que maus hábitos insignificantes resvalam, rapidamente, para o vício patológico.
Percebe-se que a febre dos telemóveis esteja exacerbada em países com produção própria ou com populações adolescentes especialmente tecnológicas. Isso explicará por que se tornou num tema recorrente em curta-metragens animadas do Indo-Pacífico, merecidamente premiadas pela indústria cinematográfica.
O filme «Addiction» do malaio Ngu Yon Xian baseia o argumento numa experiência imprevista e dolorosa na vida de uma adolescente de 12 anos, a quem o pai ofereceu o presente da sua vida – um portentoso telemóvel. Mal sabia ela a armadilha que lhe caíra nas suas mãos imaturas e impreparadas para aquela proeza high-tech:
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Testemunho de Angelo Lella: «It really is a beautiful thing to see people embracing it – they are talking to each other rather than looking at photos or responding to messages on their phone.» |
gi.
* publicado originalmente a 16 de Julho de 2010
EVANGELHO – João 8,1-11
Naquele tempo,
Jesus foi para o Monte das Oliveiras.
Mas de manhã cedo, apareceu outra vez no templo,
e todo o povo se aproximou d’Ele.
Então sentou-Se e começou a ensinar.
Os escribas e os fariseus apresentaram a Jesus
uma mulher surpreendida em adultério,
colocaram-na no meio dos presentes e disseram a Jesus:
«Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério.
Na Lei, Moisés mandou-nos apedrejar tais mulheres.
Tu que dizes?».
Falavam assim para Lhe armarem uma cilada
e terem pretexto para O acusar.
Mas Jesus inclinou-Se
e começou a escrever com o dedo no chão.
Como persistiam em interrogá-l’O,
ergueu-Se e disse-lhes:
«Quem de entre vós estiver sem pecado
atire a primeira pedra».
Inclinou-Se novamente e continuou a escrever no chão.
Eles, porém, quando ouviram tais palavras,
foram saindo um após outro, a começar pelos mais velhos,
e ficou só Jesus e a mulher, que estava no meio.
Jesus ergueu-Se e disse-lhe:
«Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?».
Ela respondeu:
«Ninguém, Senhor».
Disse então Jesus:
«Nem Eu te condeno.
Vai e não tornes a pecar».
Éramos inseparáveis. Eu, o Hubert, o Karim. Jogávamos futebol durante o dia, tomávamos banho no rio no Verão. À noite saíamos para o cinema ou para os bares para jogar bilhar, envoltos em fumo e ruído. Bebíamos mais do que devíamos, naquele desequilíbrio adolescente cujo futuro é incerto. O que seria de nós, o que seria do mundo, se em jovens prevíssemos o preço que pagaríamos em adulto pelos nossos excessos?
Bebíamos muito. Ao fim da noite o Hubert já ria quase descontroladamente, com os cabelos num desalinho de louco e metade da camisa fora das calças, aproximando-se ousadamente das raparigas locais que, gargalhando com gosto, fugiam dele. Foi para ele uma época que durou pouco, quase como se cumprisse um calendário ou fizesse um intervalo na sua verdadeira natureza. Encontrou-se na sobriedade da vida e vive feliz. O Karim mantinha-se sempre sossegado, encostado ao balcão ou a uma mesa de bilhar, de garrafa constante na mão. Era um sossego enervante, pois não emitia sinais do seu estado. Atravessou a vida assim: casou, separou-se; casou, separou-se. Vai voltar a casar e a separar-se, sempre silenciosamente, um pouco como se a vida não fosse mais do que um sucessão de cervejas bebidas no estabelecimento local.
E eu? Eu colava-me aos outros quando o corpo acusava excesso de álcool. Uns riam, outros contavam piadas, outros ainda mantinham uma calma quase incomodativa. Eu colava-me nos bancos, encostava-me a uma parede, e maçava quem ali estava com uma conversa desajustada. Era assim que eu me dava ao fim da noite. Não voltei a embebedar-me desde que fui para Paris estudar veterinária. Mais do que dos excessos, quem sabe não fugia de uma natureza que não entretinha ninguém. Talvez continue a ser assim, a viver um desajuste momentâneo como se estivesse ébrio. Às vezes parece que fujo dos outros, que me afasto dos outros. É possível que só queira, com falta de jeito, reconheço, proteger os outros de mim. Como se a vida fosse um bar forrado de mesas de bilhar e as minhas conversas não fossem as conversas de mais ninguém. Como se as minhas conversas não fossem mais do que as minhas conversas.
Marcel Larque (Lettres aux amies disparus, Éditions Maison Jaune, 2010, tradução minha deste excerto)
Aspas: sinal gráfico que destaca títulos ou nomes comerciais, sendo também usado para delimitar citações ou realçar uma palavra ou expressão.