01 março 2023

Vai um gin do Peter’s ?

GANDHI E VASCO DA GAMA EM ÓPERA 

O conhecido compositor e pianista norte-americano Philip Glass, inconfundível pela sua sonoridade minimalista, repetitiva (nas palavras do próprio) mas impactante e harmoniosa, assinou bandas sonoras de filmes e de peças de teatro (Truman Show, Candyman, The Hours, The Secret Agent, etc.), além de concertos (12), sinfonias (14), óperas (15), música de câmara, etc., em grande profusão. 

Nascido em 1937, na cidade de Baltimore, proveio de uma família de emigrantes lituanos judeus radicados nos EUA. Do pai, que geria uma loja de discos e recomendava aos clientes novas escolhas musicais, recebeu o gosto pela música e por inovar. Da mãe, bibliotecária e empenhada no apoio aos refugiados judeus no rescaldo da Segunda Guerra, herdou a adesão a causas difíceis, que em Philip se traduziu, por exemplo, no protesto contra a anexação do Tibete. 

Mural com o seu retrato numa das estações do Metro de Nova Iorque.

Cedo conheceu outros continentes (1954), começando por aterrar em Paris, aonde voltou nos anos sessenta para aprofundar os estudos musicais, saborear os meios artísticos que pululavam na Cidade das Luzes e acompanhar a Nova Vaga do cinema francês. Passou pela Índia, cuja tradição musical inspirou a sua matriz depurada e repetitiva. Ali, foi também tocado pelo Budismo e pelos refugiados tibetanos. Em 1972, conheceu o Dalai Lama tornou-se num fervoroso defensor da independência do Tibete. No final dos anos 60, em Nova Iorque, gostava de tocar as suas peças em galerias de arte ou em salas de museu ou em lofts de artistas badalados de Manhattan, cultivando a amizade com representantes de outras expressões artísticas. Enquanto alguma crítica tradicional o desapreciava, os mais novos adoravam os seus sons simplificados e intensos, como David Bowie ou Brian Eno, que referiu assim o primeiro encontro com Glass: «It was the most extraordinary musical experience of my life. This was actually the most detailed music I'd ever heard. It was all intricacy, exotic harmonics, a viscous bath of pure, thick energy.». 

Retrato de Philip Glass por Luis Alvarez Roure, de 2016. Na colecção da Smithsonian National Portrait Gallery, Washington, D.C.

Apesar de ter marcado a música do último quartel do século XX, só a partir do final dos anos 70 conseguiu viver do que compunha. Entre 1973 e 1978, teve de recorrer a biscates, alguns menos recomendáveis para as mãos de um pianista como arranjar canalizações e (com menos risco) guiar táxis. Precisamente a encomenda para a ópera de Glass sobre Gandhi e demais pacifistas inaugurou um novo ciclo profissional inteiramente dedicado à música. Nessa Primavera de 1978, o trabalho que a Netherlands Opera lhe adjudicou deu origem a «Satyagraha», que pertence à trilogia operática sobre sumidades revolucionárias em três áreas fulcrais da vida humana: a ciência, a política e a religião. Para as duas primeiras, Glass escolheu personalidades do século XX: Einstein e Gandhi com os seus seguidores. Para a religião, elegeu o faraó mais atípico do Egipto, que se atreveu a suspender a tradição politeísta, introduzindo o monoteísmo e o louvor a um Deus único criador e guardião do universo. O rei Akhnaten – que deu o título à ópera – tornou-se num proscrito da história, praticamente obliterado da memória faraónica. Alguma iconografia da época sugere que padeceria de uma deformação física, assim contrastando com a beleza superlativa da mulher – Nefertiti. Mas fica a dúvida se seria já uma forma de lhe diminuir a estatura para a posteridade, ele que fora o pai do grande Tutankhamon e o marido da aclamada rainha egípcia.

«Satyāgraha» é o termo em sânscrito adoptado por Gandhi para exprimir «firmness in a good cause» e «a força da verdade», fundamentos da sua luta política por meios pacíficos, sempre enraizada na Verdade. Num ápice, o termo deu nome a todas as formas de resistência civil activa e não-violenta. Na ópera de Glass, estreada em 1980, acompanhamos a fase inicial da luta de Mahtama Gandhi na África do Sul, a par do combate sem armas de outros personalidades praticantes da não-violência como Leo Tolstoy na Rússia czarista, Tagore na Índia e Luther King nos Estados Unidos. O libreto ficou a cargo de uma das suas amigas do SoHo – Constance de Jong, enquanto o amigo Robert Israel assumiu a cenografia e todo o trabalho de design, pois nada nas óperas de Glass é deixado ao acaso. O resultado foi um monumento de orquestração sinfónica, com intervenções corais espantosas:

   

  

Portugal, através da Comissão Nacional dos Descobrimentos, também encomendou uma ópera a Philip Glass, com estreia mundial na Expo’98, a 26 de Setembro desse ano. Intitulou-se «White Raven» (Corvo Branco) e teve libreto de Luísa Costa Gomes, cobrindo a expansão ultramarina, desde o século XV, com ponto alto na viagem marítima de Vasco da Gama até à Índia. A ideia partira de Mega Ferreira, entusiasmado com a ópera “The Voyage”, que Glass compusera para os 500 anos das descobertas de Cristóvão Colombo. A custo, o português conseguiu interessar o norte-americano pelo projeto, que foi realizado num Inverno passado num dos países de língua portuguesa – o Brasil. Corria o ano de 1991. 

Saltando para a actualidade mais próxima, no rescaldo do 24 de Fevereiro, que marca um ano da agressão militar russa contra a Ucrânia, balanços lúcidos são bem vindos, sendo muito saudável terem ecoado na Assembleia da República: 

Se para fazer a guerra basta um, ao invés do que disse Lula da Silva, claro que para fumar o cachimbo da paz serão necessários, pelo menos, dois. Como se comprova logo nos bancos da escola: nunca é a passividade da vítima de bullying que trava ou desincentiva a agressão. Bem ao contrário, pelo que é importante diferenciar a luta eficaz de Gandhi das vozes passivas que invocam o “pacifismo” para defender o fim de hostilidades por mera capitulação de uma das partes, normalmente a vítima da violência, pois a outra não lhes está ao alcance travar! Miterrand desmascarou lapidarmente esta incoerência recorrente e talvez ingénua, muito ouvida durante a Guerra Fria, claro que só no lado democrático do planeta, onde tudo se podia e continua a poder dizer: «Verifico que os (alegados) “pacifistas” estão todos no Ocidente e os mísseis (sob ameaça de serem disparados) no Leste».    

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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