27 dezembro 2024

Da importância das vidas privadas

Na semana passada fui ver e ouvir a Oratória de Natal, de Bach, à Gulbenkian. Embora seja, globalmente, um espetáculo magnífico de interpretação e criatividade, não deixa de ter momentos menos interessantes (para mim, é claro), nomeadamente os recitativos. É nessas alturas que a minha mente deambula e os meus olhos divagam pela orquestra e pelo coro. E é nessa altura, também, que me assalta um pensamento todo feito de auto-consciência: da próxima vez trago uns binóculos de teatro, pois já nem ao longe vejo bem

Um olhar individual e, quiçá, demorado, sobre os artistas não é tempo perdido, nem uma espécie de ocupação de tempos livres enquanto o cantor lírico recita episódios do nascimento de Jesus; olhar para uma violoncelista loira ou para um clarinetista de rabo-de-cavalo é uma oportunidade para, numa criatividade sem freios (a ligação entre rabo-de-cavalo e freios foi um acaso, mas é interessante) se imaginar quem são e o que são fora do palco: o que comem, de que riem, como fazem amor, o que os comove ou o que leem, que música ouvem. No palco não são mais do uma designação genérica: fagotista, contra-baixista, primeiro violino, primeira ou segunda voz, tenor ou contralto. Fora do palco são a Clara, o Roberto, o Carlos, a Eugénia ou a Matilde. Deixam de ser artistas para voltar a ser pessoas. É esta vida do foro privado que me alimenta a imaginação. 

Num ensaio intitulado A Felicidade Doméstica (in Ensaios sobre a Virtude e a Felicidade) diz Samuel Johnson:

(...) de igual forma, um punhado de dores e outro de prazeres constituem todos os materiais da vida humana; as suas proporções são definidas em parte pela Previdência, e em parte ficam confiadas às determinações da razão e da escolha. 

Na medida em que esses materiais se disponham adequada ou inadequadamente, o homem será, de um modo geral, feliz ou miserável. Muito poucos, afinal, estão envolvidos em acontecimentos grandiosos ou têm uma vida cujo fio se entrelace na cadeia de causas da qual depende o destino de exércitos ou de nações; e mesmo aqueles que parecem ocupar-se apenas de assuntos públicos, e estar acima das preocupações comuns ou dos prazeres triviais, passam a maior parte do tempo em cenários domésticos e familiares; é desses cenários que transitam para a vida pública e, hora após hora, trazem-nos à sua presença com paixões que não devem ser suprimidas; encontram neles a recompensa pelos seus esforços e é para eles que por fim se retiram. 

O grande desígnio da prudência é animar aquelas horas que o esplendor não pode dourar e a aclamação não pode encher de alegria; aqueles intervalos de diversão descontraída em que um homem se cinge às suas dimensões naturais e põe de parte os ornamentos e os disfarces, sentindo na privacidade que eles são estorvos inúteis e que perdem todo o seu efeito quando se tornam familiares. Ser feliz em casa é o resultado último de toda a ambição, o fim para o qual se encaminha todo o esforço e trabalho, e que todos os desejos incitam a perseguir. 

De facto, aqueles que queiram fazer uma apreciação justa das virtude ou da felicidade de um homem têm de o conhecer na sua casa: tanto os sorrisos como os enfeites são ocasionais, e o espírito, para se exibir, muitas vezes engrinalda-se com honra maquilhada e benevolência fictícia. 

Eu sei que a citação é extensa, pelo que peço a benevolência, não a fictícia, de que fala o Dr. Johnson, mas a real, a que sossega um espírito complexado pela maçada a que obriga o próximo. Porém, a citação redime-me: ao imaginar a história de vida do Roberto ou do Carlos ou da Matilde não estou a exercer uma espécie de voyeurismo sobre vidas privadas; ao imaginar o que lê, como sente, do que ri, como ama, a Clara, não estou a dissecar o recato da sua vida privada nem a lançar um olho maroto e curioso sobre os seus fetiches ou inclinações. No fundo o que eu quero é imaginar o carácter de cada um destes artistas, pôr em prática as palavras sábias do pensador inglês:

As testemunhas mais fiáveis do carácter de um homem são as que o conhecem com a sua família, e que o vêem sem nenhuma inibição ou regra de conduta, salvo aquelas que ele prescreveu voluntariamente para si mesmo. 

À falta do louvor dos criados que seria, para o Dr. Johnson, o melhor panegírico que a virtude pode receber, resta-me o poder da liberdade criativa. A utilização de uns binóculos não se destina a ver um caracol desalinhado, uma curva sensual numas costas, um corte de cabelo mais inusitado ou uns olhos verdes precocemente tristes. O que eu quero é imaginar carácteres e, na verdade, já não vejo bem ao longe.

JdB   

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