23 dezembro 2024

Do Natal

 

Mão amiga enviou-me fotografia do artigo acima, publicado no jornal Público. Um texto bonito, bem escrito, que tocará muitos de nós, em particular os que se confrontaram com perdas. 

A vantagem de se ter alguma idade é a memória. Lembro-me dos últimos (quase) 60 natais: lembro-me dos meus natais de criança ou de jovem, em casa dos meus Pais ou noutras casas de família. Lembro-me dos natais solteiro, casado, separado, com filhos, sem filhos, com netos, com famílias reorganizadas, com os filhos ou netos dos outros, pessoas a quem chamamos família, ou não. Lembro-me das tradições gastronómicas das várias casas, dos ambientes, das tensões. Conheci casas para quem o Natal era uma festa mais resguardada de família, conheci casas para quem o Natal era um open house day, ou uma espécie de albergue espanhol - são todos bem-vindos desde que tragam farnel. Curiosa - ou tristemente - cada vez conheço mais pessoas que anseiam fervorosamente pelo dia 26 de Dezembro, porque a quadra suscita exageros vários e de natureza diferente.

A partir de uma dada altura, e partindo da minha própria experiência de vida, comecei a perceber o óbvio: o Natal é uma lente que amplia tudo - as tristezas, as alegrias, o desejo de mostrar que está tudo bem, os lugares vazios à mesa, a memória daqueles que desaparecerem de forma irreversível ou daqueles a quem de certa forma matámos no coração, o gozo de uma família que se aperta à mesa para receber um marido, uma mulher, um filho ou um neto. 


A fotografia acima, de um texto atribuído a Quentin Tarantino, e postado no Linkedin pelo meu querido amigo João Silva, fala disto mesmo: enquanto [o Natal] pode ser o tempo mais feliz do ano para algumas pessoas, é o tempo mais triste, mais solitário, mais tenso, mais doloroso, para tantos outros. O texto da enfermeira Carmen Garcia fala dos mortos que ainda se sentam à volta da mesa da sua consoada, mas podia falar dos vivos que, por vicissitudes da vida, já não se sentam à mesa da sua consoada, mas que ocupam um lugar forte na memória. 

O Natal é tudo o que se quiser: um tempo de generosidade, um tempo de família ou de amigos, de presentes trocados e loiça aprimorada, de refeições enfeitadas pelas receitas da tradição ou da família, um tempo de foco no presépio e no que tudo aquilo representa. Talvez devesse ser, acima de tudo, um tempo de atenção - ou, pelo menos, de uma compreensão activa - ao próximo: aos que fazem o luto por quem morreu ou se afastou, aos que fazem o luto por um tempo que acabou ou foi suspenso, aos que vivem momentos desafiantes e que geram tristeza. A todos os outros cabe, sem enfeites nem ruídos artificiais, oferecer a esta comunidade do desalento um abraço, uma frase ou um silêncio reconfortantes.  

Na minha mesa de Natal senta-se tudo e sentam-se todos, de forma desordenada e confusa, numa mistura sensorial onde pode haver música ou cacofonia. Sentam-se os que morreram ou se afastaram, os que chegaram de novo, os que permanecem, aqueles a quem, pela sua proximidade, adivinho tempos menos bons. Estou em crer que a minha mesa não é original - chegamos a uma certa idade e carregamos connosco um lastro natural e humano de alegrias e tristezas. E talvez vivamos menos bem com um Natal moderno, enfeitado de excessos, susceptível de um cansaço interior que mata o espírito do tempo. Mas até isso nos ensina esta lente magnificadora: não há fórmula certa para celebrar o Natal. Ou talvez haja, mas teríamos de ser radicais, isto é, ir à raiz das coisas

Apesar deste texto menos natalício por ausência de frases fortes onde conste o amor, a solidariedade, a alegria e as crianças, fica o desejo de um Santo Natal para todos os que passam por este estabelecimento. E que o Menino Jesus seja, de facto, a luz que nos ilumina e nos guia.

JdB        

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