13 dezembro 2024

Da ideia própria das perguntas

O sítio dos costume, mais ou menos o mesmo local, mais ou menos a mesma hora

Cresci com uma pessoa que tinha uma ideia muito própria das perguntas; e cresci com uma pessoa que tinha uma irritação muito vincada relativamente a essa ideia muito própria das perguntas. Ou seja, para uma determinada pessoa, as perguntas vais ao centro? Se sim, por onde vais? tinham uma resposta pintada de acrimónia: é relevante por onde vou? Para a pessoa que tinha acrimónia nos bolsos, pronta a sair em resposta a determinadas perguntas, o relevante era vais ao centro?, sendo que o resto era desimportante, parecia-lhe. 

Para esta mesma pessoa também havia uma espécie de informação - que apelidava de informação não solicitada - que justificava um punhado de acrimónia deitado ao diálogo. Se à pergunta vais ao centro? lhe fosse respondido sim, e vou pela rua do lado direito, então sentia-se no direito à irritação; afinal, só perguntara se ia ao centro, não lhe interessando se a pessoa em questão ia pela rua do lado direito ou pela rua do lado esquerdo. A pergunta era vais ao centro? e a resposta seria bastante directa: sim, não, não sabe / não responde, nenhuma das anteriores.

Vergílio Ferreira, no seu livro Para Sempre (Livraria Bertrand, 1983), aborda este tema, não sabendo que aborda este tema, porque menciona aspectos que são de uma conjugalidade mais literária (embora até nisso, na conjugalidade, haja pontos de intersecção...). E diz, referindo-se a Sandra (que é mulher do protagonista do livro que, por acaso, é autobiográfico): 

Sandra rarissimamente me perguntou fosse o que fosse, ah, sei bem porquê. Perguntar, situarmo-nos num plano de dependência onde se recebe a dádiva, o favor de uma resposta. Havia o resto, e esse resto era muito maior que a pequena coisa que eu queria. 

Sandra, que nunca terá pronunciado a palavra amor porque dizia que isso era ridículo, o importante seria o que se vive, responde-lhe mais à frente:

Tudo tem o seu mundo para existir. Ao nível mais alto ou mais profundo as palavras são intrusas.  

Gostava de imaginar que Sandra, ao falar da intrusão das palavras no nível mais alto ou profundo do mundo, estava a dar uma justificação elevada a quem - a tal pessoa com quem cresci - tinha uma ideia muito própria das perguntas. Temo que não seja o caso. Encontrar motivos superiores para as nossas idiossincrasias pode ser um motivo meritório, se bem que porventura inútil. Às vezes só nos resta o eufemismo: tinha um feitio desafiante...

JdB

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