O post abaixo foi publicado neste estabelecimento ontem, mas há 16 anos, e lembrava momentos significativos da minha vida dos últimos anos - 17, para ser mais preciso. A lembrança daquele tempo - um tempo marcante, por diversos motivos - traz uma memória dupla, de humor e saudade. Cantar em público foi um momento de humor inédito: já deverei ter feito gente rir, mas a cantar foi a primeira vez. Mas a lembrança teria de incluir o meu amigo JdC, que já não está entre nós, e que foi de uma amizade inexcedível num período mais difícil da minha vida. No final deste mês escreverei sobre ele; por agora fica esta pequena lembrança.
JdB
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Hoje, mas há um ano, mais dia menos dia, chegava ao Zimbabwe para aí permanecer dois meses. Preparava-me para uma travessia longa - não só o percurso aeronáutico, como também a duração da estadia, além do estado de espírito com que me atirava à jornada. Dizer que adorei lá estar não traduz, nem pouco mais ou menos, as lembranças que me ficaram desse tempo - o fascínio de uma África que eu só imaginava, o conhecimento de gente com quem faria facilmente amizade, uma vida ao mesmo tempo intensa e sossegada que me foi fundamental. Durante estas próximas semanas relembrarei, aqui e ali, episódios mais interessantes desse Verão. Hoje, deixo-vos com o excerto de uma crónica que escrevi sobre sobre a minha primeira experiência de Karaoke. Fica também a toada que atirava toda a gente para a pista de dança.
(…)
Ontem, pela hora de jantar, éramos cinco à volta de uma mesa redonda no Pointe, um estabelecimento de diversão nocturna propriedade do Sr. Quintas, que assegura ter sido, em tempos mais idos, o cantor romântico de maior sucesso na África Austral.
Posso assegurar que foi o local mais interracial que conheci em toda a minha vida: encontrei angolanos, locais brancos e pretos, portugueses, um médico da ex-Jugoslávia, um advogado grego, alemães, brasileiros, iranianos, gente da polícia, indianos, diplomatas, pessoas com ar de leste, homossexuais, um chinês e tantos outros cuja proveniência me é desconhecida.
O estabelecimento serve jantares (classificado, no Michelin que me habita os sentidos, como satisfaz / satisfaz pouco). É um restaurante arquitectonicamente algo degradado, esteticamente indefinível, com pormenores curiosos: no cimo da parede, junto à sanca, um friso de lâmpadas verdes e encarnadas brilha em contínuo, revelando um nacionalismo iluminado; nas paredes, quadros diversos, variando entre o impressionismo, marinhas inglesas, tapeçarias ou óleos locais pendurados sem rigor de esquadria nem de cota; a um canto, um sistema traiçoeiro electrocuta insectos esvoaçantes num ruído de fritura; ventoinhas diversas e em profusão, lutando contra a estagnação dos aromas; no topo do salão principal do estabelecimento, dois semáforos grandes, projectando sem qualquer regularidade uma luz avermelhada forte. Indaguei, curioso, se estaria relacionado com algum código entre patrão e empregados, um morse luminoso que agilizasse o serviço, apressando a rotação das mesas. A resposta de um dos meus colegas de repasto veio imediata:
- não! Indica apenas casa de banho cheia…
Perguntar-me-ão, então, o que lá fui fazer, o que leva ao Pointe todo o mundo de Harare, sem qualquer distinção do que quer que seja. Eu explico numa palavra simples – mas demolidora: o karaoke! Na realidade, é esta espécie de semi-playback com legendas que impele dezenas de pessoas, todas as 6ªs feiras para, à volta de uma feijoada, de uma garoupa, de um chicken piripiri ou, simplesmente, de uma cerveja, se divertirem até ao limite da (sua) decência.
A sala não estava ainda quente – embora cheia – e já eu me abalançava para o primeiro teste, sabendo que o clima mundial se altera quando canto. Olhei para uma lista infindável de canções e não encontrei o Requiem de Mozart, espécie musical onde me sinto como peixe na água. Optei por uma toada que conheço, que tem uma letra (na minha imaginação, “assexuada”) que se adequa aos vários mundos em que vivo e que permite aos espectadores cantar em uníssono com o herói que se chega à frente: Che sera, sera.Quando dei por mim, era um artista no palco, com 1,86m, barbudo, um peso a rondar (para cá ou para lá) os três dígitos, pronto a enfrentar o possível arremesso de loiça e de vegetais sobrantes. Quando dei por mim cantava, simplesmente:
Imaginei nos espectadores aquele olhar de espanto que antecede o do nojo ou da fúria – ou simplesmente o da estupefacção. Não sei se terá sido um sonho, mas o facto é que supus alguém, ao ver-me cantar uma música de mulher, a gritar da penumbra do salão:
- canta o like a virgin…
No fundo, dentro de nós vive um cançonetista em permanência, pronto a emergir ao menor sinal de despudor, de descontracção – ou excesso de vinho. Percebi, aos 50 anos, que quem habita o meu canto esmagado de entertainer se chama Doris Day…É isto, meus amigos. O karaoke levou-me, mais tarde, a enfrentar o la bamba e o obla di obla da num dueto de amigos e no recato da mesa.
Entre séries de voluntários (JdC levou uma multidão ao rubro entoando o Here comes the Sun e o Like a Rolling Stone) havia música diversa, para animar uma pista sempre cheia, mista, onde ocupei o meu lugar com a ligeireza que Nosso Senhor me quis dar. No espaço de um instante dançava com gente local e desconhecida uma toada sul-africana, sensual, batida, que me levou ao encanto de uma escultura dengosa e próxima – muito próxima, mesmo - que se contorceu com o à-vontade de quem tem estes sons dentro de si. Entre mim e ela chegou a haver, apenas, os meus óculos de meia-lua. Posso arrimar-me na dança com quem não conheço, roçar o corpo por uma beldade local, mas o facto é que já não vejo bem ao perto.
1 comentário:
Adorava ter presenciado essa grande perfomance de JdC!
fq
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