20 dezembro 2012

Crónicas de um universitário tardio

De entre os géneros literários com que travei conhecimento na pós-graduação saliento hoje o Ensaio. Na cadeira Arte e Ensaio, excelentemente orientada pelo professor Gustavo Rubim, fomos lendo e interpretando vários, desde Montaigne (o pai dos ditos cujos...) até Jorge Luís Borges, passando por Eduardo Prado Coelho, Susan Sontag ou Almada Negreiros. Mais abaixo poderão ler um dos que mais gostei de ler, porque me revelou uma visão nova de um certo mundo - talvez mesmo de uma parte do meu. Vale a pena o esforço da leitura, apesar da aparente extensão e da tradução salpicadamente brasileira...

JdB

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NAUTILUS  BATEAU IVRE 

A obra de Júlio Verne (cujo cinquentenário foi recentemente comemorado) constituiria um bom material para uma crítica estruturalista, pois é uma obra temática: Verne construiu uma espécie de cosmogonia fechada sobre si mesma, que tem as suas categorias próprias, o seu tempo, o seu espaço, a sua plenitude e até o seu princípio existencial.

Este princípio me parece ser o gesto contínuo do enclausuramento. A imaginação da viagem corresponde em Verne a uma exploração da clausura, e o bom entendimento que existe entre Verne e a infância não provém de uma mística banal da aventura, mas, pelo contrário, de um gusto comum pelo finito, que se pode encontrar na paixão infantil pelas cabanas e tendas: enclausurar-se e instalar-se, este é o sonho existencial da infância e de Verne.  O arquétipo deste sonho é esse romance quase perfeito,  A Ilha Misteriosa, no qual o homem-criança reinventa o mundo, povoa-o, fecha-o e nele se encerra, coroando este esforço enciclopédico com a postura burguesa da apropriação: pantufas, cachimbo e lareira, enquanto lá fora a tempestade, isto é, o infinito, uiva inutilmente.

Verne foi um maníaco da plenitude: não cessava de completar o mundo, de o mobiliar, de o transformar num receptáculo pleno como um ovo; o seu movimento é exatamente o de um enciclopedista do século XVIII ou de um pintor holandês: o mundo é finito; o mundo está repleto de materiais numeráveis e contíguos. O artista só pode ter uma função: elaborar catálogos, inventários, perseguindo os ínfimos recantos vazios para neles fazer surgir, em filas cerradas, as criações e os instrumentos humanos. Verne pertence à camada progressista da burguesia: a sua obra proclama que nada pode escapar ao homem, que o mundo, mesmo o mais longínquo, é como um objeto na sua mão e que a propriedade é, em suma, apenas um momento dialético no processo de domínio da Natureza. Verne não procurava de modo algum distender o mundo conforme as vias românticas da evasão ou de planos místicos de infinito: procurava incessantemente retraí-lo, reduzindo-o a um espaço conhecido e fechado, que o homem poderia em seguida habitar confortavelmente: o mundo pode tirar tudo de si próprio, pois para existir não necessita de mais nada além do homem.

Além dos inumeráveis recursos da ciência, Verne inventou um excelente meio romanesco de tornar clara essa apropriação do mundo: garantir o espaço por intermédio do tempo, unir permanentemente estas duas categorias, arriscá-las num mesmo lance de dados ou num mesmo impulso irrefletido, sempre bem-sucedidos. As próprias peripécias têm como função imprimir ao mundo uma espécie de consistência elástica, afastar e em seguida aproximar a clausura, brincar agilmente com as distâncias cósmicas, pôr, maliciosamente, à prova o poder do homem sobre os espaços e os horários. E, neste planeta triunfalmente tragado pelo herói verniano, espécie de Anteu burguês cujas noites são inocentes e "reparadoras", arrasta-se por vezes um "desesperado", vítima do remorso ou do spleen, vestígio de uma época romantic terminada, e que faz ressaltar, por contraste, a saúde dos verdadeiros proprietários do mundo, que apenas se preocupam em adaptar-se o mais perfeitamente possível a situações cuja complexidade, de modo algum metafísica e nem mesmo moral, é devida simplesmente a determinado capricho mordaz da geografia.

O gesto profundo de Júlio Verne é portanto, incontestavelmente, o da apropriação. A viagem do barco, tão importante na mitologia de Verne, não contradiz este gesto, muito pelo contrário: o barco pode ser o símbolo da partida; mais profundamente, é o sinal da clausura. O gosto pelo navio é sempre a alegria do enclausuramento perfeito, do domínio do maior número possível de objetos, do ato de dispor de um espaço totalmente finito: amar os navios é, antes de mais nada, amar uma casa superlativa, porque fechada sem remissão, e de modo algum as grandes e indeterminadas partidas. O navio é uma ação do habitat, antes de ser um meio de transporte. Ora, todos os barcos de Júlio Verne são, realmente, perfeitos ambientes de aconchego, e a grandeza de seu périplo aumenta ainda mais a felicidade de sua clausura, a perfeição de sua humanidade interior. Sob este aspecto, o  Nautilus é a caverna adorável: o prazer da clausura atinge o seu paroxismo quando, no seio dessa interioridade sem fissuras, é possível ver através de uma imensa vidraça o vago exterior das águas e assim definir assim num mesmo gesto o interior pelo seu contrário.

Sob este aspecto, a maior parte dos barcos lendários ou pertencentes à ficção são, como o  Nautilus, tema de um enclausuramento desejado, pois basta dar ao homem o navio como habitat  para que nele o homem organize imediatamente o prazer de um universo redondo e liso: aliás, toda uma moral náutica o proclama simultaneamente deus, senhor e proprietário (único senhor a bordo etc). Nesta mitologia da navegação só existe um meio de exorcizar a natureza possessiva do homem sobre o navio: suprime-se o homem e deixa-se o navio sozinho, entregue a si próprio; então, o barco deixa de ser uma caixa, habitat e objeto possuído, para se tornar um olho viajante, que, de leve, roça infinitos e produz partidas ininterruptas. O objeto verdadeiramente oposto ao  Nautilus, de Verne, é o  Bateau Ivre, de Rimbaud, o barco que diz "eu" e, liberto de sua concavidade, pode fazer o homem passar de uma psicanálise da caverna a uma verdadeira poética da exploração. 

Roland Barthes (1975)

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