Em «ARGO»(1) revemos o melhor dos Estados Unidos em: profissionalismo, rigor, tenacidade e, sobretudo, um patriotismo transversal a toda a sociedade, do espião da CIA ao maquilhador de vedetas de cinema ou ao realizador falhado. De facto, um por todos e todos por um funciona, espontaneamente, num país onde o orgulho pátrio convoca todas (ou quase) as boas vontades, facilitando a orquestração de uma boa defesa nacional.
Não será o melhor filme
da temporada. Mas tem o enorme mérito de nos incutir ânimo, dando o devido
destaque a gente brava e q.b. generosa, em moldes semelhantes ao da película
«AS VOLTAS DA VIDA» (com Clint Eastwood). São ambos, digamos, filmes
de atitude, tipicamente americanos, pelas boas razões, fazendo a
apologia de uma posição íntegra e combativa, onde a Esperança no futuro e a
confiança na vitória do bem estão omnipresentes em toda a trama. Por isso,
devolvem-nos o gosto pela vida e rasgam-nos um horizonte mais amplo, onde todos
cabemos, até à máxima diversidade humana.
Para lá disto, o enredo de
ARGO vale ainda por se basear em factos verídicos (embora com exageros e algumas
simplificações»(2)), bem contados e devidamente enquadrados por
um resumo histórico inicial que, em poucos minutos, nos relata os motivos da quase
que legítima deposição do Xá do Irão
e imediata ascensão dos Ayatollahs ao Governo, num ambiente que se torna ostensivamente
anti-americano. Corria o ano de 1979, em plena Guerra Fria. Sem subterfúgios, a voz-off assume
as culpas remotas dos EUA nesta reviravolta política, pela sua ingerência
(juntamente com a Grã-Bretanha) na política iraniana, em 1953, ao provocar a
queda do regime vigente e favorecer a entronização do Xá Reza Pahlavi»(3), que
devolve às petrolíferas anglo-americanas a exploração dos recursos fósseis do
país. Mais: a mesma voz-off chega a insistir na tirania reinante desse período
(ao longo do filme, até se alude ao equipamento de tortura da polícia política
do Xá, que houve necessidade de destruir), reprimindo-se brutalmente as
constantes sublevações internas. Em suma: ARGO foi concebido para também poder
ser visionado por público iraniano, sem risco de beliscar a sensibilidade do
povo persa (excluindo, naturalmente, minorias facciosas e reaccionárias). Aliás,
há vários momentos e personagens muito favoráveis àquele país, como a empregada
da Embaixada do Canadá, que protege os estrangeiros incorrendo na transgressão
mais grave, segundo a nova nomenclatura – a heresia.
ARGO alude à operação de
resgate, ultra-secreta, de 6 funcionários americanos que se tinham escondido na
Embaixada do Canadá, em Teerão, depois de terem escapado à multidão vociferante
que invadiu a Embaixada dos EUA, a 4 de Novembro de 1979, aprisionando todo o staff norte-americano ali encontrado. Feitos
reféns, todo o staff era utilíssimo enquanto moeda de troca para negociar a
extradição do Xá, que fugira para Nova Iorque. Por isso, os 6 mantinham-se, em
segredo, na Residência dos diplomatas canadianos, sabendo-se o grupo mais
exposto à raiva das autoridades iranianas, se viessem a ser descobertos como
membros da Embaixada fugidos ao crivo justiceiro dos Ayatollahs.
Entretanto, em
Washinghton, o brain-storming para
desencantar a solução salvadora do grupo dos 6 – numa corrida contra o tempo,
enquanto não eram detectados pela polícia iraniana, que retaliaria também sobre
o Canadá – resultou num misto de cómico e de eficiência pragmática, demonstrando
a validade de temperar a experiência e a astúcia com uma boa dose de bom senso.
A falta que faz o bom senso! Embora a solução avançada raiasse a loucura, acabou
por ser a hipótese menos má de todas as discorridas, conforme defendeu,
lapidarmente, um dos adeptos da ideia «It
is the best bad idea, by far!». Tratava-se de organizar a suposta rodagem
de um filme de canadianos, que viajariam até Teerão para captar imagens da
magnífica cidade persa. O filme intitulava-se «ARGO» e a equipa técnica seria composta
pelos 6 escondidos, liderados por um elemento da CIA perito em extradições in extremis, que se deslocaria ao país
para esta encenação, cuja originalidade poderia ajudar a credibilizá-la.
Tanto arrojo não facilitou
a aprovação superior. Pelo que já com a operação em estado avançado, teve
indeferimento… que não foi acatado pelo colaborador da CIA in loco, comprometido com os embaixadores do Canadá e com os 6. E
logo quando o mais difícil parecia estar ultrapassado: persuadir os 6 a alinhar
na tal artimanha cinematográfica, que incluía uma prova de fogo – sair da Embaixada
para filmagens no Grande Bazar!
Dois pormenores curiosos evidenciam
o profissionalismo característico dos funcionários da terra do tio Sam: no
pequeno grupo dos 6, um domina fluentemente a difícil língua farsi, como é norma
nas Missões Diplomáticas americanas no exterior. E note-se que estamos a falar
de colaboradores de baixo ranking.
Segundo: a primeira escala na viagem do perito da CIA, Tom Mendez (espião real,
que mereceu ser condecorado pelo Presidente Clinton, em cerimónia secreta), foi
em Istanbul, a fim de ser industriado nas especificidades do Irão, por outro
especialista seu conterrâneo. Tudo lhe foi antecipado, até ao mais ínfimo pormenor,
ditado pelo know-how de um infiltrado
nos segredos da governação iraniana. Na antiga Bizâncio, o cenário para o
encontro não podia ter sido mais idílico, descomprometedor e significativo – no
monumento onde o Ocidente melhor se mescla com o mundo bizantino – a Basílica
de Santa Sofia:
Fantástico o jogo de
suspense, em crescendo, ao longo das 2 horas de filme, num frisson bem
compassado que doseia, magistralmente, os diversos clímaxes intermédios das inúmeras
batalhas até à vitória final. O
paralelismo narrativo também está bem encadeado, revelando a simultaneidade dos
esforços nos diferentes locais e nos diferentes lados do conflito.
Humor, solidariedade em
versão sóbria, da que convence (expressando-se mais no silêncio que nas palavras;
e aqui surge a galeria dos vários heróis comuns entre a população iraniana,
canadiana, asiática, americana…), coragem até ao limite, na clandestinidade e
sem compensações nem reconhecimentos públicos, empenho e brio por pura
carolice, para lá do expectável. Tudo em doses notáveis, embora acessíveis ao
cidadão comum. Completamente verosímil. Sabemos que os grandes feitos são o
mosaico final que costuma congregar o contributo de muita gente, sobretudo dos anónimos.
A par deste heroísmo acumulado, dos simples, contracena o calculismo e a pequenez egoísta dos sobreviventes, dos aterrorizados e auto-centrados na sua circunstância, a ponto de se permitirem desvalorizar indecorosamente o peso e o risco que poderão representar para outrem. O ponto alto deste egocentrismo, também frequente, ocorre na hora dos festejos, quando os resgatados caem comovidos nos braços uns dos outros, comemorando euforicamente um desfecho para o qual pouco tinham contribuído. Eles que eram parte integrante do problema. Pior: apenas um veio agradecer, demasiado comedidamente, a quem fora arriscar a vida, até Teerão, apenas para os salvar. Nos antípodas está a iraniana que arriscou a pele e se absteve de pedir (apesar de estar ao seu alcance) qualquer paga, qualquer ajuda pelo esforço feito em prol de estrangeiros. Antes acata, em silêncio, a sua sorte de emigrante solitária, condenada a um campo de refugiados transfronteiriço, no Iraque.
Uma aventura verdadeira,
que mostra despretensiosamente as várias opções humanas face a uma realidade
adversa. Ninguém escapa à dura triagem que é, afinal, da própria vida: seja em Teerão, seja em
Washinghton, seja em Hollywood (também contratado para aquela camuflagem
excêntrica).
De certo modo, lembra-nos
o espírito dos western, transposto
para os nossos dias, com as devidas adaptações de época e circunstância. Mas o
mesmo confronto de modus vivendi, a
mesma panóplia de personagens e respectivos matizes de comportamentos. No
fundo, a mesma avaliação dos valores por que cada um se bate. Aqui vale aquela
reflexão sábia, que servia para os tempos do faroeste e volta a aplicar-se ao
último quartel do século XX: onde estiver
o teu tesouro, aí estará o teu coração. Em vésperas de Natal, esta bússola ainda
ganhará maior actualidade.
BOAS-FESTAS a todos,
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
_____________
(1) Ficha Técnica:
Título original:
|
ARGO
|
Título traduzido em Portugal
|
ARGO
|
Realização:
|
Ben Affleck
|
Argumento:
|
Chris Terrio
|
Produtores:
|
Ben Affleck, George Clooney, Grant Heslov
|
Estúdio:
|
Gk Films
|
Banda sonora:
|
Alexander Desplat
|
Duração:
|
120 min.
|
Ano:
|
2012
|
País:
|
EUA
|
Elenco:
|
Ben Affleck (Tom Mendez - o espião real
da CIA)
Bryan Cranston
Alan Arkin
John Goodman
|
Site oficial:
|
http://wwws.pt.warnerbros.com/argo/
|
Premiado nos EUA: AFI Awards,
L.A. Film Critics Association, New York Film Critics online e San Diego Film
Critics Society
(2)
Nas incorrecções
históricas, contam-se o apoio dado pelas Embaixadas Britânica e Neo-Zelandesa,
que são referidas no filme como tendo recusado, liminarmente, protecção aos 6
foragidos. Por exemplo, a arriscada saída para o aeroporto foi efectuada pelos
diplomatas da Nova Zelândia. E o primeiro local de esconderijo foi a
Chancelaria britânica, situada em zona demasiado arriscada para poder manter os
clandestinos em segurança.
(3)
Transcreve-se,
no original inglês, as lacunas relativas à ascensão do Xá ao poder, alegadamente
em 1953, quando reinava desde 1941. Em 53 a mudança cingiu-se à passagem para
uma monarquia absoluta.
Comentário ao enquadramento histórico,
em ARGO: «This is a half-truth - Mohammad Reza Pahlavi had been Shah since 1941. More accurately, the
1953 coup d'état transformed
Iran from being a constitutional
monarchy into being an absolute monarchy with Mohammad Reza Pahlavi
still on the throne. Immediately prior to the coup, Iran had been a democracy
headed by Prime Minister Mohammed Mossadegh.
The narrator says Mohammed Mossadegh was "overwhelmingly elected as “Prime
Minister" by the Iranian people; technically, he was elected Prime
Minister by the Iranian
Parliament, after his predecessor was assassinated. Parliament
members were elected by popular vote, as in many parliamentary governments.[17] The Shah's full name was
"Mohammed Reza Shah Pahlavi";[18] the film's narrator refers to the
Shah as "Reza Pahlavi"»
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