17 dezembro 2012

Vai um gin do Peter’s?

Há personagens e símbolos recorrentes nos filmes americanos que são autênticas imagens de marca, não apenas de Hollywood, mas do American way of life, como: as bandeiras gigantescas desfraldadas em inúmeros alpendres espalhados por todo o país, ou os polícias enérgicos e espadaúdos sempre prontos a enfrentar os piores bandidos, ou as limous, os skates, os patins e as bicicletas a rolar animadamente pela Fifth avenue, outra qualquer outra avenue. Por junto, o pop e o patriotismo assumido transportam-nos para os EUA e, convenhamos, afastam-nos da Europa. Aliás, toda a expressão mais directa e quase pueril tem pouco a ver com o Velho Continente. 

Em «ARGO»(1) revemos o melhor dos Estados Unidos em: profissionalismo, rigor, tenacidade e, sobretudo, um patriotismo transversal a toda a sociedade, do espião da CIA ao maquilhador de vedetas de cinema ou ao realizador falhado. De facto, um por todos e todos por um funciona, espontaneamente, num país onde o orgulho pátrio convoca todas (ou quase) as boas vontades, facilitando a orquestração de uma boa defesa nacional.

Não será o melhor filme da temporada. Mas tem o enorme mérito de nos incutir ânimo, dando o devido destaque a gente brava e q.b. generosa, em moldes semelhantes ao da película «AS VOLTAS DA VIDA» (com Clint Eastwood). São ambos, digamos, filmes de atitude, tipicamente americanos, pelas boas razões, fazendo a apologia de uma posição íntegra e combativa, onde a Esperança no futuro e a confiança na vitória do bem estão omnipresentes em toda a trama. Por isso, devolvem-nos o gosto pela vida e rasgam-nos um horizonte mais amplo, onde todos cabemos, até à máxima diversidade humana. 


Para lá disto, o enredo de ARGO vale ainda por se basear em factos verídicos (embora com exageros e algumas simplificações»(2)), bem contados e devidamente enquadrados por um resumo histórico inicial que, em poucos minutos, nos relata os motivos da quase que legítima deposição do Xá do Irão e imediata ascensão dos Ayatollahs ao Governo, num ambiente que se torna ostensivamente anti-americano. Corria o ano de 1979, em plena Guerra Fria. Sem subterfúgios, a voz-off assume as culpas remotas dos EUA nesta reviravolta política, pela sua ingerência (juntamente com a Grã-Bretanha) na política iraniana, em 1953, ao provocar a queda do regime vigente e favorecer a entronização do Xá Reza Pahlavi»(3), que devolve às petrolíferas anglo-americanas a exploração dos recursos fósseis do país. Mais: a mesma voz-off chega a insistir na tirania reinante desse período (ao longo do filme, até se alude ao equipamento de tortura da polícia política do Xá, que houve necessidade de destruir), reprimindo-se brutalmente as constantes sublevações internas. Em suma: ARGO foi concebido para também poder ser visionado por público iraniano, sem risco de beliscar a sensibilidade do povo persa (excluindo, naturalmente, minorias facciosas e reaccionárias). Aliás, há vários momentos e personagens muito favoráveis àquele país, como a empregada da Embaixada do Canadá, que protege os estrangeiros incorrendo na transgressão mais grave, segundo a nova nomenclatura – a heresia.

ARGO alude à operação de resgate, ultra-secreta, de 6 funcionários americanos que se tinham escondido na Embaixada do Canadá, em Teerão, depois de terem escapado à multidão vociferante que invadiu a Embaixada dos EUA, a 4 de Novembro de 1979, aprisionando todo o staff norte-americano ali encontrado. Feitos reféns, todo o staff era utilíssimo enquanto moeda de troca para negociar a extradição do Xá, que fugira para Nova Iorque. Por isso, os 6 mantinham-se, em segredo, na Residência dos diplomatas canadianos, sabendo-se o grupo mais exposto à raiva das autoridades iranianas, se viessem a ser descobertos como membros da Embaixada fugidos ao crivo justiceiro dos Ayatollahs.


Entretanto, em Washinghton, o brain-storming para desencantar a solução salvadora do grupo dos 6 – numa corrida contra o tempo, enquanto não eram detectados pela polícia iraniana, que retaliaria também sobre o Canadá – resultou num misto de cómico e de eficiência pragmática, demonstrando a validade de temperar a experiência e a astúcia com uma boa dose de bom senso. A falta que faz o bom senso! Embora a solução avançada raiasse a loucura, acabou por ser a hipótese menos má de todas as discorridas, conforme defendeu, lapidarmente, um dos adeptos da ideia «It is the best bad idea, by far!». Tratava-se de organizar a suposta rodagem de um filme de canadianos, que viajariam até Teerão para captar imagens da magnífica cidade persa. O filme intitulava-se «ARGO» e a equipa técnica seria composta pelos 6 escondidos, liderados por um elemento da CIA perito em extradições in extremis, que se deslocaria ao país para esta encenação, cuja originalidade poderia ajudar a credibilizá-la.

Tanto arrojo não facilitou a aprovação superior. Pelo que já com a operação em estado avançado, teve indeferimento… que não foi acatado pelo colaborador da CIA in loco, comprometido com os embaixadores do Canadá e com os 6. E logo quando o mais difícil parecia estar ultrapassado: persuadir os 6 a alinhar na tal artimanha cinematográfica, que incluía uma prova de fogo – sair da Embaixada para filmagens no Grande Bazar! 

Dois pormenores curiosos evidenciam o profissionalismo característico dos funcionários da terra do tio Sam: no pequeno grupo dos 6, um domina fluentemente a difícil língua farsi, como é norma nas Missões Diplomáticas americanas no exterior. E note-se que estamos a falar de colaboradores de baixo ranking. Segundo: a primeira escala na viagem do perito da CIA, Tom Mendez (espião real, que mereceu ser condecorado pelo Presidente Clinton, em cerimónia secreta), foi em Istanbul, a fim de ser industriado nas especificidades do Irão, por outro especialista seu conterrâneo. Tudo lhe foi antecipado, até ao mais ínfimo pormenor, ditado pelo know-how de um infiltrado nos segredos da governação iraniana. Na antiga Bizâncio, o cenário para o encontro não podia ter sido mais idílico, descomprometedor e significativo – no monumento onde o Ocidente melhor se mescla com o mundo bizantino – a Basílica de Santa Sofia:

Na lindíssima Hagia Sophia, Mendez
prepara-se para a operação de alto risco, em Teerão.

Fantástico o jogo de suspense, em crescendo, ao longo das 2 horas de filme, num frisson bem compassado que doseia, magistralmente, os diversos clímaxes intermédios das inúmeras batalhas até à vitória final. O paralelismo narrativo também está bem encadeado, revelando a simultaneidade dos esforços nos diferentes locais e nos diferentes lados do conflito.

Humor, solidariedade em versão sóbria, da que convence (expressando-se mais no silêncio que nas palavras; e aqui surge a galeria dos vários heróis comuns entre a população iraniana, canadiana, asiática, americana…), coragem até ao limite, na clandestinidade e sem compensações nem reconhecimentos públicos, empenho e brio por pura carolice, para lá do expectável. Tudo em doses notáveis, embora acessíveis ao cidadão comum. Completamente verosímil. Sabemos que os grandes feitos são o mosaico final que costuma congregar o contributo de muita gente, sobretudo dos anónimos.


A par deste heroísmo acumulado, dos simples, contracena o calculismo e a pequenez egoísta dos sobreviventes, dos aterrorizados e auto-centrados na sua circunstância, a ponto de se permitirem desvalorizar indecorosamente o peso e o risco que poderão representar para outrem. O ponto alto deste egocentrismo, também frequente, ocorre na hora dos festejos, quando os resgatados caem comovidos nos braços uns dos outros, comemorando euforicamente um desfecho para o qual pouco tinham contribuído. Eles que eram parte integrante do problema. Pior: apenas um veio agradecer, demasiado comedidamente, a quem fora arriscar a vida, até Teerão, apenas para os salvar. Nos antípodas está a iraniana que arriscou a pele e se absteve de pedir (apesar de estar ao seu alcance) qualquer paga, qualquer ajuda pelo esforço feito em prol de estrangeiros. Antes acata, em silêncio, a sua sorte de emigrante solitária, condenada a um campo de refugiados transfronteiriço, no Iraque.


Uma aventura verdadeira, que mostra despretensiosamente as várias opções humanas face a uma realidade adversa. Ninguém escapa à dura triagem que é, afinal, da própria vida: seja em Teerão, seja em Washinghton, seja em Hollywood (também contratado para aquela camuflagem excêntrica). 



De certo modo, lembra-nos o espírito dos western, transposto para os nossos dias, com as devidas adaptações de época e circunstância. Mas o mesmo confronto de modus vivendi, a mesma panóplia de personagens e respectivos matizes de comportamentos. No fundo, a mesma avaliação dos valores por que cada um se bate. Aqui vale aquela reflexão sábia, que servia para os tempos do faroeste e volta a aplicar-se ao último quartel do século XX: onde estiver o teu tesouro, aí estará o teu coração. Em vésperas de Natal, esta bússola ainda ganhará maior actualidade.
BOAS-FESTAS a todos,  


Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
_____________
(1) Ficha Técnica:    
Título original:
ARGO
Título traduzido em Portugal
ARGO
Realização:
Ben Affleck
Argumento:
Chris Terrio
Produtores:
Ben Affleck, George Clooney, Grant Heslov
Estúdio:
Gk Films
Banda sonora:
Alexander Desplat
Duração:
120 min.
    Ano:
2012
País:
EUA
        Elenco:

Ben Affleck (Tom Mendez - o espião real da CIA)
Bryan Cranston
Alan Arkin
John Goodman
Site oficial:
http://wwws.pt.warnerbros.com/argo/

Premiado nos EUA: AFI Awards, L.A. Film Critics Association, New York Film Critics online e San Diego Film Critics Society

 (2)  Nas incorrecções históricas, contam-se o apoio dado pelas Embaixadas Britânica e Neo-Zelandesa, que são referidas no filme como tendo recusado, liminarmente, protecção aos 6 foragidos. Por exemplo, a arriscada saída para o aeroporto foi efectuada pelos diplomatas da Nova Zelândia. E o primeiro local de esconderijo foi a Chancelaria britânica, situada em zona demasiado arriscada para poder manter os clandestinos em segurança. 

(3) Transcreve-se, no original inglês, as lacunas relativas à ascensão do Xá ao poder, alegadamente em 1953, quando reinava desde 1941. Em 53 a mudança cingiu-se à passagem para uma monarquia absoluta.
       Comentário ao enquadramento histórico, em ARGO: «This is a half-truth - Mohammad Reza Pahlavi had been Shah since 1941. More accurately, the 1953 coup d'état transformed Iran from being a constitutional monarchy into being an absolute monarchy with Mohammad Reza Pahlavi still on the throne. Immediately prior to the coup, Iran had been a democracy headed by Prime Minister Mohammed Mossadegh. The narrator says Mohammed Mossadegh was "overwhelmingly elected as “Prime Minister" by the Iranian people; technically, he was elected Prime Minister by the Iranian Parliament, after his predecessor was assassinated. Parliament members were elected by popular vote, as in many parliamentary governments.[17] The Shah's full name was "Mohammed Reza Shah Pahlavi";[18] the film's narrator refers to the Shah as "Reza Pahlavi"»


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