08 agosto 2016

Vai um gin do Peter’s?

O gin de hoje vem na senda da crónica deste blog Textos dos dias que correm, publicada a 29 de Julho, com o testemunho do rabino argentino sobre o silêncio do Papa em Auschwitz, lavrado no L’Osservatore Romano. Perante uma dor avassaladora, as palavras só atrapalham, de tão insuficientes que se são.

Aproveitando a ida a Cracóvia, para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), Francisco quis incluir no programa uma ida ao conhecido campo de concentração do Reich, que anos antes tinha sido visitado pelo Papa polaco (1979) ligado às vítimas e depois pelo Papa alemão (2006) da mesma nacionalidade dos guardas homicidas. 

No fim da década de 70, a homilia de S. João Paulo II na eucaristia celebrada em Auschwitz comoveu gente de todos os quadrantes, até pela autoridade de quem provinha da cidade mais próxima do campo de extermínio. Fora o local de tortura de amigos seus, uns por serem judeus, outros por pertencerem à Resistência, outros simplesmente por serem sacerdotes e freiras.  

Definiu, assim, aquele inferno na terra:  «Um lugar que foi construído sobre o ódio e sobre o desprezo do homem em nome de uma ideologia louca. Um lugar que foi construído sobre a crueldade. A ele conduz uma porta sobre a qual está colocada uma inscrição: “Arbeit Macht frei” [o trabalho liberta], que tem um som sardónico, porque o seu conteúdo era radicalmente negado por aquilo que acontecia aqui dentro. (…) Pode ainda alguém admirar-se que o papa, nascido e educado nesta terra, o papa que foi para a Sé de São Pedro da diocese em cujo território se encontra o campo de Auschwitz, tenha iniciado a sua primeira Encíclica com as palavras “Redemptor hominis” e que a tenha dedicado no conjunto à causa do homem, à dignidade do homem, às ameaças contra ele e por fim aos seus direitos inalienáveis que tão facilmente podem ser espezinhados e aniquilados pelos seus semelhantes? Basta revestir o homem com um uniforme diferente, armá-lo com todos os meios da violência, basta impor-lhe a ideologia em que os direitos do homem são submetidos às exigências do sistema (…)».

Duas décadas depois, Bento XVI, o Papa-professor quedou-se em oração por longos minutos, deixando os media desconfortáveis, até cortar o silêncio com uma pergunta que ecoou pelo mundo: «Onde estava Deus naqueles dias?»  Depois, partilhou uma das reflexões mais marcantes do seu pontificado, que se tornou numa magna oração sobre o sofrimento humano: 

«O papa João Paulo II veio aqui como filho daquele povo que, ao lado do povo judeu, teve que sofrer mais neste lugar e, em geral, durante a guerra. Hoje eu vim aqui como um filho do povo alemão, e precisamente por isto devo e posso dizer como ele: não podia deixar de vir aqui. Tinha que vir. Era e é um dever perante a verdade e o direito de quantos sofreram, um dever diante de Deus, de estar aqui como sucessor de João Paulo II e como filho do povo alemão filho daquele povo sobre o qual um grupo de criminosos alcançou o poder com promessas falsas, em nome de perspetivas de grandeza, de recuperação da honra da nação e da sua relevância, com previsões de bem-estar e também com a força do terror e da intimidação, e assim o nosso povo pôde ser usado e abusado como instrumento da sua vontade de destruição e de domínio. Sim, não podia deixar de vir aqui.

O nosso grito a Deus deve ao mesmo tempo ser um grito que penetra o nosso próprio coração, para que desperte em nós a presença escondida de Deus para que aquele seu poder que Ele depositou nos nossos corações não seja coberto e sufocado em nós pela lama do egoísmo, do medo dos homens, da indiferença e do oportunismo.

Quantas perguntas surgem neste lugar! Sobressai sempre de novo a pergunta: onde estava Deus naqueles dias? Por que se silenciou Ele? Como pôde tolerar este excesso de destruição, este triunfo do mal? Vêm à nossa mente as palavras do Salmo 44, a lamentação de Israel que sofre: "... Tu nos esmagaste na região das feras e nos envolveste em profundas trevas... por causa de ti, estamos todos os dias expostos à morte; tratam-nos como ovelhas para o matadouro. Desperta, Senhor, por que dormes? Desperta e não nos rejeites para sempre! Por que escondes a tua face e te esqueces da nossa miséria e tribulação? A nossa alma está prostrada no pó, e o nosso corpo colado à terra. Levanta-te! Vem em nosso auxílio; salva-nos, pela tua bondade!" (Sl 44, 20.23-27). Este grito de angústia que Israel sofredor eleva a Deus em períodos de extrema tribulação, é ao mesmo tempo um grito de ajuda de todos os que, ao longo da história ontem, hoje e amanhã sofrem por amor de Deus, por amor da verdade e do bem; e há muitos, também hoje.»

Em vésperas da partida para as JMJ, Francisco avisou que não iria proferir qualquer alocução em Auschwitz: «Desejo ir àquele lugar de horror sem discursos, sem gente, apenas os poucos necessários (…) Sozinho, entrar, rezar (…) E que o Senhor me dê a graça de chorar.  Já em 2014, o Papa afirmara: «Neste lugar, memorial da “Shoah”, sentimos ressoar esta pergunta de Deus: “Adão, onde estás?”. Nesta pergunta está toda a dor do Pai que perdeu o filho. O Pai conhecia o risco da liberdade; sabia que o filho poderia perder-se… mas talvez nem sequer o Pai podia imaginar uma tal queda, um tal abismo. Aquele grito – “onde estás?” –, aqui, diante da tragédia incomensurável do Holocausto, ressoa como uma voz que se perde num abismo sem fundo».

No Bloco 11 do campo de extermínio, o Papa reuniu-se com onze sobreviventes, que beijou um a um. Alguns tinham mais de cem anos. O último confiou-lhe a vela onde Francisco acendeu a lâmpada que ofereceu àquele lugar de tirania. A lâmpada está cunhada com um brasão em prata dourada e tem uma base em madeira de nogueira torneada, a evocar o gradeamento levantado pelos nazis. Depois encaminhou-se para a cela onde morreu Kolbe, o franciscano polaco que dissera ao médico alemão, enquanto este lhe injetava ácido fénico para acelerar a morte: «Não entendeu nada da vida. O ódio não serve de nada, só o amor cria». Naquela cela da fome há grafitis na parede, em concreto uma cruz. Francisco demorou-se ali a rezar. 

(1894 - 1941) Sacerdote polaco, que deu a vida para salvar outro prisioneiro.

No Livro de Honra disponível numa pequena mesa de um corredor, Francisco escreveu em espanhol: «Senhor tem piedade do teu povo! Senhor, perdão por tanta crueldade!». 

Já de regresso a Roma, o Papa fez um aviso forte ao nosso tempo: a crueldade dos campos de concentração assemelha-se à que se vive hoje em várias zonas do planeta. E afirmou: «O grande silêncio da visita a Auschwitz-Birkenau foi mais eloquente do que qualquer palavra. Naquele silêncio escutei, senti a presença de todas as almas que passaram por lá; senti a compaixão, a misericórdia de Deus, que algumas almas santas souberam levar mesmo àquele abismo».

Papa Francisco | Audiência geral, Vaticano | 3.8.2016 | © 2016 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.
Três Papas peregrinaram até Auschwitz para rezarem e clamarem a um Deus que, na hora de maior necessidade, emudeceu, parecendo abandonar milhares de pessoas à mercê de uma potente máquina de destruição. Mas foi naquele local de genocídio que os três sucessores de Pedro lembraram que a morte não tem a última palavra na história. As sucessivas visitas papais ajudam a comprová-lo.  

Concluo com uma nota pessoal: na minha experiência em Auschwitz-Birkenau, num mês de Janeiro, impressionou-me a face mais patente do mal que ali antevi – a mentira. Começa logo à entrada, com a pérfida camuflagem inscrita no topo do portão – Arbeit macht frei. A ideia era confundir-se com um pacato campo de trabalho. O conjunto de barracões, dispostos entre um quadriculado de arruamentos bem amplos, permanecem alinhados com uma simetria e um aprumo sumamente impiedosos. Respiram eficiência, uma eficiência cruel. Como cruel é a beleza da paisagem em redor, destoando da dor das vítimas. À parte da floresta de abetos verdejantes e altivos, insensíveis à sorte dos condenados, tudo o mais é estéril e excessivo, a começar pelas temperaturas glaciares do longo inverno. Naquelas paragens, o frio também mata. A extensa planície coberta de neve brilhante está exposta a um céu acinzentado, cor de aço. Num recanto menos visível, semi-escondidas pela inclinação do terreno, subsistem as ruínas dos fornos humanos, ladeadas por pequenos fornos onde se queimavam os documentos de identidade dos assassinados. Tratava-se de uma erradicação total, que apenas saiu furada pela vaga referência lavrada nos anais dos burocratas do Campo, incumbidos de contabilizar o ritmo diário das mortes. Teve efeito boomerang tanta eficiência. 

Apanhei-me sem palavras e sem lágrimas a percorrer um terreno onde ficou depositada uma quantidade obscena de sangue inocente. Felizmente que a água do mar partilha a natureza salgada das lágrimas humanas, pois só os oceanos podem chorar todo o sofrimento que atravessou e continua a ferir a humanidade. 

Bem sei que Verão e férias não quadram com memórias tristes, mas creio que a força dos factos se sobrepõe à época. Aliás, foi também em Agosto que sucumbiram em Auschwitz nomes grandes da cultura ocidental e da fé cristã, como Edith Stein (dia 9) ou S.Maximiliano Kolbe (dia 14). Por isso, valerá como homenagem a todos os que ali pereceram.   

(1891-1942) Filósofa alemã judia, converteu-se ao catolicismo e ingressou no Carmelo. Apesar de estar votada à clausura, as SS foram buscá-la a um convento na Holanda e deportaram-na para a Polónia. 

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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