Hannah Arendt é, certamente, a filósofa mais citada do século XX, despertando paixões e ódios descontrolados. Quem não conhece a célebre caracterização dos totalitarismos como a «banalidade do mal»? Não por ser um mal banal, mas por se ter imiscuído na normalidade, convertendo-se na norma generalizada da sociedade. Aí reside a sua perversão, de contornos mais hediondos do que aquele mal do antigamente, distinto da normalidade até por reivindicar, geralmente, um estatuto de superioridade. Sob a aparência da banalidade, a mentira instalou-se rapidamente, invertendo os valores mais elementares. A obediência tornou-se num valor supremo e ilimitado, com as consequências nefastas que se conhecem.
É sobre a audácia desta filósofa e teórica da política que a realizadora israelita, Ada Ushpiz – munida de igual ousadia – lhe dedica o documentário «Vida Activa: o Espírito de Hannah Arendt» (1). Somos levados a acompanhar o nexo do pensamento de Arendt para clarificar a densidade das suas ideias e confirmar a actualidade da sua reflexão. De certo modo, aprofunda a película dedicada à filósofa pela realizadora alemã Margaretha von Trotta (tema do gin de 11 de Novembro de 2013).
Assistimos a excertos de entrevistas, uma dada à televisão alemã ocidental (em 1964, creio) e outra datada de 1973, intercaladas pelas intervenções de académicos e políticos a discorrer sobre a doutrina de Hannah, além de imagens de arquivo da Segunda Guerra e do julgamento de Eichmann. O grande desafio de Ada corresponde ao esforço de tornar perceptível o circuito mental de Hannah, revendo os factos que a impressionaram e lhe terão revelado a existência dos novos conceitos que cunhou. O julgamento do arquitecto da Solução Final para extermínio dos judeus é dos acontecimentos mais pródigos na construção do corpo doutrinário da filósofa.
O filme acaba por oferecer uma súmula espantosa do seu ideário, estribada nos episódios que Arendt cita para ilustrar a sua perspectiva inovadora sobre a história e a chegada ao poder de regimes iníquos. Observados à distância, resulta incompreensível o sucesso desses totalitarismos demenciais e homicidas. Daí a importância em denunciar os contextos que favorecem o seu surgimento e a sua inexplicável popularidade até à conquista absoluta do poder. Infelizmente, é muito mais fácil do que gostaríamos. Hannah aponta como factor-chave o fluxo desregrado de refugiados após a Guerra de 1914-1918. Face àquelas multidões tornadas infra-humanas, tinha-se quebrado a primeira barreira moral de não reconhecimento da plena dignidade de determinado segmento da população. Uma vez despoletado o processo de transgressão, qual brecha num dique, fora depois uma questão de tempo reduzir mais gente ao estatuto de pária. Nas suas palavras: «Evil […] seems to be closely connected with the invention of a system in which all men are equally superfluous […] The dangers of the corpse factories and holes of oblivion is that today, masses of people are continually rendered superfluous when we continue to think of our world in utility terms rather than in terms of a common world, shared by all […] Totalitarian solutions may well survive the fall of totalitarian regimes in the form of a strong temptation which will come up whenever it seems impossible to alleviate political, social, or economic misery in a manner worthy of man.»
Acompanhando as grandes etapas da vida de Arendt, que se considerava uma refugiada (2), ouvimos o relato de uma atitude marcante da mãe sobre a dignidade de cada ser humano, a exigir uma vigilância rigorosa e ininterrupta. Ainda na pré-primária, dera-lhe ordem para abandonar a sala de aula sempre que um colega fosse ofendido por ser judeu. Em seguida, a mãe enviava uma carta de protesto ao Conselho Directivo, enquanto a pequena Hannah se deliciava com este pretexto para faltar à escola. Contou isto a rir, numa das entrevistas, embora reconhecesse o alcance pedagógico daquele exemplo, que teve mais efeito nela do que nos dirigentes da escola.
Porém, nem sempre primou pela coerência nem pela racionalidade. O documentário não se esquiva à relação demasiado próxima com o mestre e partidário do nacional-socialismo – Martin Heidegger. Décadas depois da guerra, Hannah continua a visitá-lo e responde à reprovação de uma sobrinha (que o explica no filme), assumindo que alguns comportamentos escapam à razão. Do seu lado, também sofreu traições (a começar pelos 2 maridos) e ataques ferozes, perdendo grande parte dos amigos. O modo independente com que defendeu as suas convicções, sem integrar nenhuma escola de pensamento nem alinhar com as ideologias da moda, colocou-a num limbo desconfortável, terra de ninguém. Acabava por ser demasiado atípica: revolucionária nas ideias, mas recusando a revolução armada dos anos 50 e 60.
Outro pensamento da filósofa judia, que clarifica a sua posição anti-revoluções: «A violência é capaz de destruir o poder, mas nunca de substituí-lo» |
Curiosamente, Hannah não tinha total consciência do efeito das suas palavras, expressivas de um pensamento muito livre. Demasiado? De uma racionalidade acutilante e animada pelo tal sentido de dignidade do ser humano, ultrapassavam-na as manigâncias da maioria que se acomoda ao poder vigente, preferindo o conforto de uma sobrevivência ao sabor dos ventos dominantes. Não antecipou, por exemplo, o efeito incendiário da sua reportagem para a revista New Yorker sobre o julgamento de Eichmann (1960s). Começara logo por não valorizar o facto de a sua perspectiva mais objectiva sobre o processo decorrido no tribunal de Jerusalém estar nos antípodas da do público que, ao seu lado, se inflamava e projectava naquele homem os traumas horrendos causados pela guerra. Como lhe dizia o marido (o segundo): tinha um lado naïve, que não lhe permitia antever as fúrias que muitas das suas teorias políticas desencadearam, mal conheceram a luz do dia. Vivia na ilusão de que bastaria ter um olhar discernido e desvendar a verdade total, quase sempre, até doer, sem cuidar de não ferir as inúmeras susceptibilidades e preconceitos que também as vítimas tinham acumulado.
Acabou por sofrer na pele a ostracização acintosa dos mais próximos, que não souberam compreender o alcance das suas ideias revolucionárias. Menos ainda de tolerar a dureza gélida do seu ferrão crítico, apesar de certeiro (a mais das vezes) e de manifesta honestidade intelectual. Só que nem sempre foi verbalizado de forma calibrada. Ao invés, sobressaia a leitura mais extremada. Como nunca a dor a fez travar nas suas incursões intelectuais e políticas, nem percebia que os outros preferiam ser poupados a uma verdade posta a nu, com as fraquezas escancaradas, tantos dos algozes (as únicas expectáveis) como das vítimas. Sim, do lado destas também houvera comportamentos reprováveis. Quantos sobreviventes protagonizaram faltas repugnantes, que doem até ao fundo da alma?
Se, por um lado, arrasou todos os totalitarismos e alertou a sua geração para as causas do novo patamar de mal que os campos de extermínio do Reich tinham inaugurado, foi também q.b. dura com os Conselhos Judaicos, a quem os nazis incumbiram da tarefa mesquinha de preencher os nomes dos compatriotas judeus a abater, impedir as fugas durante a viagem até Auschwitz – tarefa cumprida com um zelo repugnante –, atirar os mortos para as valas comuns que abriam e depois fechavam, etc.
No documentário de Ava vêem-se esses esbirros a maltratar os seus irmãos judeus com a brutalidade dos cobardes. Essas curta-metragens de arquivo tinham sido filmes de propaganda alemães, percebendo-se a intenção de provar a facilidade com que angariaram traidores façanhudos junto do povo perseguido, para evidenciar as alegadas debilidades étnicas.
Ciclicamente, surge no filme um ecrã negro, comparável à ardósia da sala de aula do século XX, sobre o qual letras brancas são gravadas ao ritmo do batuque da velha máquina de escrever em que Arendt terá fixado os seus pensamentos mais emblemáticos. Por exemplo, sobre a necessidade de pensar afirmou: “To think always means to think in a critical manner […] every thought actually undermines whatever there is of rigid rules, general convictions […] That means there are no dangerous thoughts, because thinking in itself is such a dangerous enterprise». Ainda assim, o maior perigo para Hannah seria abster-se de pensar. Explicava ainda que este exercício implica pausa e citava a expressão idiomática inglesa: pare para pensar. Transpondo para o presente, alertava para o frenesim da vida hodierna, impeditiva do raciocínio, i.e., da capacidade de avaliação da realidade circundante.
Sobre o perdão e a reconciliação, Hannah tece considerações estranhas ao olhar cristão, reduzindo-os a uma escala meramente psicológica, dependente da habilidade no convívio social. Perdoar fica-se por um reconhecimento de que também a vítima poderia ter cometido a mesma falta. Um conceito empobrecido, que limita o perdão ao denominador comum, em matéria de fraquezas, entre prevaricador e ofendido, segundo o entendimento de cada um.
Em Hannah e na realizadora, ambas formadas em filosofia, há um esforço de isenção para combater o preconceito em que muitos dos seus compatriotas se entrincheiraram, atribuindo ao anti-semitismo todos os males de que padeceram ao longo dos séculos. Ambas ousam opor-se a tal vitimização e simplificação desresponsabilizante da história.
Mais, o documentário aplica o corajoso conselho da filósofa alemã sobre a necessidade de aceitar e cultivar a pluralidade de perspectivas individuais, para permitir uma leitura enriquecida sobre a vida. Dizia Arendt: «Só quando as coisas podem ser observadas por muitas pessoas, numa variedade de aspectos, de modo a que os diferentes observadores saibam que vêem o mesmo mas com a mais completa diversidade de visões, pode a realidade manifestar-se de maneira real e fidedigna.» (in «A Condição Humana»)
Vale a pena reaprender com Hannah a desmontar os chavões instalados, que condicionam a forma de percepcionar e interpretar a realidade. No decurso do documentário, o desafio vai em crescendo, no sentido de recuperarmos a lucidez e a serenidade reflexiva para identificar «the Banality of Evil in the world today». Matéria de observação não falta, no meio de tanta turbulência e campanhas orquestradas por uns e por outros.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA
Título original: Vita Activa: the spirit of Hannah Arendt
Título traduzido em Portugal: Vida Activa: o espírito de Hannah Arendt
Realização: Ada Ushpiz
Argumento: Ada Ushpiz
Produzido por: Ida Fishmann, coadjuvada por Edva Goldschmidt, Ada Ushpiz
Fotografia:
Banda Sonora: John Wilson (música original)
Duração: 125 min.
Ano: 2015
Países: Israel e Canadá.
Elenco:
a própria Hannah Arendt, a sobrinha,
Académicos e filósofos como Leon Botstein e
Judith Butler; Richard Bernstein e diversos judeus.
Em imagens de arquivo: Adolf Eichmann, Martin Heidegger, etc.
Alison Darcy – voz off de H.Arendt
Locais das filmagens: Por onde Hannah A. passou: Nova Iorque, Alemanha, Israel, Paris.
(2) Nascida na Alemanha, de família judia, a perseguição da Gestapo levou-a a fugir para Paris, em 1933 e daí para os EUA, em 1940, já com o segundo marido – um alemão comunista, depois de escapar de um campo de refugiados para onde fora encaminhada, nas vésperas de Hitler tomar Paris.
1 comentário:
Vi ontem o filme e gostei tanto quanto do seu post.
Há matéria relevante, polémica, controversa suficientemente necessária para elaboração de reflexões sobre o que é o 'ser humano' e o risco de em cada um/a haver resquícios de 'um Eichman' que se pode revelar segundo a necessidade e a circunstância da realidade vivencial.
Afinal estamos a falar de uma mulher que não se identificava como filósofa, mas politóloga social. A mesma que se revela na frase 'Há coisas maiores do que o homem...'
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