Das melhores personificações da Bela Adormecida é a música, no sentido em que toda a obra musical só ganha vida quando é executada. Até lá corresponde a letra morta, na pura acepção.
Exemplo de uma Belíssima maravilhosamente acordada, em 2015, foi a obra de Igor Stravinskiy (1882 Rússia -1971, EUA), composta em 1908 para homenagear o seu mentor e mestre – Nicolai Rimsky-Korsakov, após a morte deste, a 21 de Junho de 1908. Intitulada «Cântico Fúnebre» (Funeral Song), a op.5 teve estreia absoluta a 17 de Janeiro de 1909. À época, mereceu críticas variadas, entre elogios e ironia. Enquanto um a apreciava reconhecendo «the lament and moaning of a heart against the backdrop of a somber landscape», outro enjeitava a sua frieza observando que fora pena ter quebrado o silêncio: «Better keep silence if losing a friend and teacher leaves us cold.»
Fruto de vicissitudes várias, a op.5 sumiu-se sem deixar rasto, para além da vaga notícia da sua audição, cem anos antes. A turbulência devastadora após a Revolução de 10917 a que se seguiu a Guerra Civil, depois as purgas estalinistas, intercaladas da invasão nazi em 1941, não deram descanso à população. Muita sorte, ou melhor, enorme sensibilidade e requinte cultural ter-se guardado memória da sua existência.
Logo após a derrocada da União Soviética, intensificou-se a busca da célebre partitura. Das incansáveis pesquisadoras foi a académica Natalia Braginskaya, da Universidade de Musicologia de S.Petersburgo – continuando a obsessão dos seus professores. Resultou em mais uma a vasculhar o arquivo do Conservatório da cidade, em vão, à parte de se ter tornado conhecida dos arquivistas. Curiosamente, a suspeita de que estaria por ali esquecida veio a revelar-se certeira, tapada entre papelada burocrática. Pode imaginar-se a alegria da musicóloga quando, no Verão de 2015, a bibliotecária do Conservatório, Irina Sidorenko, lhe telefonou a perguntar se a obra procurada se chamaria Cântico Fúnebre! Acabara de ser desencantada, por mero acaso.
Composta aos 26 anos, merecera referência especial nas memórias de Stravinski, escritas em 1935. Considerou-a a obra mais importante do ciclo que antecedeu a composição das famosas peças para ballet, antes de se ter transplantado para o Ocidente. Com tonalidades do «Pássaro do Fogo» e influências de Wagner (só tardiamente assumidas pelo russo), o compositor recorda-a poeticamente como uma homenagem de cada instrumento musical ao seu grande professor R.-K.:
«Unfortunately, the score of this work disappeared during the revolution... I no longer remember the music, but I recall very well my idea for the work. It was like a procession of all the soli instruments of the orchestra, coming in turns to each leave a melody in the form of a crown on the master's tomb, all the while with a low background of murmuring tremolos, like the vibrations of bass voices singing in a choir.»
Ao longo de doze minutos, chega-nos o horizonte imenso das planuras brancas e espelhadas da neve sobre as estepes russas, como se o chão estivesse lacado, cobertas por um céu prateado e glaciar, que amplia a infinitude da paisagem. Ouve-se também a musicalidade das lágrimas e a dor de um coração apertado pela saudade. Faltarão as palavras, mas não a música, que é a sonoridade com sentido quando se mergulha no mistério da vida, quase sempre em fases de sofrimento. Felizmente que Stravinski ousou romper o silêncio:
A segunda estreia ocorreu mesmo antes do ano fechar, a 2 de Dezembro de 2016, na Sala de Concertos do Mariinsky, em S.Petersburgo, sob a batuta do maestro Valery Gergiev. Este concerto memorável (aqui http://ow.ly/yUSg306TFPC em versão integral) incluiu também a execução do «Pássaro de Fogo» e suite da ópera de Rimsky-Korsakov «A Lenda da Cidade Invisível de Kitej».
A descoberta da partitura perdida tem sido anunciada na imprensa internacional como milagre, por ter sido «miraculosamente preservada» durante mais de um século, «miraculosamente encontrada», ou até miraculosamente lembrada e pesquisada, resistindo ao expectável esquecimento. A invulgar preferência por aquela palavra dá bem nota da surpresa geral perante a recuperação de uma frágil pauta com fortíssimos motivos para ter sucumbido aos múltiplos furacões destrutivos que assolaram a Rússia no século XX.
Assemelha-se, assim, a um presente da Festa de Reis, daqueles que só a candura das crianças se atreve a pedir, por confiar que é possível.
Um segundo presente, também de valor incalculável, vem condensado no slogan da marca de relógios Breitling – «The greatest luxury in life is time. Savour every second». Embora se tenda a banalizar o tempo, corresponde à coordenada mais importante da nossa vida. Por isso, é o grito que ecoa desde o alvor da criação, quando o primeiro humano foi insuflado de vida e convidado a gozar esse dom único, que fica ofuscado pela outra coordenada mais óbvia e de maior impacto, onde se concentra toda a materialidade – o espaço. O mesmo convite lançou-nos o Bebé nascido nas palhinhas de Belém, que insiste em oferecer-nos um presente de luxo (a Breitling tem razão), como só Ele pode: um Novo Ano! Lembro-O para desejar a todos um Feliz 2017 .
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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