JOVENS PORTUGUESES MUDARAM DEPOIS DO QUE VIRAM À «ENTRADA» DA EUROPA
Sabemos que não há respostas simples para o fluxo imenso de refugiados dispostos a empreender uma viagem de alto risco para tentar mudar de vida, de tal forma sofrem e desesperam nos países de origem. Seja a pobreza, seja a guerra, seja a insegurança constante, seja a servidão e escravatura encapotada ou mesmo descarada, é inegável que o dia-a-dia de milhões de povos é infra-humano. Isto dito, não significa que a avalanche contínua de imigrantes em fuga seja um desafio menor para as sociedades de acolhimento. Claro que gera problemas e desconforto. Não faltam vozes proeminentes a antever uma invasão muçulmana do Ocidente e outras ameaças temíveis. Apesar disso, as campeãs da generosidade têm sido as comunidades mais pobres e frágeis, à cabeça o Líbano, a Jordânia, o Iraque e até o Irão.
No balanço de uns e de outros, sobressai a reflexão do historiador Rui Ramos:
Planando, corajosamente, acima do deve-e-haver da questão, há quem se faça ao largo só para socorrer vidas, lembrando o nadador-salvador que se atira ao mar sem questionar sobre o valor da vida ou do carácter do náufrago. Afinal, a vida humana vale por si, merecendo o resgate! É neste contexto que ganham em ser nomeados alguns casos emblemáticos, que confirmam quanto cada gesto, cada escolha faz a diferença. Basta querer.
Em Janeiro de 2016, uma finalista de enfermagem, já com licenciatura em psicologia, decidiu passar as férias académicas em voluntariado numa ilha grega, integrada numa ONG de salvamento. Foi tão difícil encontrar uma ONG disponível para enquadrar a sua assistência, quanto convencer a mãe, em pânico com a bondade irresponsável (temia) da filha. Do alto dos seus 22 anos, o testemunho posterior de Matilde Salema confirma a força imparável de um olhar solidário, capaz de esgravatar tempo para ir em socorro dos que estão em perigo. Quem quer que sejam, de onde quer que venham. No campo de refugiados de Moria, na ilha grega de Lesbos, esfalfou-se nos turnos da noite, numa azáfama difícil de digerir, pois viu demasiadas vezes a morte. Aquele mês intensíssimo revolucionou-lhe o olhar. Nas muitas intervenções para que tem sido convidada, gosta de rematar com uma citação de Sta.Catarina de Sena «Se fordes aquilo que deveis ser, pegareis fogo ao mundo inteiro.»
Emocionou Medina Carreira, que foi dos primeiros a entrevistá-la. Seguiu-se o Observador, com link ainda disponível, sob o título «Tive medo dos refugiados até perceber que tinha que os ajudar». Como se aguenta? – pergunta-lhe a jornalista Laurinda Alves. «Ser e estar em cada momento», é uma das dicas de Matilde, ou ainda: «Primeiro olhava, para perceber o que precisavam. (…) Às vezes, só precisavam de um abraço».
No mesmo ano de 2016, também Pedro Rocha e Mello rumou a Atenas para oferecer o seu trabalho à PAR – Plataforma de Apoio aos Refugiados. A experiência «agarrou-o» e inspirou-lhe um blog noticioso sobre o tema -- https://www.facebook.com/Without-Borders-1775981815975041/. Um pequeno spot, postado há uns meses, explica bem quanto a identidade do ser humano não se altera nem reduz pelo facto de alguém se sujeitar à condição de refugiado. Em suma, não deveria ser pretexto para estigmatizar e diabolizar:
https://www.facebook.com/reinforce.project/videos/vb.234604383623386/427525897664566/?type=2&theater
A conclusão é cristalina: «Being a refugee is a situation, not a definition. Stop labelling». Um cartoon que está a circular na net confirma a importância de desmontar o preconceito da rotulagem pejorativa, alimentado por traumas concretos e alarmantes em bolsas de comunidades muçulmanas, que florescem, há mais de meio século, nas franjas das grandes cidades europeias. Pouco têm a ver com estas movimentações demográficas do século XXI, tendo tudo a ver com as políticas e práticas de integração desses segmentos periféricos em todos os sentidos:
Quando regressou a Portugal, Pedro R.M. matriculou-se em árabe, na Mesquita Central de Lisboa, para poder compreender e acudir melhor aos refugiados que tentam escapar a uma desgraça certa, na sua terra. Acha fundamental vencer a barreira da língua, que dificulta o diálogo e a sintonia. Recentemente, aproveitou os dotes de ilustrador para dar cor e forma a uma estória da sua tia Thereza Ameal, que ficou marcada pela fotografia de uma pequenina resgatada num bote, que o sobrinho lhe enviara da Grécia. A partir daquela cara amorosa, nasceu a aventura de Miriam, uma amiga vinda do outro lado do mundo, que se cruza com o pequeno ocidental, empenhado em acolher uma família fugida à guerra. Há 70 anos, num continente devastado pela Segunda Guerra, Miriam seria europeia! Na perspectiva de Pedro: «Ao [ajudar a] fazer este livro, olhei para trás e vi o que conhecia dos refugiados antes de ir para a Grécia. Foi óptimo ir descobrindo, ir abrindo o coração. […] Nesta história estão centenas de pessoas e de caras diferentes, verdadeiras e, como portugueses, temos a responsabilidade de saber acolher o que é diferente, que não nos deve assustar». O conto de Miriam visa tornar acessível aos mais novos a experiência de abertura ao «diferente-estrangeiro-desintegrado», que muitos adultos recusam, apesar de ser um pilar da Paz:
Outra solução interessante: cansados do desperdício de presentes, no final das festas de anos dos miúdos, um grupo de pais de um colégio privado de Lisboa acordou com os filhos substituir os embrulhos dos laçarotes por donativos em favor de uma causa benemérita. A experiência entusiasmou miúdos e graúdos, a ponto de estarem a conseguir angariar boas maquias, doadas ao JRS Portugal-Serviço Jesuíta aos Refugiados.
Paris também reagiu com alternativas à altura da Cidade Luz: em muitos dos restaurantes mais badalados, os cozinheiros sírios são rapidamente recrutados, para lhes proporcionar um ganha-pão. A moda do exotismo da culinária de Damasco entrou, assim, pela porta grande da capital francesa. A boa mistura entre os sabores sírios e o estilo gaulês tem enriquecido muito a criatividade gastronómica.
Parceria franco-síria de Chefes no «L’Ami Jean», entre o consagrado dono do bistro Stéphane Jégo (esq.) e Mohammad El Khaldy. |
Até deu origem a um festival – o «Refugees’ Food Festival». Naquela semana degustativa, o comando das cozinhas dos bons bistros parisienses [exemplo de dois da primeira hora: Left Bank bistro, L’Ami Jean] é entregue a um refugiado, que dispõe de todos os meios técnicos para exibir os seus dotes. Do lado dos media, a iniciativa tem sido noticiada com brado, ajudando a mediatizá-la: «Syrian Refugee Cooks in Paris's Trendiest Resturants». A data de início costuma coincidir com o solstício de Verão, para aproveitar o bom augúrio do dia com mais tempo de luz. A feliz ideia continua a ser sustentada pelo restaurante e atelier culinário La Résidence [https://www.refugeefoodfestival.com/la-residence-2/?lang=en] que, a cada dois meses, recebe um novo chefe refugiado, oferecendo-lhe condições para se dar a conhecer ao público e relançar profissionalmente.
Infelizmente, não se prevê para breve o fim desta errância de gentes. Sobre a guerra na Síria, esclarecia a religiosa argentina que ali viveu anos a fio -- Guadalupe: bastava pararem o tráfico de armas para se pôr cobro a um conflito injusto e dilacerante (ref. no gin de 21 de Março de 2016). Sobre as desigualdades gritantes entre diferentes hemisférios, tudo parece cristalizado, apesar das muitas organizações internacionais pagas principescamente para promover um desenvolvimento que continua a estar longe de chegar a todos. A previsível escassez dos recursos hídricos agravará o problema. Certo mesmo é termos pela frente milhares de pessoas desesperadas e em risco, desejosas de se estabelecer no Primeiro Mundo. Apenas podemos escolher como reagir, quando nos calhar ter a vida do próximo nas mãos… Mãos sempre frágeis, claro, mas não necessariamente fechadas.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta-feira)
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