Replicando o gesto de há 100 anos, às 11h00 (de Paris) de 11 de Novembro de 2018, os sinos dobraram pela paz. Há 100 anos, dominava o medo, o ódio, a devastação e a morte. Actualmente, recorda-se a tragédia passada por «devoir de mémoire», acreditando que «La vague [mortífera] n’emportera pas le souvenir».
Junto ao Arco do Triunfo, reuniram-se 70 Chefes de Estado – entre europeus, EUA, Rússia, magrebinos e outros – para homenagear as vítimas da I Guerra Mundial e garantir um futuro de paz às novas gerações. Junto ao mais famoso memorial bélico do Ocidente, a palavra de ordem condensava o essencial: «Plus jamais ça».
Perspectiva dos batedores da escolta de Trump, no caminho para o Arco do Triunfo – Credit Tom Brenner para o «The New York Times» |
Em Paris, o centenário do armistício foi celebrado com minutos de silêncio, música, um discurso de Macron e poemas de soldados-poetas, compostos a 11 de Novembro de 1918 por franceses, britânicos, alemães e declamados, um século depois, por liceais das diferentes nacionalidades.
O repertório musical acentuou o eixo Paris-Berlim, a abrir com Bach no timbre nostálgico e solene do violoncelo, primorosamente executado pelo sino-americano nascido na capital gaulesa – Yo-Yo Ma. Comoveu Putin, segundo noticiou o «Evening Standard»(1) (aqui em gravação de qualidade sofrível):
As marcas russas na cerimónia de 2018 foram mais longe: a sequência protocolar atrasou-se com a demora de Vladimir P. junto ao monumento em honra das tropas que, à data, obedeciam ao Czar. Ali depositou um ramo de flores em escarlate luminoso, cor de sangue, no formato de bouquet de noiva, à parte das hastes compridas.
Depois de Bach, seguiu-se a sonata do francês Maurice Ravel, interpretada pelo duo Yo-Yo Ma e o violinista Renaud Capuçon. Para concluir: o «Bolero» (1928) de Ravel, que se tornou símbolo de esperança de um pós-guerra pacificado através do filme do realizador gaulês «Les uns et les autres» (1980). E calhou a um maestro russo dirigir a European Union Youth Orchestra – Vasily Petrenko.
Uma curiosidade a ver com Portugal e o «Bolero»: o maestro Pedro de Freitas Branco, amigo de Ravel, dirigiu uma execução mais lenta daquela composição, que se repete e avança em crescendo como uma espiral obsessiva, alongando-a em dois minutos e meio.
Em Étoile, irrompeu ainda uma actuação musical mais atípica mas pleno de intensidade, na voz potente da artista do Benim Angélique Kidjo3, para prestar homenagem à forças expedicionárias africanas que participaram na Grande Guerra e tendem a ser ignoradas. Redundou noutro momento comovente para vários dos VIPs presentes. É Kidjo quem associa a voz à essência do ser humano, defendendo que: «La voix est le mirage de l’âme».
No último Domingo de S. Martinho, por todo o planeta, multiplicaram-se as comemorações do centenário do armistício, percebendo-se quanto os gestos simbólicos, celebrados em conjunto, têm o condão de unir povos de todos os confins do planeta, partilhando a mesma dor e afirmando a mesma vontade de paz:
Sydney, Australia - Red poppies are projected on to the sails of the Sydney Opera House. Photograph: David Gray/Reuters (2) |
Children laid poppy wreaths at a memorial in Hong Kong. Credit Vivek Prakash/Agence France-Presse — Getty Images |
Kolkata, India - An Indian army soldier carries a wreath before laying it at the war graves cemetery during a ceremony to mark the centenary. Photograph: Rupak de Chowdhuri/Reuters |
Transcorridos 10 dias no calendário, surge a festa de 21 de Novembro, que suplanta o grande Cisma do Oriente e toda a cristandade (em especial, ortodoxos e católicos) evoca a Apresentação de Nossa Senhora no templo. Reza a história que, aos 3 anos de idade, Sant’Ana e S.Joaquim levaram Maria ao templo para agradecer o nascimento da filha. Repetiam a experiência de Abraão, dos pais de S.João Baptista e de tantos outros casais a quem fora dado o dom de conceber tardiamente, para certificar uma fecundidade inexplicável e impossível pelas leis da natureza.
Mal chegou à longa escadaria do templo, apenas reservada para os sacerdotes, Maria subiu-a impelida pelo Espírito Santo e foi recebida pelos sacerdotes com as mais altas honras, conduzindo-a ao núcleo mais sagrado templo, apenas reservado aos eclesiásticos em ocasiões especialíssimas.
Talvez por coincidência (e, naturalmente, gosto pessoal), as melhores telas alusivas a esta evocação da infância da Mãe de Deus e da Humanidade pertencem a italianos, que beneficiam do facto de se encontrarem na confluência das civilizações oriental e ocidental, desde há milénios:
Fra Carnevale, «Apresentação da Virgem» (detalhe), c. 1467 |
Ghirlandaio, «Apresentação da Virgem», na Capela Tornabuoni em Santa Maria Novella, Florença, 1486–90. |
Titian, «Apresentação da Virgem», c. 1535. |
Outros eventos tiveram lugar a 21 de Novembro, embora nenhum congregue vontades tão diferentes e complementares como o que inspirou artistas de vários gerações. Elencando alguns dos que fizeram história: em 1818, o Czar Alexandre I apresentou uma petição em favor da constituição de um Estado judeu no território da Palestina; no rescaldo da Revolução de Outubro, logo em 1917, o espírito lúcido do grande escritor russo Maxim Gorky classificou Vladimir Lenin de «fanático cego e aventureiro irracional»; em 1933, foi aberta a primeira Embaixada dos EUA na capital da URSS; em 1937, deu-se a estreia da 5ª Sinfonia de Dimitri Shostakovitch, em Leningrado, recebida com uma ovação recorde de uma hora; em 1970, o golpe de Estado na Síria iniciou a dinastia do clã al-Assad no poder; em 1977, o Concorde rasgou os ares, pela primeira vez, num voo entre Londres e Nova Iorque; em 2017, Mugabe aceitou resignar, ao fim de 37 anos no cargo de presidente do Zimbabwe.
O grande mestre que é o tempo confirma a validade da memória histórica. Por isso, finda a II Guerra Mundial, foi gravado nos campos de concentração nazi, em grandes parangonas, o alerta do filósofo George Santayana (1863-1952): «Those who do not remember the past are condemned to repeat it».
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta-feira)
____________________________(1) https://www.standard.co.uk/news/world/vladimir-putin-at-paris-armistice-day-russian-president-wells-up-as-cellist-plays-at-remembrance-a3986951.html .
(2) https://www.theguardian.com/world/gallery/2018/nov/11/armistice-day-is-marked-around-the-world-in-pictures#img-17.
(3) Esta multifacetada cantora, compositora, actriz, dançarina e realizadora, três vezes premiada com o Grammy, teve uma actuação memorável no Rock in Rio de 2015. Quem lá esteve, penso que não a esquece. É especialmente conhecida pela sua interpretação de MAMA AFRICA:
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