Assumamos duas ideias chave:
no domínio da matemática, que o limite de algumas funções tende para infinito;
no domínio de outras ciências, que a existência da Terra é finita, porque são finitos a água e o calor do sol.
Aprendemos, nós, os cristãos, que o Homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, que em cada um dos entes nascituros já há um sopro divino. Ora, acredito que esse tal influxo com que cada um foi bafejado é apenas uma infinitésima marca do Criador, como se fossemos uma rês ferrada na perna, ou uma criança deixada na roda dos enjeitados acompanhada de um lenço onde se bordou "Justina, virei buscar-te um dia, perdoa-me". Nem a marca gravada a quente nem a cambraia guarnecida de texto e lágrimas são indicadoras de santidade, perfeição, bondade, espírito recto. Revelam apenas uma propriedade que alguém - ou Alguém - reclamará um dia, seja numa tórrida e feliz tarde de um Agosto qualquer, seja no fim dos tempos, quando a Terra não for mais do que frio e noite.
Há nas crianças, naquilo que é o melhor do mundo, uma inquebrantável maldade. Gozam com quem tem óculos, com quem coxeia, com quem está inchado de remédios, com quem gagueja, com quem tem uma madeixa de cor bizarra, que a genética atraiçoa os mais capazes e o destino amaldiçoa os mais puros. Deus está lá, apesar do dichote carregado de desumanidade, da troça onde se pressente um vaguíssimo cheiro a enxofre encoberto pela fragrância matutina. O que significa isto? Que nascemos com uma origem desarmónica, como o bezerro que tem um olho cegado pela imperfeição. E no entanto o sopro está lá, e o ferro em brasa encosta-se na mesma num fumego de carne. É Meu filho, dirá Alguém; o gado é meu, dirá alguém.
Enquanto seres racionais somos uma função cujo limite tende para um fim harmonioso, que é o infinito da matemática. Procuramos a perfeição, sabendo que não a alcançaremos jamais. Na natureza as coisas tendem para, porque aquilo que já é tem uma dimensão morta, fixa, estática - um concerto de Beethoven, um ovo Fabergé, a Ronda da Noite de Rembrandt. Assim sendo, acumulamos imperfeição, porque o nosso passado - carregado de defeito - é sempre superior ao nosso futuro, onde se vislumbra o apuro máximo. Há sempre mais passado do que futuro, porque o que foi é uma realidade, e o que está para vir é apenas uma hipótese que se confirma momento a momento. Por isso a longevidade é uma realidade traiçoeira: por um lado, são mais anos de aperfeiçoamento na procura da Beleza; por outro lado, são mais anos de acumulação de Fealdade. A contabilidade não é uma ciência exacta.
Como seres humanos, nascemos bafejados pelo Divino; o sopro é um ferro em brasa num corpo pequeno e sorridente, que não cheira a carne queimada mas a alma repleta. Este hálito celeste não está impregnado de probidade, como o ferro não está impregnado de bravura. Revelam apenas uma propriedade que, no caso dos seres animados de sentimentos, vem com uma condição - não desistir, porque o tempo é finito.
JdB
* publicado originalmente a 4 de Março de 2015
1 comentário:
Bom texto.
Abraço
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