Uma das vantagens da minha estadia quinzenal no Funchal é a leitura. Para não sobrecarregar a bagagem de volume não levo nenhum livro daqui, abastecendo-me do que houver na Bertrand local. No ano passado li Quando os Lobos Uivam, de Aquilino Ribeiro, que talvez não lesse no continente. Este ano abalancei-me a ler A Queda dum Anjo, de Camilo Castelo Branco, que começa desta forma poderosa e criativa:
Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas, tem hoje quarenta e nove anos, por ter nascido em 1815, na aldeia de Caçarelhos, termo de Miranda.
Gostei muito do livro, que tem 200 páginas e se lê num instante, tal o gosto. A citação abaixo - talvez um pouco longa - refere-se ao discurso do morgado nas cortes após o abade Estevães lhe dizer que o Estado subsidiava o teatro de S. Carlos com vinte contos de réis anuais.
Sr. presidente, gozem nas boas horas os sátrapas da capital os deleites da sua civilização teatral. Despendam-se, arruínem-se, doudejem com essas ficções e visualidades, que relembram factos de alto escândalo que não deviam ser vistos à luz da civilização que o meu ilustre colega preconiza. Se gostam, não serei eu, homem de outros tempos e gostos, quem lhes impugne a racionalidade do seus passatempos. O que eu requeiro, em nome da justiça e da pobreza do País, é que se não sisem os povos provinciais para manutenção dos divertimentos de Lisboa. O que eu contesto é o direito de me fazerem pagar a mim e aos meus vizinhos as notas garganteadas dos ganha-pães que não têm na sua terra ofício honesto em que vivam com seriedade e utilidade comum. O que eu sobretudo lamento, Sr. presidente, é o silêncio desaprovador dos meus colegas. Sou eu só: serei eu só o vencido. Não importa! Victis honus!. As pequenas coisas tratam-nas os pequenos: Parvum parva decent. Eu abro mão das glórias prometidas ao nobre colega que, há pouco, pediu subsídio para o teatro do Porto. Dêem-lho. Desenrolem a onda aurífera do Pactolo do nosso tesouro até Braga. Quem pede subsídio para o teatro bracarense? A equidade reclama-o. O meu círculo também quer um teatro. Teatro e subsídio para todo o lugarejo onde morar um contribuinte. Estamos em vida fictícia como país independente. Somos como o sapateiro que se veste de príncipe no Entrudo. Pois bem! Comédia geral! Seja Portugal um teatro desde Monção ao cabo da Roca! Peço uma companhia italiana para a minha terra. Os meus constituintes querem provar o sabor das delícias que têm estipendiadas em Lisboa. Se eu não posso, Sr. presidente, levar-lhes a boa-nova de que vão ter estradas que os liguem à sua nação, seja-me permitida a glória de lhes levar a Lucrécia Bórgia, a incestuosa e envenenadora Lucrécia, que os há de edificar e converter à civilização. Disse.
160 anos passados após a escrita deste livro. nalguns aspectos o país não mudou muito.
JdB
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