20 novembro 2024

Vai um gin do Peter’s ?

 EM CONTAGEM DECRESCENTE PARA O NATAL 

A agilidade do marketing para compor mensagens lapidares parece aguçar-se na aproximação ao Natal ou face a acontecimentos especialmente impactantes em determinado país ou mesmo no mundo. Vimos o IKEA no seu melhor durante a campanha eleitoral das últimas legislativas nacionais, com cartazes à Monty Python, de que lembro alguns, só descodificáveis para os eleitores nacionais, em modo private joke certeira:  


Surfando a onda de sucesso do IKEA, outras marcas criaram cartazes cheios de humor, uns também com farpas políticas directas (um inédito em Portugal), outros mais despolitizados, como preferiu a FNAC. Curiosamente, uns escassos 9 meses sobre as legislativas de 10 de Março de 2024 e só em pesca à linha (em blogs e no Facebook) ainda resistem na net exemplos dessa exuberância publicitária dos primeiros meses deste ano. Isto corresponde a um apagão informativo clamoroso do passado recente na google, cuja maioria das pesquisas apenas dá acesso a links institucionais (CNE e afins, com instruções sobre os locais de voto e infantilizações equivalentes) e, em matéria de cartazes restringe-se aos dos Partidos com assento na A.R., sendo os mais visíveis no google os do Bloco de Esquerda. Estranhos tempos de suposta liberdade democrática e de apregoado pluralismo de todos os quadrantes, mas com descarada redução do património histórico a um par de vestígios higienizados. Se isto não é cancelamento... Aqui vão exemplos de cartazes divertidos, em diálogo uns com os outros, caçados com enorme esforço, pelo que convém revê-los e guardá-los como documentos históricos expressivos de uma ousadia democrática desempoeirada, que deu os primeiros passos uns meses antes de cumprirmos meio século sobre o 25 de Abril:  

Mais 3 empresas entram no diálogo publicitário disparado pelo IKEA, com a famosa estante onde se esconderam milhares de euros no escritório do Chefe do Gabinete do PM de então (Nov.2023), em S.Bento.




O outdoor da SUN esteve exposto ao lado da sede do PS, no Largo do Rato.

Em 2018, o IKEA esmerou-se na sua missiva de Natal (ao invés deste ano, que lançou um meramente mercantilista) com uma curta-metragem interpelativa, dirigida sobretudo aos países hispânicos. Aproveita o clima afectivo da quadra para arriscar um alerta forte sem o efeito colateral de “murro no estômago”. Porque há verdades que doem, mais ainda quando se adentram na vida rica, mas cheia de claro-escuros, de tantas famílias. Partindo da matriz familiar do Sul da Europa e das sociedades latino-americanas, onde se juntam várias gerações à mesma mesa, denuncia-se a grande ilusão que podem ser as redes sociais, na miragem de estarmos mais interconectados com os outros, mas afinal menos disponíveis para os que estão ao lado. O tempo não estica para tudo: ou imagens de pessoas no ecrã ou gente de carne-e-osso. 

Convenhamos que muita cusquice se alimenta nas redes sociais, que devassam sem conseguir aproximar-nos de quem surge nos telemóveis ou nos tablets! Se dúvidas houvesse, confirma-se quanto o principal se joga nas escolhas do nosso coração e bem menos nas proezas tecnológicas ao nosso alcance. Vivemos mergulhados na superabundância de recursos (pelo menos, no Ocidente), o que exige saber escolher, deixar opções para trás, cientes do perigo de tentar ir a tudo e acabar em overdose. Bem sabemos que não é a mesa a transbordar de comida que engorda e dá cabo da saúde, mas o que realmente consumimos. Mais critérios e filtros afinados tornam-se incontornáveis para tirarmos o melhor partido do que está à mão de semear, mas requer moderação para evitar excessos viciantes e, a prazo, degradantes.

Claro que a validade de algumas perguntas na curta-metragem do IKEA poderá ser questionável, porque desconhecermos a cor preferida de alguém próximo não significa, necessariamente, desinteresse e frieza. Mas, sem nos atermos ao pormenor de cada interpelação, a ideia central merece ser levada a sério e repensada, no final do dia. Poderá servir de bússola para aprofundarmos e enriquecermos a relação com os outros, começando pelos mais chegados. Dizia um amigo meu, na altura pai de filhos pequenos, que uns vizinhos se preocupavam muito com os filhos, mas ocupavam-se bem pouco deles… Aplica-se, na perfeição, ao leit motiv do spot publicitário da marca sueca, observado pelo ângulo mais positivo e verdadeiro: «Everyday, we have the chance to know more about the people around us»:   



Quadra bem anunciar o Natal lembrando a liberdade tão necessária ao coração humano e crucial na relação com o próximo, para poder ser saudavelmente recíproca, positiva, sem atropelos ao que no outro (em cada um) é sagrado e intocável. É especialmente reconfortante constatar a explosão de liberdade que traz à humanidade o Menino que está a chegar, como se canta neste hino natalício:   


Hoje, a partir das 17h30, o Cristo Rei ficará iluminado em tons encarnados para lembrar o drama imparável dos deslocados e refugiados. É indizível a dor que provoca abandonarem a sua terra, por vezes, deixar para trás os mais velhos e frágeis da família, para fugir à pobreza e às guerras, aventurando-se em travessias perigosas até regiões estáveis e prósperas do globo, onde dificilmente serão tratados como um nativo. De 18 a 24 de Novembro, decorre a RED WEEK organizada pela Fundação AIS, em homenagem e em alerta para a situação dramática de milhões de cristãos vítimas de perseguição religiosa no mundo. Um dos pontos altos da semana é a apresentação do estudo: «Perseguidos e Esquecidos? Relatório sobre os Cristãos oprimidos por causa da sua fé». Como é possível que uma época tão sensível aos Direitos Humanos e tão adepta das amplas liberdades, pactue (pelo silêncio noticioso) com estas perseguições mortíferas e inaceitáveis para os padrões de liberdade de que o nosso tempo se considera arauto e campeão? Onde estão a ONU e a maioria das ONG profissionais da denúncia? Hoje, às 17h30 será o lançamento do referido relatório, em Lisboa, no MUDE. Calendário das apresentações pelo país:  


Quem nasceu no lado rico do planeta tende a banalizar e subestimar a sua situação de privilégio, apesar dos problemas que lhe calhem em sorte, porque ninguém está imune às dificuldades. Não existe o paraíso na terra, ainda que se vivam momentos sublimes. Por isso, Quem se prepara para nascer impotente, insignificante e paupérrimo num lugarejo perdido, como lembramos na Noite Santa, será a nossa melhor ajuda para vermos mais, percebermos melhor e dispormo-nos a fazer a nossa parte, com gente de carne-e-osso ao nosso lado.   

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

19 novembro 2024

Da solidão

Dubai, Junho de 2024

Eu sou uma fazedora. E não imagino como vai ser quando deixar de poder fazer. 

Não cito a frase verbatim, mas o espírito é este. Oiço-a de uma querida amiga com quem almocei a semana passada numa esplanada de bairro. O dia está simpático e alongamo-nos na conversa: as vidas de algumas pessoas que nos estão mais próximas, as nossas próprias vidas, o futuro possível, os projectos para os dias que estão para chegar. Falamos de solidão: dos que a têm e reconhecem, dos que a não têm, dos que dizem que a não têm, do que significa, na verdade, solidão. 

Para esta minha amiga, a angústia (a palavra é minha) está no já não poder fazer. Para o meu Pai, que se manteve totalmente lúcido até à antevéspera de morrer, aos 94 anos, o desânimo instalou-se no momento em que perdeu a autonomia, quando deixou de poder apanhar transportes públicos para ir onde quisesse. Para um amigo mais recente, a tristeza está na sua viuvez de meses, na casa onde entra todos os dias e já não encontra ninguém. Para outros, a infelicidade está na ausência de alguém com quem partilhar uma vida ou, numa visão mais modesta, os dias excessivamente longos. 

Um dicionário online diz-nos que solidão é estado do que está só, isolamento. Nunca como hoje se falou tanto de solidão - e ainda bem. Fala-se da solidão dos velhos, abandonados à sua sorte pelo egoísmo ou dificuldades dos mais novos; fala-se da solidão das gerações modernas, jovens enfiados na penumbra dos quartos a comunicarem de forma virtual. Fala-se na enorme solidão de um mundo conectado como nunca. Já o Eça, falando de viagens à Condessa de Ficalho, mencionava a melancolia infinita que inspiram as multidões estranhas, uma certa forma de solidão de quem se sente rodeado de pessoas que não falam a sua língua (e esta expressão língua deve usar-se de modo metafórico). 

Talvez o mal dos tempos modernos não seja a solidão, stricto sensu, mas uma espécie de tristeza que advém da falta de algo. Nada me garante que quem vive sozinho tenha solidão e nada me garante que quem vive sempre em agitação não a tenha. Talvez não devamos falar de solidão, mas de privação ou carência que assumem diversas formas. Ou talvez devêssemos chamar solidão a tudo isto: à perda de actividade profissional ou de autonomia por via da obsolescência ou da velhice, às saudades de alguém importante que morreu, à vida numa casa grande demais porque o telefone não toca. Também poderá ser solidão - neste definição forçosamente ampla a que me atiro - uma vida sonora que não permite, ou que propositadamente evita, a escuta de uma voz interior. 

A conversa com esta minha amiga começou com uma pergunta importante lançada para a mesa: vamos lá definir o que é isso de solidão. 

JdB 

18 novembro 2024

Textos dos dias que correm *

Esperança integral

Ver notícias, ler jornais e conhecer realidades mais ou menos próximas de nós é muitas vezes um exercício de desesperança. As assimetrias multiplicam-se em inúmeros contextos, há uma crescente sensação de insegurança, a polarização instalada vai semeando um clima de discórdia (aparentemente) insanável e fomenta-se a ideia de que os consensos, as realidades co-construídas, e a cooperação, são cada vez mais uma miragem, e nem temos tempo para analisar e assimilar este turbilhão de informação.

Que mundo estamos a construir? O que queremos transmitir aos que virão depois de nós?  Que cultura estamos a deixar às crianças que já habitam este mundo?

As interrogações sobre o que acontece no mundo são muitas e as sucessivas crises económicas, sociais e ambientais do nosso tempo alimentam talvez a maior crise do mundo contemporâneo – a crise da esperança.

Estando em crise, é prioritário resgatá-la. E o mote para esse resgate foi lançado pelo Papa Francisco, em 2022, quando definiu para o ano de Jubileu de 2025 o lema “Peregrinos de esperança”.

Mas que esperança queremos (e precisamos) de resgatar? Não falamos da esperança ligeira, fácil, quase infantil, assente na premissa de que tudo ficará “bem” de forma imediata, com concretizações abstratas. É-nos mesmo quase insuportável, olhando e escutando para a realidade, o discurso de uma esperança express, ou on demand.

A esperança que cremos que o mundo precisa de resgatar é uma esperança humilde, silenciosa e esclarecida, capaz de aceitar o momento de desesperança presente, mas que, tal como um peregrino, se compromete com o destino, caminha e aceita que a dificuldade e o sofrimento farão parte do processo. É também paciente, confronta-nos com a nossa vulnerabilidade e apresenta-nos a fragilidade dos outros.

Como disse Tolentino, “S. Paulo é um oportuno mestre da esperança”. E as suas cartas são expressão de uma espera encarnada que me têm servido como guia (ou mesmo manual técnico) para este resgate do verdadeiro sentido da esperança que tenho tentado concretizar e que acredito que precisamos de fomentar. S. Paulo projeta a esperança em Deus, no futuro, na salvação que virá, mas anima-a no presente, no quotidiano, na fidelidade ao ordinário da vida e dá-nos pistas muito concretas de como podemos agir e amadurecer o nosso sentido da esperança.

Este realismo da espera no presente, que necessita de todos os sentidos despertos, remete-nos para a ideia de integralidade, e que é a chave para as respostas que precisamos para os desafios do nosso tempo. Olhar a realidade como um todo e para os desafios de forma concertada é o ponto de partida para uma sociedade mais justa social, económica e ambientalmente.

A “esperança integral” tem tradução num amor “que tudo desculpa, tudo espera, tudo suporta”, e pode ser traduzida na paz, na oração, na alegria, nas relações familiares, na vida laboral, nos mercados, nas políticas públicas. E que perante a dureza das situações nos vai abrindo uma porta de possibilidades escondidas que o turvo da desesperança não nos permitia observar.

E é esta a semente que gostava de lançar para o tempo do Ano Santo que estamos prestes a iniciar – descobrir e alimentar uma esperança esclarecida, madura, que olhando de forma integral para a realidade abre caminhos para novos entendimentos e novas perspetivas (mais criativas) para dar resposta aos desafios do nosso tempo.

Em 2025, celebraremos também os 10 anos da encíclica Laudato Si’ e os 800 anos do Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis, dois sinais de esperança em dois momentos históricos distintos. Que este tempo seja uma oportunidade de redescoberta da esperança como dom do Espírito, que é difícil de reconhecer na adversidade, mas que é o que nos conforta e garante.

Margarida Ferreira Marques
* Publicado no Ponto SJ, o portal dos jesuítas em Portugal (https://pontosj.pt/opiniao/esperanca-integral/)

17 novembro 2024

XXXIII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Marcos 13,24-32

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Naqueles dias, depois de uma grande aflição,
o sol escurecerá e a lua não dará a sua claridade;
as estrelas cairão do céu
e as forças que há nos céus serão abaladas.
Então, hão de ver o Filho do homem vir sobre as nuvens,
com grande poder e glória.
Ele mandará os Anjos,
para reunir os seus eleitos dos quatro pontos cardeais,
da extremidade da terra à extremidade do céu.
Aprendei a parábola da figueira:
quando os seus ramos ficam tenros e brotam as folhas,
sabeis que o Verão está próximo.
Assim também, quando virdes acontecer estas coisas,
sabei que o Filho do homem está perto, está mesmo à porta.
Em verdade vos digo:
Não passará esta geração sem que tudo isto aconteça.
Passará o céu e a terra,
mas as minhas palavras não passarão.
Quanto a esse dia e a essa hora, ninguém os conhece:
nem os Anjos do Céu, nem o Filho;
só o Pai».

15 novembro 2024

Do que se fotografa *

 Retomo, em tempos de pandemia e quarentena, a leitura de Imagens Imaginadas, de Pedro Mexia (Tinta da China, 2019). Em Momentos Kodak (pg. 100) é citada Nancy Martha West, autora de Kodak and the Lens of Nostalgia (2000):

"As pessoas que tiram fotografias rápidas usam a fotografia como forma de evitar, e até de negar, as memórias dolorosas, nomeadamente a memória da morte de uma pessoa amada. Tiram quase exclusivamente fotos de momentos felizes, e usam essas fotos como modo de reconstruir a sua história através da narrativa de prazeres e afectos 'intemporais', tentando assim consagrar um futuro não maculado pelo sofrimento, e no qual nos lembramos de momentos em que de algum modo escapámos ao sofrimento e à perda."

Calhou começar a dedicar-me à fotografia de uma forma totalmente amadora (por oposição a experiente, e não a profissional) quando os meus filhos eram crianças. Apesar de haver muitas fotografias banais, de momentos familiares - na praia, numa festa, em férias - o meu prazer consistia em fotografar-lhes os rostos de perto, (quase) sempre com chapéus de adultos, como se transpusesse para eles um gosto (que eles não tinham) e que eu não conseguia satisfazer. Era um tempo, ainda, de felicidade, manchado apenas por trivialidades - um dente partido, uma amigdalite, um febrão extemporâneo. Também nesse tempo, e no decurso de viagens, fotografei muitas paisagens - fotografias normalmente desinteressante, para não dizer más. Não há uma originalidade, um pormenor, uma perspectiva. Tudo, ou quase tudo, poderia ser substituído sem mágoa por postais ilustrados.

Deixei de fotografar rostos há muito tempo: os meus filhos cresceram, e a dimensão de lazer - ou desejo de registo para memória futura - já não faz sentido. As crianças já são outras, são os filhos deles, que eles fotografarão como entenderem, com ou sem chapéu, provavelmente de telemóvel. Continuei, contudo, a dedicar-me à fotografia sempre na dimensão amadora isto é, inexperiente. Como penso já ter dito aqui neste estabelecimento, o meu prazer fotográfico vai agora maioritariamente para os ambientes urbanos: o reflexo de um prédio espelhado, a perspectiva de um claustro, uma assimetria - ou talvez uma simetria - a nota dissonante de um gordo em frente a um ginásio ou de uma anoréctica numa montra pejada de éclairs. Paisagens também, com outra qualidade, confesso. 

Será que Nancy Martha West tem alguma explicação para esta mudança, ou encolheria os ombros, como se faz perante uma banalidade que não merece atenção? Talvez, segundo ela, eu tenha tentado reconstruir a minha história, desejando consagrar um futuro não maculado pelo sofrimento, o que claramente não consegui, ainda que por motivos extemporâneos. Agora procuro olhares sobre a urbe, já não sobre as pessoas, forçosamente transitórias. Talvez seja o desalento, talvez seja um desejo de fixar espaços  que são, pelas circunstâncias, mais perenes. Ou talvez não seja nada disso, o que é mais provável.

JdB

* publicado originalmente a 16 de Março de 2020

13 novembro 2024

Textos dos dias que correm

 A Mentira é a Base da Civilização Moderna

É na faculdade de mentir, que caracteriza a maior parte dos homens actuais, que se baseia a civilização moderna. Ela firma-se, como tão claramente demonstrou Nordau, na mentira religiosa, na mentira política, na mentira económica, na mentira matrimonial, etc... A mentira formou este ser, único em todo o Universo: o homem antipático.

Actualmente, a mentira chama-se utilitarismo, ordem social, senso prático; disfarçou-se nestes nomes, julgando assim passar incógnita. A máscara deu-lhe prestígio, tornando-a misteriosa, e portanto, respeitada. De forma que a mentira, como ordem social, pode praticar impunemente, todos os assassinatos; como utilitarismo, todos os roubos; como senso prático, todas as tolices e loucuras.

A mentira reina sobre o mundo! Quase todos os homens são súbditos desta omnipotente Majestade. Derrubá-la do trono; arrancar-lhe das mãos o ceptro ensaguentado, é a obra bendita que o Povo, virgem de corpo e alma, vai realizando dia a dia, sob a direcção dos grandes mestres de obras, que se chamam Jesus, Buda, Pascal, Spartacus, Voltaire, Rousseau, Hugo, Zola, Tolstoi, Reclus, Bakounine, etc. etc. ...

E os operários que têm trabalhado na obra da Justiça e do Bem, foram os párias da Índia, os escravos de Roma, os miseráveis do bairro de Santo António, os Gavroches, e os moujiks da Rússia nos tempos de hoje. Porque é que só a gente sincera, inculta e bárbara sabe realizar a obra que o génio anuncia? Que intimidade existirá entre Jesus e os rudes pescadores da Galileia? Entre S. Paulo e os escravos de Roma? Entre Danton e os famintos do bairro de Santo António? Entre os párias e Buda? Entre Tolstoi e os selvagens moujiks? A enxada será irmã da pena? A fome de pão parecer-se-à com a fome de luz?... 

Teixeira de Pascoaes, in "A Saudade e o Saudosismo"

12 novembro 2024

Poemas dos dias que correm

Paredão do Estoril, ontem pelas 7.30h da manhã

Biografia

Tenho de inventar a minha vida verdadeira,
está tudo desfeito, tudo por fazer, 
tenho de recompor cada minuto da vida 
e de inventar-lhe o sentido. 
Tenho de encher de sentido o que nunca teve sentido, 
inventar um sentido e pô-lo nas coisas do mundo. 
Dar-lhes esse sentido.

Nasci. Passei por muitas mortes.
E agora tenho de viver.
Viver como quem inventa a vida verdadeira
e a dá ao mundo, assim uma coisa do mundo.

Quero nascer de novo e saber como é que se faz
o ofício de homem com o sentido em si
e com um amor largo no próprio ofício,
quero saber como é o trabalho de estar vivo.

Tenho de inventar a minha vida verdadeira
como quem inventa uma casa para se habitar
num espaço deserto, num mundo perdido.

Herberto Helder, in Do Mundo (1994)

11 novembro 2024

Da curiosidade e do conhecimento

 Sou uma pessoa muito curiosa...

Esta frase, que todos já ouvimos muitas vezes, leva-me sempre a fazer uma pergunta a mim próprio: para que serve a curiosidade? Durante muito tempo alimentei uma convicção de que não pretendo abdicar, nem mesmo tendo ouvido gente culta a tentar-me convencer do contrário. Em bom rigor a tese não é minha, não me atiro tanto para fora de pé... A tese é a de que o conhecimento faz  - ou pode fazer - de nós pessoas melhores. Isto é, há uma certa relação directa entre o que sabemos e a tolerância. 

Há muitas formas de sermos boas pessoas: sendo bons chefes, bons vizinhos, bons Pais, bons cônjuges, bons amigos. O exercício das virtudes junto dos nossos mais próximos é uma condição necessária, ainda que não suficiente, para sermos melhores pessoas. Ora, a nossa humanidade pode provir de inúmeras fontes: da Igreja para quem for crente, da educação recebida em casa, do ambiente em que se cresce, da escola ou da rede social / familiar. Há, no entanto, uma fonte que muito contribui para a tolerância.

A Enciclopédia Católica Popular ensina-nos o que também pode ser a tolerância: [o] respeito pela liberdade e dignidade do próximo, procurando com­preender o que há de verdade nas suas diferentes formas de pensar e de agir, nomeadamente através do diálogo. Este respeito, esta procura da compreensão da verdade do outro, não se constrói apenas em cima do conhecimento, mas assenta - e muito no conhecimento. Não falo apenas do conhecimento académico, mas do conhecimento adquirido através do contacto com os outros, com a diferença de culturas, de geografias, de modos de vida. 

O conhecimento pode não ser mais do que um número de circo, a exibição de uma característica, como escrever-se com as duas mãos em simultâneo ou saber dizer as palavras ao contrário numa fracção de segundos. Na sua vertente mais fútil, o conhecimento é apenas o exercício de uma memória: sei muito porque me lembro de muito; e lembro-me de muito porque tenho uma memória muito boa. 

Ser-se uma pessoa muito curiosa pode não ser mais do que ser-se uma pessoa muito curiosa. O importante perguntar é o que se faz com essa curiosidade. Um dia expliquei a uma amiga chilena quem era Sto. Ireneu - e esse personagem tornou-se uma private joke nossa. Perguntava-me ela muitas vezes: para que me interessa saber quem era Sto. Ireneu? E eu respondia-lhe: imagina que estás um dia com uma pessoa chamada Ireneu. Num instante podes falar-lhe de quem era o bispo e doutor da Igreja Católica. E assim se quebra um gelo...

Identificar Sto. Ireneu encaixa-se na ideia da curiosidade. Sabe-se quem ele era porque se fixou quem ele era. No minuto em que se faz alguma coisa com a ideia - nem que seja, na sua versão mais infantil, pôr uma pessoa a rir - essa curiosidade tornou-se conhecimento. O conhecimento é a curiosidade em movimento, é o estabelecimento de um qualquer comércio humano. Ser-se curioso para consumo próprio é a gula sem o prazer sensorial - serve para quê?

JdB      

10 novembro 2024

XXXII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Marcos 12,38-44

Naquele tempo,
Jesus ensinava a multidão, dizendo:
«Acautelai-vos dos escribas,
que gostam de exibir longas vestes,
de receber cumprimentos nas praças,
de ocupar os primeiros assentos nas sinagogas
e os primeiros lugares nos banquetes.
Devoram as casas das viúvas
com pretexto de fazerem longas rezas.
Estes receberão uma sentença mais severa».
Jesus sentou-Se em frente da arca do tesouro
a observar como a multidão deixava o dinheiro na caixa.
Muitos ricos deitavam quantias avultadas.
Veio uma pobre viúva
e deitou duas pequenas moedas, isto é, um quadrante.
Jesus chamou os discípulos e disse-lhes:
«Em verdade vos digo:
Esta pobre viúva deitou na caixa mais do que todos os outros.
Eles deitaram do que lhes sobrava,

mas ela, na sua pobreza, ofereceu tudo o que tinha, 
tudo o que possuía para viver». 

07 novembro 2024

Poemas dos dias que correm *

Honolulu, Waikiki, Outubro de 2024

We will replace lost lovers 

Não vou perder tempo a procurar amores perdidos,
perdidos na adolescência, na praia,
na floresta, noutros olhos, noutras bocas, noutros corações,
vou ao funeral, levarei flores, as preferidas, três dias de luto,
vou guardar só as boas memórias, as memórias boas,
vou deixar doer até a dor desaparecer,
morrer à míngua como sem água uma planta num vaso,
vou visitar velhos amantes,
jóias sem par, de pôr e tirar,
brincos, botões de punho, anéis de pedras perdidas,
camas onde tenho sempre lugar,
corpos que me protegem em concha,
bocas que beijam os meus defeitos,
vou olhar com olhos em cio todos os habitantes da cidade,
e no olhar mais brilhante encontrar um novo amante,
a quem vou, uma vez mais, chamar amor
e amar, poro a poro, sem pudor e sem decoro,
como um dia amei os meus amores perdidos.

Raquel Serejo Martins

***

Realismo mágico

51 anos, 9 meses e 4 dias
foi quanto durou o amor em tempos de cólera,
enquanto eu, que ainda não apaguei 51 velas,
em tempos de prosperidade e bonança,
não consegui amar e ser amado,
por mais de uma década,
somados, os dedos das minhas mãos,
um amor adolescente,
dois casamentos desfeitos,
quase 100 anos de solidão.

Raquel Serejo Martins

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Poeta apresentada por mão amiga

06 novembro 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

 COMO UM FAMOSO ‘PIANO BRANCO’ SE ESQUIVOU AO COMUNISMO

A atribulada história do piano de cauda – da marca austríaca Bösendorfer, chamado “branco” pela raridade de ter mantido a cor clara da madeira original – espelha com pica as convulsões vividas na Europa de Leste, ao longo do problemático século XX. Ali se fizeram sentir com particular intensidade os efeitos da queda do Império Austro-Húngaro, no final da Primeira Guerra Mundial e a consequente alteração de fronteiras, que ainda hoje alimentam traumas na região. Seguiu-se a invasão nazi e a devastação provocada pela Segunda Guerra Mundial, especialmente encarniçada naqueles países. 

As ruínas deixadas pela guerra facilitaram a posterior conquista do Leste europeu pelo Exército Vermelho, primeiro com governos fantoches, depois com uma ocupação militar russa explícita. Sem a mínima liberdade de movimentos dentro do seu próprio país, as populações ficaram aprisionadas no lado errado da Cortina de Ferro. Metade vigiava, denunciava e assim subjugava a outra metade, mantendo um status quo de cárcere à escala nacional. 

Só a implosão do império soviético libertou do jugo russo aqueles povos acoplados ao Pacto de Varsóvia, devolvendo-lhes a soberania, os direitos de cidadania dos povos livres e perspectivas de prosperidade. 

As aventuras do “piano branco” confirmam a violência dessa sequência sanguinária, que varreu a Europa Central e a Hungria em particular, durante a maior parte do século passado. Depois de o Bösendorfer sobreviver aos nazis, que tinham instalado um quartel-general na casa dos Hubay, a família percebeu que o piano não resistiria ao regime comunista, recém-instalado em Budapeste, para tornar o país num satélite obediente aos ditames do Kremlin.  

Aperceberam-se de quanto a liberdade recuperada após a derrota de Hitler recuara drasticamente, logo que as movimentações partidárias pró-comunistas prepararam a entrada das tropas soviéticas, que não hesitaram em estender os seus tentáculos até à linha percorrida no caminho para o assalto a Berlim (em Abril de 1945). Restou aos Hubay fugir da sua pátria, antecipando o fecho radical de fronteiras, instaurado pouco depois. 

Sem condições para levar o portentoso instrumento musical, de que era herdeiro o artista plástico Andor Hubay Cebrian, ocorreu-lhe deixá-lo à guarda da Embaixada norte-americana em Budapeste, que o recebeu de bom grado, ciente do valor daquela peça feita por artesãos muito qualificados, ao longo de 6 anos. Num ápice, o Bösendorfer converteu-se na coqueluche daquela Missão Diplomática, que o estimou durante várias décadas. 

Quando a Hungria se libertou do jugo soviético e recuperou a independência (com eleições livres, em Março de 1990), grande parte dos bens e do património imobiliário expropriado (parcialmente pelos nazis e integralmente pelos comunistas) foi devolvido aos antigos donos. Nessa sequência, os descendentes do pintor Hubay contactaram a Embaixada dos EUA para reaverem o raríssimo piano. Para surpresa sua, foram precisos anos de negociações até ser acordada uma solução salomónica com a Embaixada, traduzindo-se na transferência do “piano branco” para o Museu de Musicologia de Budapeste, onde permanece.  

O famoso piano Hubay, que permaneceu na Embaixada dos EUA em Budapeste, por décadas, até à transferÊncia para o Museu de Musicoloia, a 6.FEV.2014.
Photo: da dta. para a esq.: Cultural Attache Dmitri Tarakhovsky, Laszlo Hubay, Public Affairs Counselor Karyn A. Posner-Mullen, Charge d’Affaires  M. André Goodfriend, and a representative of the Museum of Musicology with the piano (Embassy photo by Attila Németh) 

Quando fugiram à ocupação soviética da Hungria, os Hubay rumaram à Noruega, pátria da senhora Edle Astrup Hubay Cedrian (Noruega 1905-1989, em Portugal), que se tinha destacado pela elegância e cultura nos salões da elite húngara. Foi naquele país nórdico que Hubay recebeu um convite da Vista Alegre para ser Director Artístico e igualmente uma proposta para leccionar numa universidade norte-americana.  Sem vontade de deixar a Europa e querendo ganhar distância da perigosa URSS, a família optou por Portugal, onde ficou até ao fim dos seus dias. Aqui escreveu a mulher de Hubay, Edle, uma autobiografia – «Uma Vontade Indomável. De Budapeste ao Estoril» – onde conta as peripécias da família, começando pelas dificuldades vividas na Hungria do pós-guerra. Um par de páginas são dedicadas a Portugal. O seu testemunho interpelativo ajuda (creio) a perceber a história do país: 

Andor, Rozann e Edle - Noruega, 1952

EXCERTO DA AUTOBIOGRAFIA DE EDLER

«A sua fama [de Andor, o marido], entretanto, chegava além-fronteiras. Em 1952, recebeu, quase em simultâneo, duas propostas: a primeira vinha da Universidade americana de Pittsburg, e propunha-lhe uma cátedra de ensino de arte. A segunda, oriunda de Portugal, oferecia-lhe o lugar de director artístico da fábrica de porcelana Vista Alegre.

Quanto à decisão tomada, confesso-me totalmente responsável. Não queria, em circunstâncias nenhumas, ir para os Estados Unidos. Em Portugal, ao menos, estaríamos longe dos russos e dos comunistas…

Como é que eu posso descrever os muitos anos que vivemos em Portugal? Aprendemos a amar um novo país, ao mesmo tempo que nos apaixonámos pelos portugueses. No entanto, a nossa impressão era de que o tempo parara, no que dizia respeito ao Governo e à classe alta. Como se tivessem sido enfeitiçados nalgum castelo de uma Bela Adormecida. Se não tivéssemos já testemunhado o reverso da medalha na nossa dolorosa experiência de vida, talvez não tivéssemos dado pelo pequeno mal-estar que dormia por debaixo da superfície aparentemente tranquila. 

Edle em Olhão, 1952, numa série Produção de moda. Fotografia de Henry Clarke

Na fábrica da Vista Alegre, Andor iniciou, cautelosamente, um processo de modernização e melhoramentos. Mas esbarrou sempre com alguma hostilidade por parte dos proprietários. Como é evidente, não estávamos em situação – nem tínhamos esse propósito – de fazer uma revolução. O meu marido queria apenas melhorar algumas condições de trabalho. Criou-se uma situação um tanto incómoda entre Andor e a gerência da fábrica, e ele demitiu-se. Continuou, no entanto, ligado à parte artística até 1958, altura em que aquela fábrica já gozava de grande prestígio internacional.

Com a ajuda do nosso amigo Salvador Corrêa de Sá, Visconde de Soveral, fomos, então, viver para o Estoril. Andor ensinava desenho e pintura na Escola Americana, e também a filhos de alguns dos nossos novos amigos, e era treinador de futebol no colégio inglês St. Julian’s. Eu sei que ele sempre gostou muito de futebol, mas daí a ser treinador… isso confesso que me surpreendeu bastante!

Em 23 de Outubro de 1956, o povo húngaro subleva-se, em mais uma clara demonstração de repúdio pelo regime comunista que lhe é imposto. O mundo assiste, em desespero, à chacina de centenas de húngaros. Em Portugal, uma velada que reuniu milhares de pessoas desfilou pela baixa até aos Paços do Concelho, em apoio ao povo húngaro.

Andor fazia parte do grupo que apoiava o governo húngaro no exílio. Constantes telefonemas para Budapeste tornam-no suspeito. A PIDE vem buscá-lo para interrogatório e, durante três dias, a família não sabe nada dele. Uma vez mais, o seu amigo Corrêa de Sá, amigo de Salazar, vem em seu auxílio. Andor volta nesse mesmo dia para casa, conduzido num Mercedes negro com motorista. Risonho, conta-nos que foi, apenas, interrogado. “Comparada com os comunistas russos, a PIDE é um bebé de berço! – graças a Deus.”

Depois de ter feito o ensino secundário no St. Julian’s, Rozann casou em Oslo, em casa do meu irmão, numa festa que durou três dias. Um verdadeiro casamento cigano! O marido, o barão austríaco Giselbert von Schmidburg, era director de um banco, em Bruxelas, e foi para lá que eles foram viver. Lászlo, terminado o Colégio St. Columban’s, foi cursar gestão na Universidade de St. Gallen, na Suíça.

De vez em quando, em ocasiões especiais como o Natal ou a Páscoa, ou durante as férias de Verão, os meus filhos vinham a casa. Eram momentos inesquecíveis, de grande alegria. Por essa altura, estavam em Portugal outros refugiados húngaros e convivíamos muito com eles. O regente Horthy, a mulher e o filho sobrevivente, Nicky, a nora Illy, o irmão de Otto Habsburg, o sobrinho Joseph e Maria, sua mulher. Nossos amigos eram também os Condes de Barcelona e os seus filhos. O actual rei de Espanha, da mesma idade de Rozann, passava muitos dias em nossa casa.»

Excerto de «Uma Vontade Indomável. De Budapeste ao Estoril», 
Edição da Oficina do Livro, 2003; tradução 
do original inglês assegurada por Manuela de Sousa Rama.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

04 novembro 2024

Carta a um anjo

Foi hoje, mas há 23 anos.

*** 

Parece um começo de história humorística, mas não é: à volta de uma mesa estou eu, uma australiana, uma chilena e uma grega. A unir-nos, para além de uma amizade e de um voluntariado na mesma organização internacional, o facto de termos passado pelo desafio de um filho com cancro. O filho da australiana é um sobrevivente (para usar uma palavra do nosso léxico) que tem uma autonomia mais limitada; o filho da chilena é também um sobrevivente (que eu conheço, e que já é um querido amigo) que teve 3 ou 4 recaídas; é um recém-psicólogo, com uma especialidade em psico-oncologia. Por último, a grega e eu somos Pais enlutados (mais uma expressão do nosso léxico). 

À volta da mesma mesa falamos de religião. Todos fomos educados na Igreja, seja a Católica, a Ortodoxa Grega ou a Anglicana. Todas estas minhas amigas estão afastadas da prática, talvez pelos mesmos motivos: numa dada fase das suas vidas, a Igreja, a religião, a Fé, a ideia de Deus ou o clero, deixaram de dizer-lhes alguma coisa. O diagnóstico, a recuperação ou a morte de um filho pequeno com cancro não constituíram motivo suficiente para que se reaproximassem, muito pelo contrário. Talvez tenham rezado, naquele instinto primitivo de olharem para cima, onde sempre está o Céu e o Deus que nos é comum, a pedirem pelos seus filhos. Entradas na rotina do quotidiano, seja na vigilância atenta dos filhos, seja no luto que sempre fica connosco, perderam esse olhar vertical que nos liga ao Divino e permaneceram no olhar horizontal que nos limita ao terreno. Em todas elas o mesmo espanto, a mesma incredulidade, a mesma espécie de revolta mansa que é, tantas vezes, a justificação para um afastamento já existente: como pôde Deus deixar que isto tivesse acontecido? Em todas elas o mesmo pasmo quando lhes respondo: Deus nada tem a ver com isto

Dir-me-ão que quatro crentes à volta de uma mesa a falarem de fé ou de Deus não é uma amostra significativa. Mas se pensarmos que são quatro pais / mães de crianças com cancro, a amostra passa a ser significativa. Quem, de entre nós, tem o privilégio - até estatístico, se o quisermos - de encontrar um grupo tão semelhante na sua tragédia, na sua luta, no sentido que quiseram dar a tudo? Por isso a pergunta justifica-se: o que fez de nós e por nós a educação religiosa que tivemos na infância e juventude? Em que nos ajudou a enfrentar a pergunta - como pôde Deus deixar que isto tivesse acontecido? - cuja resposta não ouvimos, ou cuja resposta é manifestamente insuficiente para nos calar uma revolta possível ou para nos consolar um choro certo? A ideia de que Deus tudo pode, de que Deus é Pai, de que Deus recompensa se rezarmos muito ou se nos portarmos bem, de que os desígnios de Deus são imperscrutáveis e de que há milagres que salvam outras crianças, é suficiente? Mais do que isso: será essa ideia reconfortante - diria mesmo, pedagógica? É pedagógico levarmos à letra o Cardeal Gonzaga (A Ceia dos Cardeais, Júlio Dantas) no seu lamento por um amor de infância abruptamente ceifado: Deus, se ma quis tirar, p'ra que foi que ma deu? / Para quê? Para quê? A frase é bonita e poética, e isso seria suficiente, mas a realidade é outra: Deus não deu, e por isso Deus não tirou. 

Há 9 anos, aquando da morte injusta do Pe. Ricardo, com pouco mais de 40 anos, escrevi o seguinte:  não quero que me falem de vida eterna, da dimensão teológica da morte, da inevitabilidade que nos toca a todos, de Jesus Cristo que a venceu. Talvez gostasse que nos sentássemos e reconhecêssemos a nossa pequenez, a nossa tristeza, a nossa incredulidade - talvez até a nossa perplexidade ou mesmo o sentido de injustiça de tudo. Ontem, à hora a que escrevia, não queria palavras piedosas nem cheias de esperança num futuro de uma dimensão superior. Talvez quisesse que alguém me dissesse, cheio de uma humanidade frágil e reconfortante: a gente não percebe nada disto... 

Por essa altura eu lia A Peste, de Camus, e sentia bem fundo a passagem seguinte: [o] padre Paneloux recusava até as oportunidades que lhe permitissem escalar a muralha. Ter-lhe-ia sido fácil dizer que a eternidade das delícias que esperavam a criança podiam compensar o seu sofrimento, mas, na verdade, ele nada sabia. Com efeito, quem podia afirmar que a eternidade de uma alegria podia compensar um instante de dor humana? Conforta-me um padre que nada sabe, porque só os sábios têm dúvidas.

Para as minhas amigas australiana, chilena e grega (e sabe Deus se para tantas outras, de outras geografias) a religião (num sentido genérico) não as confortou, como não confortou a ideia que faziam (ou que tinham aprendido) de um Deus que tudo pode, tudo consegue, que faz milagres, que vence as doenças do corpo, que responde às nossas orações com manifestações tangíveis e visíveis. Eu tive mais sorte: à morte maior da minha vida correspondeu a consciência da inocência de Deus. À morte maior da minha vida correspondeu a consciência de que há tragédias que estão no domínio da Natureza ou no domínio do Homem; no domínio de Deus talvez esteja o que fazemos com o que nos acontece, como transformamos a nossa escuridão em luz para os outros, como encontramos um sentido para o que parece não ter sentido. À morte maior da minha vida correspondeu a consciência de que os milagres não são os do corpo, mas os da alma. A alegria de acreditar em Deus não está na crença de que Ele pode impedir a morte maior da minha vida, mas na certeza de que Ele me ajuda a enfrentar a morte maior da minha vida e com isso fazer qualquer coisa, por mais pouco que seja. 

J, em nome de todos os que te lembram.

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