06 novembro 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

 COMO UM FAMOSO ‘PIANO BRANCO’ SE ESQUIVOU AO COMUNISMO

A atribulada história do piano de cauda – da marca austríaca Bösendorfer, chamado “branco” pela raridade de ter mantido a cor clara da madeira original – espelha com pica as convulsões vividas na Europa de Leste, ao longo do problemático século XX. Ali se fizeram sentir com particular intensidade os efeitos da queda do Império Austro-Húngaro, no final da Primeira Guerra Mundial e a consequente alteração de fronteiras, que ainda hoje alimentam traumas na região. Seguiu-se a invasão nazi e a devastação provocada pela Segunda Guerra Mundial, especialmente encarniçada naqueles países. 

As ruínas deixadas pela guerra facilitaram a posterior conquista do Leste europeu pelo Exército Vermelho, primeiro com governos fantoches, depois com uma ocupação militar russa explícita. Sem a mínima liberdade de movimentos dentro do seu próprio país, as populações ficaram aprisionadas no lado errado da Cortina de Ferro. Metade vigiava, denunciava e assim subjugava a outra metade, mantendo um status quo de cárcere à escala nacional. 

Só a implosão do império soviético libertou do jugo russo aqueles povos acoplados ao Pacto de Varsóvia, devolvendo-lhes a soberania, os direitos de cidadania dos povos livres e perspectivas de prosperidade. 

As aventuras do “piano branco” confirmam a violência dessa sequência sanguinária, que varreu a Europa Central e a Hungria em particular, durante a maior parte do século passado. Depois de o Bösendorfer sobreviver aos nazis, que tinham instalado um quartel-general na casa dos Hubay, a família percebeu que o piano não resistiria ao regime comunista, recém-instalado em Budapeste, para tornar o país num satélite obediente aos ditames do Kremlin.  

Aperceberam-se de quanto a liberdade recuperada após a derrota de Hitler recuara drasticamente, logo que as movimentações partidárias pró-comunistas prepararam a entrada das tropas soviéticas, que não hesitaram em estender os seus tentáculos até à linha percorrida no caminho para o assalto a Berlim (em Abril de 1945). Restou aos Hubay fugir da sua pátria, antecipando o fecho radical de fronteiras, instaurado pouco depois. 

Sem condições para levar o portentoso instrumento musical, de que era herdeiro o artista plástico Andor Hubay Cebrian, ocorreu-lhe deixá-lo à guarda da Embaixada norte-americana em Budapeste, que o recebeu de bom grado, ciente do valor daquela peça feita por artesãos muito qualificados, ao longo de 6 anos. Num ápice, o Bösendorfer converteu-se na coqueluche daquela Missão Diplomática, que o estimou durante várias décadas. 

Quando a Hungria se libertou do jugo soviético e recuperou a independência (com eleições livres, em Março de 1990), grande parte dos bens e do património imobiliário expropriado (parcialmente pelos nazis e integralmente pelos comunistas) foi devolvido aos antigos donos. Nessa sequência, os descendentes do pintor Hubay contactaram a Embaixada dos EUA para reaverem o raríssimo piano. Para surpresa sua, foram precisos anos de negociações até ser acordada uma solução salomónica com a Embaixada, traduzindo-se na transferência do “piano branco” para o Museu de Musicologia de Budapeste, onde permanece.  

O famoso piano Hubay, que permaneceu na Embaixada dos EUA em Budapeste, por décadas, até à transferÊncia para o Museu de Musicoloia, a 6.FEV.2014.
Photo: da dta. para a esq.: Cultural Attache Dmitri Tarakhovsky, Laszlo Hubay, Public Affairs Counselor Karyn A. Posner-Mullen, Charge d’Affaires  M. André Goodfriend, and a representative of the Museum of Musicology with the piano (Embassy photo by Attila Németh) 

Quando fugiram à ocupação soviética da Hungria, os Hubay rumaram à Noruega, pátria da senhora Edle Astrup Hubay Cedrian (Noruega 1905-1989, em Portugal), que se tinha destacado pela elegância e cultura nos salões da elite húngara. Foi naquele país nórdico que Hubay recebeu um convite da Vista Alegre para ser Director Artístico e igualmente uma proposta para leccionar numa universidade norte-americana.  Sem vontade de deixar a Europa e querendo ganhar distância da perigosa URSS, a família optou por Portugal, onde ficou até ao fim dos seus dias. Aqui escreveu a mulher de Hubay, Edle, uma autobiografia – «Uma Vontade Indomável. De Budapeste ao Estoril» – onde conta as peripécias da família, começando pelas dificuldades vividas na Hungria do pós-guerra. Um par de páginas são dedicadas a Portugal. O seu testemunho interpelativo ajuda (creio) a perceber a história do país: 

Andor, Rozann e Edle - Noruega, 1952

EXCERTO DA AUTOBIOGRAFIA DE EDLER

«A sua fama [de Andor, o marido], entretanto, chegava além-fronteiras. Em 1952, recebeu, quase em simultâneo, duas propostas: a primeira vinha da Universidade americana de Pittsburg, e propunha-lhe uma cátedra de ensino de arte. A segunda, oriunda de Portugal, oferecia-lhe o lugar de director artístico da fábrica de porcelana Vista Alegre.

Quanto à decisão tomada, confesso-me totalmente responsável. Não queria, em circunstâncias nenhumas, ir para os Estados Unidos. Em Portugal, ao menos, estaríamos longe dos russos e dos comunistas…

Como é que eu posso descrever os muitos anos que vivemos em Portugal? Aprendemos a amar um novo país, ao mesmo tempo que nos apaixonámos pelos portugueses. No entanto, a nossa impressão era de que o tempo parara, no que dizia respeito ao Governo e à classe alta. Como se tivessem sido enfeitiçados nalgum castelo de uma Bela Adormecida. Se não tivéssemos já testemunhado o reverso da medalha na nossa dolorosa experiência de vida, talvez não tivéssemos dado pelo pequeno mal-estar que dormia por debaixo da superfície aparentemente tranquila. 

Edle em Olhão, 1952, numa série Produção de moda. Fotografia de Henry Clarke

Na fábrica da Vista Alegre, Andor iniciou, cautelosamente, um processo de modernização e melhoramentos. Mas esbarrou sempre com alguma hostilidade por parte dos proprietários. Como é evidente, não estávamos em situação – nem tínhamos esse propósito – de fazer uma revolução. O meu marido queria apenas melhorar algumas condições de trabalho. Criou-se uma situação um tanto incómoda entre Andor e a gerência da fábrica, e ele demitiu-se. Continuou, no entanto, ligado à parte artística até 1958, altura em que aquela fábrica já gozava de grande prestígio internacional.

Com a ajuda do nosso amigo Salvador Corrêa de Sá, Visconde de Soveral, fomos, então, viver para o Estoril. Andor ensinava desenho e pintura na Escola Americana, e também a filhos de alguns dos nossos novos amigos, e era treinador de futebol no colégio inglês St. Julian’s. Eu sei que ele sempre gostou muito de futebol, mas daí a ser treinador… isso confesso que me surpreendeu bastante!

Em 23 de Outubro de 1956, o povo húngaro subleva-se, em mais uma clara demonstração de repúdio pelo regime comunista que lhe é imposto. O mundo assiste, em desespero, à chacina de centenas de húngaros. Em Portugal, uma velada que reuniu milhares de pessoas desfilou pela baixa até aos Paços do Concelho, em apoio ao povo húngaro.

Andor fazia parte do grupo que apoiava o governo húngaro no exílio. Constantes telefonemas para Budapeste tornam-no suspeito. A PIDE vem buscá-lo para interrogatório e, durante três dias, a família não sabe nada dele. Uma vez mais, o seu amigo Corrêa de Sá, amigo de Salazar, vem em seu auxílio. Andor volta nesse mesmo dia para casa, conduzido num Mercedes negro com motorista. Risonho, conta-nos que foi, apenas, interrogado. “Comparada com os comunistas russos, a PIDE é um bebé de berço! – graças a Deus.”

Depois de ter feito o ensino secundário no St. Julian’s, Rozann casou em Oslo, em casa do meu irmão, numa festa que durou três dias. Um verdadeiro casamento cigano! O marido, o barão austríaco Giselbert von Schmidburg, era director de um banco, em Bruxelas, e foi para lá que eles foram viver. Lászlo, terminado o Colégio St. Columban’s, foi cursar gestão na Universidade de St. Gallen, na Suíça.

De vez em quando, em ocasiões especiais como o Natal ou a Páscoa, ou durante as férias de Verão, os meus filhos vinham a casa. Eram momentos inesquecíveis, de grande alegria. Por essa altura, estavam em Portugal outros refugiados húngaros e convivíamos muito com eles. O regente Horthy, a mulher e o filho sobrevivente, Nicky, a nora Illy, o irmão de Otto Habsburg, o sobrinho Joseph e Maria, sua mulher. Nossos amigos eram também os Condes de Barcelona e os seus filhos. O actual rei de Espanha, da mesma idade de Rozann, passava muitos dias em nossa casa.»

Excerto de «Uma Vontade Indomável. De Budapeste ao Estoril», 
Edição da Oficina do Livro, 2003; tradução 
do original inglês assegurada por Manuela de Sousa Rama.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

04 novembro 2024

Carta a um anjo

Foi hoje, mas há 23 anos.

*** 

Parece um começo de história humorística, mas não é: à volta de uma mesa estou eu, uma australiana, uma chilena e uma grega. A unir-nos, para além de uma amizade e de um voluntariado na mesma organização internacional, o facto de termos passado pelo desafio de um filho com cancro. O filho da australiana é um sobrevivente (para usar uma palavra do nosso léxico) que tem uma autonomia mais limitada; o filho da chilena é também um sobrevivente (que eu conheço, e que já é um querido amigo) que teve 3 ou 4 recaídas; é um recém-psicólogo, com uma especialidade em psico-oncologia. Por último, a grega e eu somos Pais enlutados (mais uma expressão do nosso léxico). 

À volta da mesma mesa falamos de religião. Todos fomos educados na Igreja, seja a Católica, a Ortodoxa Grega ou a Anglicana. Todas estas minhas amigas estão afastadas da prática, talvez pelos mesmos motivos: numa dada fase das suas vidas, a Igreja, a religião, a Fé, a ideia de Deus ou o clero, deixaram de dizer-lhes alguma coisa. O diagnóstico, a recuperação ou a morte de um filho pequeno com cancro não constituíram motivo suficiente para que se reaproximassem, muito pelo contrário. Talvez tenham rezado, naquele instinto primitivo de olharem para cima, onde sempre está o Céu e o Deus que nos é comum, a pedirem pelos seus filhos. Entradas na rotina do quotidiano, seja na vigilância atenta dos filhos, seja no luto que sempre fica connosco, perderam esse olhar vertical que nos liga ao Divino e permaneceram no olhar horizontal que nos limita ao terreno. Em todas elas o mesmo espanto, a mesma incredulidade, a mesma espécie de revolta mansa que é, tantas vezes, a justificação para um afastamento já existente: como pôde Deus deixar que isto tivesse acontecido? Em todas elas o mesmo pasmo quando lhes respondo: Deus nada tem a ver com isto

Dir-me-ão que quatro crentes à volta de uma mesa a falarem de fé ou de Deus não é uma amostra significativa. Mas se pensarmos que são quatro pais / mães de crianças com cancro, a amostra passa a ser significativa. Quem, de entre nós, tem o privilégio - até estatístico, se o quisermos - de encontrar um grupo tão semelhante na sua tragédia, na sua luta, no sentido que quiseram dar a tudo? Por isso a pergunta justifica-se: o que fez de nós e por nós a educação religiosa que tivemos na infância e juventude? Em que nos ajudou a enfrentar a pergunta - como pôde Deus deixar que isto tivesse acontecido? - cuja resposta não ouvimos, ou cuja resposta é manifestamente insuficiente para nos calar uma revolta possível ou para nos consolar um choro certo? A ideia de que Deus tudo pode, de que Deus é Pai, de que Deus recompensa se rezarmos muito ou se nos portarmos bem, de que os desígnios de Deus são imperscrutáveis e de que há milagres que salvam outras crianças, é suficiente? Mais do que isso: será essa ideia reconfortante - diria mesmo, pedagógica? É pedagógico levarmos à letra o Cardeal Gonzaga (A Ceia dos Cardeais, Júlio Dantas) no seu lamento por um amor de infância abruptamente ceifado: Deus, se ma quis tirar, p'ra que foi que ma deu? / Para quê? Para quê? A frase é bonita e poética, e isso seria suficiente, mas a realidade é outra: Deus não deu, e por isso Deus não tirou. 

Há 9 anos, aquando da morte injusta do Pe. Ricardo, com pouco mais de 40 anos, escrevi o seguinte:  não quero que me falem de vida eterna, da dimensão teológica da morte, da inevitabilidade que nos toca a todos, de Jesus Cristo que a venceu. Talvez gostasse que nos sentássemos e reconhecêssemos a nossa pequenez, a nossa tristeza, a nossa incredulidade - talvez até a nossa perplexidade ou mesmo o sentido de injustiça de tudo. Ontem, à hora a que escrevia, não queria palavras piedosas nem cheias de esperança num futuro de uma dimensão superior. Talvez quisesse que alguém me dissesse, cheio de uma humanidade frágil e reconfortante: a gente não percebe nada disto... 

Por essa altura eu lia A Peste, de Camus, e sentia bem fundo a passagem seguinte: [o] padre Paneloux recusava até as oportunidades que lhe permitissem escalar a muralha. Ter-lhe-ia sido fácil dizer que a eternidade das delícias que esperavam a criança podiam compensar o seu sofrimento, mas, na verdade, ele nada sabia. Com efeito, quem podia afirmar que a eternidade de uma alegria podia compensar um instante de dor humana? Conforta-me um padre que nada sabe, porque só os sábios têm dúvidas.

Para as minhas amigas australiana, chilena e grega (e sabe Deus se para tantas outras, de outras geografias) a religião (num sentido genérico) não as confortou, como não confortou a ideia que faziam (ou que tinham aprendido) de um Deus que tudo pode, tudo consegue, que faz milagres, que vence as doenças do corpo, que responde às nossas orações com manifestações tangíveis e visíveis. Eu tive mais sorte: à morte maior da minha vida correspondeu a consciência da inocência de Deus. À morte maior da minha vida correspondeu a consciência de que há tragédias que estão no domínio da Natureza ou no domínio do Homem; no domínio de Deus talvez esteja o que fazemos com o que nos acontece, como transformamos a nossa escuridão em luz para os outros, como encontramos um sentido para o que parece não ter sentido. À morte maior da minha vida correspondeu a consciência de que os milagres não são os do corpo, mas os da alma. A alegria de acreditar em Deus não está na crença de que Ele pode impedir a morte maior da minha vida, mas na certeza de que Ele me ajuda a enfrentar a morte maior da minha vida e com isso fazer qualquer coisa, por mais pouco que seja. 

J, em nome de todos os que te lembram.

03 novembro 2024

XXXI Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Marcos 12,28-34

Naquele tempo,
aproximou-se de Jesus um escriba e perguntou-Lhe:
«Qual é o primeiro de todos os mandamentos?»
Jesus respondeu:
«O primeiro é este:
‘Escuta, Israel:
O Senhor nosso Deus é o único Senhor.
Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração, com toda a tua alma,
com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças’.
O segundo é este:
‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’.
Não há nenhum mandamento maior que estes».
Disse-Lhe o escriba:
«Muito bem, Mestre! Tens razão quando dizes:
Deus é único e não há outro além d’Ele.
Amá-l’O com todo o coração,
com toda a inteligência e com todas as forças,
e amar o próximo como a si mesmo,
vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios».
Ao ver que o escriba dera uma resposta inteligente,
Jesus disse-lhe:
«Não estás longe do reino de Deus».
E ninguém mais se atrevia a interrogá-I’O.

01 novembro 2024

Solenidade de todos os Santos

 Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
ao ver as multidões, Jesus subiu ao monte e sentou-Se.
Rodearam-n'O os discípulos
e Ele começou a ensiná-los, dizendo:
«Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados os humildes,
porque possuirão a terra.
Bem-aventurados os que choram,
porque serão consolados.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus.
Bem-aventurados os que promovem a paz,
porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça,
porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa,
vos insultarem, vos perseguirem
e, mentindo, disserem todo o mal contra vós.
Alegrai-vos e exultai,
porque é grande nos Céus a vossa recompensa».

30 outubro 2024

Da política e da inteligência artificial

Sou um utilizador recente e muito básico da Inteligência Artificial (no meu léxico comum referido como chatgpt). Tive uma utilização esporádica, há cerca de um ano, quando pedi ao chatgpt para me escrever um discurso de 10 minutos sobre oncologia pediátrica: num certo sentido, o discurso era irrepreensível - não tinha nenhum erro, tudo fazia sentido. 

Mais recentemente comecei a utilizar o chatgpt para outro tipo de assuntos: pedidos de informação, identificação de citações e, acima de tudo, preparação de apresentações: pedi-lhe para me fazer uma apresentação de 15 minutos sobre um determinado assunto (relativamente técnico) e o resultado foi impressionante. Obviamente que há uma adaptação necessária - isto é, não pode fazer-se copy / paste. Porém, o que recebemos é um esqueleto muito importante.

Retomo o tema do discurso feito pelo chatgpt do qual retiro duas notas importantes: a ausência de disparates; e o facto do discurso ser genericamente impessoal, isto é, não ter uma dimensão emocional grande, o que seria normal num discurso sobre cancro em crianças. 

Há uma senhora famosa que escreve no Linkedin sobre temas diversos: o amor, a culpa, o cruzamento de olhares, a separação dos corpos, o encontro das almas, etc., etc. Tenho, para mim, que todos aqueles textos são escritos com recurso à inteligência artificial. Porquê? Porque tem excessos de brasileirismos numa pessoa portuguesa; porque utiliza a grafia do novo acordo ortográfico, o que não me parece que seja o caso da dita senhora, já com alguma idade. Por último, porque os textos são genericamente impessoais, isto é, tudo espremido gera pouco sumo - é como tentar apertar claras em castelo. Apesar disto, sinto inveja pela forma como as pessoas elogiam estes textos, usando expressões como sabedoria, experiência, maravilha, magnífico, adoro, não me canso de lê-la...

Um destes dias ouvi um ministro a falar. Era deste governo, mas poderia ser do anterior, ou do anterior ao anterior. Dei por mim a pensar que, fechando os olhos e abstraindo-me de tudo, poderia estar a pedir ao chatgpt que me escrevesse um texto sobre qualquer coisa. O ministro usou palavras importantes e impactantes; não disse um único disparate e respondeu a tudo de forma rápida. Porém, imaginei-me a espremer aquilo tudo e a perceber que só sairia ar, porque nada daquilo tinha consistência, substância, conteúdo. O ministro respondeu a tudo não respondendo a nada. Percebi, por isso, que entre a inteligência artificial e a actividade governativa há uma sobreposição forte.

JdB  

29 outubro 2024

Poemas dos dias que correm

 

Paredão do Estoril, um destes dias de manhã cedo

Jornal 

Cristo
Eis como há mais de um ano não penso em Ti
Desde que escrevi o meu penúltimo poema de Páscoa
A minha vida mudou tanto desde então
Mas eu continuo a ser o mesmo
Até quis tornar-me pintor
Eis aqui os quadros que criei e que esta noite
                                         pendem dos muros
Oferecem-me estranhas visões de mim mesmp que
                                             me fazem pensar em Ti. 

Cristo
A vida
Eis o que pesquisei
As minhas pinturas fazem-me sofrer
eu estou cheio de paixão
Tudo é cor de laranja. 

Passei um dia a pensar nos meus amigos
E a ler o jornal 

Cristo 

Vida crucificada no jornal aberto que eu tenho
                                          ao longo dos braços 

Envergaduras
Foguetões
Ebulição
Gritos
Como se um aeroplano caísse.
Sou eu. 

Paixão
Fogo
Folhetim
Jornal
Não importa o quanto não queremos falar de nós
                                                                   próprios

Às vezes é preciso gritar 

Eu sou o outro
Demasiado sensível

(Agosto de 1913) 
Blaise Cendras
(1887 - 1961)
In "Descida Brusca de Temperatura"
(Alguma Poesia Suiça)
(Tradução de Luís Filipe Parrado)


28 outubro 2024

Duas Últimas

Fui ouvir Angelique Kidjo à Gulbenkian este sábado. Não sabia quem era, nunca tinha ouvido, comprei bilhetes para ir e para oferecer. Um concerto fantástico!

O meu gosto pela música africana data, muito provavelmente de 2008, ano em que estive no Zimbabwe dois meses. Antes disso tenho dúvidas - não me lembro - de que ouvisse esse estilo musical. Lembro-me de ouvir Dudu Manhenga ao vivo em Harare, num concerto privativo.

Regresso à Gulbenkian. Sou um habitué do espaço - curiosamente, lá estarei na próxima 3ªfeira a ouvir o Requiem Alemão de Brahms. Não estou habituado, no entanto, a ver a sala cheia de pessoas em pé, a dançarem, a cantarem, a baterem palmas, a entusiasmarem-me com Angelique Kidjo. Vale a pena ouvir e apreciar. Incluí neste post uma música mais lenta - Malaika - porque foi muito pedida pelo público, apesar de não ter sido tocada, e é muito bonita. Divirtam-se e apreciem.

JdB




27 outubro 2024

XXX Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Marcos 10,46-52

Naquele tempo,
quando Jesus ia a sair de Jericó
com os discípulos e uma grande multidão,
estava um cego, chamado Bartimeu, filho de Timeu,
a pedir esmola à beira do caminho.
Ao ouvir dizer que era Jesus de Nazaré que passava,
começou a gritar:
«Jesus, Filho de David, tem piedade de mim».
Muitos repreendiam-no para que se calasse.
Mas ele gritava cada vez mais:
«Filho de David, tem piedade de mim».
Jesus parou e disse: «Chamai-O».
Chamaram então o cego e disseram-lhe:
«Coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te».
O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus.
Jesus perguntou-lhe:
«Que queres que Eu te faça?»
O cego respondeu-Lhe:
«Mestre, que eu veja».
Jesus disse-lhe:
«Vai: a tua fé te salvou».
Logo ele recuperou a vista
e seguiu Jesus pelo caminho.

23 outubro 2024

Vai um gin do Peter’s ?

 VITAMINAS DIÁRIAS 

Com as máquinas potentes que são os pequenos rectângulos dos nossos telemóveis, chegam-nos por mãos amigas incontáveis mensagens sugestivas e inspiradoras. Entre as incisivas e sábias estão as do Pe.Vasco Pinto Magalhães, sj, de que partilho uma selecção especialmente actual, saída da colectânea alimentada a cada dia – «NÃO HÁ SOLUÇÕES, HÁ CAMINHOS: 365 vezes por ano não perguntes porquê, mas para quê».  Talvez resulte num bom aperitivo para ir saboreando ao longo das próximas semanas, à maneira de um gin tomado em boa companhia:  

«22.OUT

Todos, sem excepção, temos um defeito dominante. E a melhor forma de corrigir defeitos é desenvolver as qualidades contrárias. E o segredo para desenvolver qualidades ou virtudes é puxar pela nossa melhor qualidade. Quando desenvolvo o meu talento, todo o resto da personalidade cresce e amadurece. Qual é a minha melhor qualidade?

21.OUT

Alegrar-se com o bem dos outros é um princípio de felicidade em que nos temos de educar. Incomoda um mundo de "bota-abaixo", que não sabe ver nem alegrar-se com o bem alheio. É já grande coisa entristecer-se e doer-se com o sofrimento do amigo, e quase todos somos capazes disso. Outra coisa é alegrar-se com o bem do próximo – isso é grandeza de alma!

20.OUT

O perdão não se opõe à justiça. Pensar o contrário seria, no mínimo, ingenuidade. É que, se podemos e devemos perdoar aos patrões da droga, aos terroristas e a todos os criminosos em geral se eles revelam arrependimento, a sociedade não pode deixar de os julgar e, se for caso disso, de os condenar a uma pena justa. A paz também resulta da justiça correctamente exercida e aplicada pelos órgãos próprios. Devemos mesmo exigir que essa justiça funcione devidamente.

18.OUT

Disse alguém que o futuro pertenceria a quem oferecesse mais esperança. Os políticos costumam acenar com promessas várias, mas nem sempre as promessas significam esperança. São mais a cenoura à frente do burro... Esperança é a credibilidade de um projecto. Esperança é a convicção de que a vida vale a pena e faz sentido. Esperança é a força para lutar mesmo na dificuldade. Esperança é "estar de esperanças".

17.OUT

A lista de desgraças do nosso mundo parece não acabar e até aumentar: guerras, fome, escândalos, abusos, corrupção... Parece que vai tudo de mal a pior. Será? O pessimismo parece mais inteligente, mas a esperança é mais sábia. Não será esta desgraça um grito de que tudo tem que mudar, de que queremos ir por outro caminho? E se queremos é porque ele existe.

16.OUT

Quem crê sabe que não há noite nem escuridão que dure sempre. Sabe e experimenta que há sempre uma saída, por mais fechada que pareça a situação. E se não a está a ver, não é porque não exista, é porque ainda não chegou a hora.

13.OUT

Curioso... À medida que a fé vai perdendo qualidade, não aumenta o ateísmo, aumenta a superstição. O nosso mundo à medida que se orgulha de não precisar de Deus, enche-se de amuletos e bruxas.

12.OUT

A primeira vítima do mal que faço sou eu próprio. Fiz mal àquele porque com esta "piadinha" lhe estraguei a fama, fiz mal àquela porque lhe fiz perder uma oportunidade, e ao outro porque lhe acertei em cheio no ponto fraco... Mas fiz mal – antes de mais – a mim próprio, porque não me portei como gente. O outro até pode crescer com o mal que lhe fiz, mas eu já desci uns pontos na escala da humanidade.

10.OUT

O ressentimento é uma das experiências humanas mais negativas. O ressentido está sentido com os outros e está sentido consigo, e remorde-se, não se perdoa nem perdoa, acha que tem todo o direito a isso. É a cegueira do ressentimento! Só um acto de humildade, e saber perder os falsos direitos a que me agarro, pode fazer-me sair dessa dor de andar magoado com a vida.

27.SET

A Fortaleza. Faz-nos imensa falta para superar os medos, os cansaços, para saber viver com as próprias fragilidades sem desanimar e com as fragilidades do mundo sem violência nem cinismo. A fortaleza é um dom que permite perdoar e recomeçar sempre. Só os fracos se vingam e mentem. Os fortes estão bem com a verdade, mesmo que traga sofrimento.

25 SET

O entendimento é como a inteligência, um "ler por dentro". É o que significa a palavra. É um dom que não se consegue com cursos, porque é uma atitude que (…) nos dá a capacidade de ir ao fundo das coisas, de interpretar os tempos e os modos. Sem discernimento nem as regras nos salvam.

23.SET

Mais do que coisas novas, aquilo de que precisamos é de uma maneira nova de ver as coisas. Não é o que acontece numa sociedade envelhecida e cínica, que gere as crises com oportunismo e sem referência a valores, e numa cultura que legaliza disfarçadamente a violência e a morte, parecendo trazer novidade, mas revelando tão só esgotamento e vazio. Quem não vir o bem no âmago da realidade nem sequer chega a compreendê-la e não tem futuro.

22.SET

O nosso mundo vive cheio de solidão negativa, sem perceber nem aceitar esse dom, essa necessidade, de estar só para poder recolher-se e organizar-se, para poder dar e dar-se. Oferece-nos, pelo contrário, dois álibis, para enganar a solidão: o trabalho e o divertimento. A ocupação e a satisfação talvez nos façam esquecer, mas deixam-nos cada vez mais longe de nós mesmos e dos outros.

21.SET

A solidão é, talvez, o maior sofrimento humano, já que fomos feitos para nos ligarmos e ser ligados. A solidão como vazio, como desamor e como perda de sentido, é uma espécie de morte por rejeição. Mas a solidão também pode ser saboreada como ocasião de outros encontros, com quem nos ama mesmo quando tudo se perdeu. E há quem saiba estar sozinho e bem, sem ter que fugir para esquecer ou enganar o vazio. O primeiro passo para viver bem a solidão vem precisamente ao descobrir que dentro de cada um de nós há alguém que nos ama: podemos ser nós... e é certamente Deus!

18.SET

Um dos mandamentos da verdadeira alegria diz assim: "Vê bem como fazes os cálculos das tuas avaliações!" Conta-se que, certa vez, um duende da floresta entrou numa loja e mudou a etiqueta dos preços. Por cima da máquina de lavar colocou o preço de dois euros e de uma dúzia de molas de roupa o de quinhentos euros. Foi a confusão! Parece-me que na nossa vida entrou um duende atrevido: damos muita importância aos negócios e, por exemplo, nem sequer uma tarde temos para brincar com os nossos filhos!

16.SET

A ave canta, mesmo que se parta o ramo, porque sabe que tem asas. Nós, na hora da dificuldade ou da doença, deixamos de cantar. É assim porque não sabemos ver com vistas largas e profundas. Porque só vemos, com as palas que temos nos olhos, aquilo que está mesmo diante de nós. Porque só confiamos no que tocamos e está à mão. Pobre materialismo, tão infeliz... Voa tão baixo...

14.SET

É diferente a espera e a esperança. Se estou à espera do comboio que não chega, digo a mim mesmo: "tem paciência, espera". Mas também oiço uma voz cá dentro que diz: "tem esperança"; isto é, mesmo que o comboio não chegue podes crescer com esta situação, podes tirar partido dela e até inventar outra saída. A espera é de coisas materiais. A esperança abre horizontes e dá sentido ao que nos acontece.

13.SET

Comunicar é mais do que transmitir, como formar é mais do que informar. Comunicar é comungar. Comunicar é estabelecer uma ponte que funciona nos dois sentidos. Podem ser úteis os comunicados, mas sem resposta recebida e aceite, não há comunicação que seja comunhão.

12.SET

Quem sofre, a maior parte das vezes, mais do que uma solução, só quer partilhar a sua dor, ser ouvido e apreciado, acompanhado. Não é estranho que seja dessa ajuda, que todos podemos dar, que a maior parte de nós foge?

11.SET

Ninguém é tão flexível como a pessoa justa. A justiça ajusta a vida à verdade e à rectidão, sabe para onde vai e, por isso, tem compaixão. O injusto é o rigorista quando quer pôr tudo na mesma bitola e é o relaxado quando mede as situações pelo que lhe convém.

10.SET

Alguém disse que a coisa menos comum é o senso comum. Bastaria um pouco de bom-senso, de sentido das conveniências, das prioridades, dos direitos dos outros, para tudo ser melhor. O senso comum não nasce connosco, mas pode aprender-se e exercitar-se. Nem há verdadeira maturidade sem ele.

6.SET

"Os filhos das trevas são mais espertos que os filhos da luz." Quando Jesus disse isto tinha em mente aquelas pessoas que, para chegar aos seus fins mesquinhos, são capazes de arquitectar estratégias com argúcia e fazer mexer o mundo, enquanto tanta gente boa não é capaz de ser crítica nem de ser criativa. Ora uma caridade sem inteligência, sem discernimento, pura e simplesmente não é caridade.

4.SET

A paciência é uma "paz-ciência". A "paz-ciência" não se contenta com tratados de reconciliação nem com tréguas. Vai muito mais longe, pensa que tudo tem a sua hora e, ainda que não goze a paz, sabe vê-la no horizonte. A ciência da paz deve começar no momento do desencontro. A ciência da paz é a paciência. A paciência tem horizontes largos e é própria dos fortes.

2.SET

O desejo mais profundo de uma pessoa é ser feliz. Não só por um momento, mas feliz para sempre. Outra coisa não seria normal! Mas há quem desista desse sonho por lhe parecer uma paixão inútil e impossível, confundindo felicidade com bem-estar ou prazer. Ser feliz é ser fecundo. É esse o significado da palavra. E uma árvore só é fecunda quando é podada. Não se é feliz sem podar o egoísmo.

1.SET

"Humor com amor se paga". Parece haver qualquer engano nesta frase, mas não. Quando se trata do verdadeiro humor, de uma compreensão crítica, de uma observação que faz ressaltar o relativo e nos rende à humildade do que somos, a resposta só pode ser também um olhar que aceita com ternura. Sabemos é pouco o que é o humor. Sabemos melhor o que é a ironia e o cinismo.

21.AGO

Distribuir é uma sabedoria. Pode pensar-se que é fácil e que, para ser justo, basta dividir em partes iguais para cada um. Mas não, essa seria uma justiça cega, sem coração. Distribuir é dar a cada um aquilo que cada um necessita. E como as necessidades são distintas, só há igualdade se se atender à diferença.

20.AGO

Deveríamos agradecer ter nas nossas casas alguém mais velho, um avô, mesmo gasto e doente. Para além do seu saber, essa pessoa humaniza-nos, dá-nos sentido da história e mostra-nos o que vale a vida, torna-nos solidários. Mesmo quando já não fala e "só" dá trabalho, pode ser amado e isso faz-nos muito bem. Quando lhes baterem à porta com teorias de eutanásia, que dizem que a pessoa vale o que produz, digam que não estão.

18.AGO

Respeitar a liberdade de cada um e a sua diferença não significa tolerar tudo o que cada um diz ou faz. Tolerar não é ser indiferente nem é não ter uma ideia do que é o bem; tolerar não é pactuar nem pode ser demitir-se de educar para um mundo melhor. Isso é permissividade. Respeitar o outro é também exigir responsabilidades.

12.AGO

Todos precisamos de amigos e de relações. Mas tudo isso pode não ser mais do que agitação e aparência, se não há uma vida interior que nos acompanhe e saiba fazer escolhas, que dê conteúdo às nossas relações e divertimentos. Há quem tenha uma vida social intensa, mas não saiba avaliar o que lhe acontece a si próprio e à sua volta.

4.AGO

Um famoso guia espiritual dizia que desconfiava da palavra "fazer" porque lhe sabia a fabricar ou a produzir. Ora Deus ao criar não faz propriamente nada, mas limita-se a existir e a comunicar-se contagiosamente! Não haverá aqui também uma lição para a nossa sociedade que vale pelo que produz em vez de contagiar a vida?

1.AGO

O silêncio é um valor inestimável. Sem silêncio não se ouve e ainda menos se escuta. O homem que não se escuta a si próprio, desconhece-se. O que não tem espaço e tempo para meditar, para ouvir o significado dos sons e das palavras, anda neste mundo a reboque, sem leme. Só no silêncio é possível descobrir outros sinais de comunicação. Aproveitemos este tempo de férias para fazer silêncio. O silêncio é o segredo de uma melhor comunicação.

28.JUL

Quando chega a noite e olho para trás posso compreender melhor a importância de me ter levantado, ou não, àquela hora, o valor de tal visita, o impacto do que disse e ouvi. A vida entende-se da frente para trás. Só um dia saberei bem o valor de cada passo. É preciso muito cuidado com o desânimo, pois posso estar a desvalorizar algo em relação ao qual, um dia mais tarde, poderei dizer: "Que bom foi ter acontecido!"

27.JUL

O primeiro passo para superar o mal e os problemas é enfrentá-los e admiti-los. É o que muitas vezes não se faz e, então, nem se sabe que dimensão têm, nem onde se situam, nem como agem. É assim que nos tornamos fabricantes de monstros e vivemos à espera de milagres.

24.JUL

-"Bom dia, então como vai isso?" - "Ah, mais ou menos, vamos andando!" Resposta horrível, morna, que nem sequer é verdadeira. Sabemos se vai chover ou fazer sol, sabemos se a Bolsa sobe ou desce, mas parece que não queremos ver e agarrar a vida, dizer se está a ser construtiva ou não, pondo assim o nome às coisas! Sem identificar os caminhos, não sou eu que decido sobre a minha vida, é alguém que me leva à trela.

23.JUL

Ainda faz mais impressão encontrar aquelas pessoas que se fazem infelizes. Aquelas para quem está sempre tudo mal, para quem o que têm nunca chega, para quem cada coisa constitui uma dificuldade, que encaram o futuro com angústia e horror... Ora isto não é sério. Fazer de tudo um caso sério não é nada sério. E pode curar-se com outra educação... desde pequenino. Ser feliz, aprende-se!

21.JUL

Tanta gente, actualmente, sofre de "adolescência retardada". Custa-lhes escolher. Ficam infantis ao pensar em tantas coisas que se lhes oferecem, lhes agradam e quereriam obter, mas a verdade é que... "já não temos idade para isso". Quanto maior é o leque de possibilidades de divertimento, mais difícil é comprometer-se com uma realização séria. Aliás, de que andamos à procura: do divertimento ou da fecundidade?

10.JUL

"A maturidade é uma ave que levanta voo ao cair da tarde." Foi Platão que o disse, poeticamente. E, realmente, os nossos "homenzinhos" feitos à pressa e cheios de opiniões, tal como os fabricam as nossas sociedades de aceleração e abundância, são tão infantis afectivamente!... O problema é ainda mais grave numa sociedade que não respeita os velhos.»

Sem saudosismos, lembro um momento luminoso e festivo das vitamínicas JMJ de Lisboa, em 2023, porque as boas memórias ajudam a manter vivas as melhores experiências que nos calharam em sorte. Partilho também outros momentos musicais do mesmo grupo, em gravações com mais qualidade dos que as gravadas nos palcos abertos das célebres Jornadas em Portugal:

 



Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

22 outubro 2024

Dos preconceitos e do Hawaii

Gosto da ideia de preconceitos. Não porque ser preconceituoso seja bom, mas porque ser preconceituoso abre lugar à inteligência: ou se percebe que o preconceito faz sentido e isso é uma prova de inteligência - ou de necessidade de sobrevivência - ou se percebe que o preconceito não faz sentido e abre-se uma via para a redenção. 

Fui educado no preconceito contra a gente que maça; isto é, as pessoas podem ser feias, gordas, atarracadas e até estrábicas - não podem é maçar o próximo, sendo que o próximo somos nós próprios. Noutras casas que conheci bem, o preconceito é estético; isto é, as pessoas podem maçar o próximo, contar histórias com detalhes que nada acrescentam à narrativa, suscitar hipotensão no interlocutor - não podem é ser feias, gordas, atarracadas e nem sequer estrábicas. Lembro-me de me contarem que uma pessoa deste segundo exemplo, trocando correspondência com alguém que nunca tinha visto, perguntou: fuma? É alto? Este preconceito é mais factual e, por isso, mais fácil de gerir: uma pessoa gorda avista.-se à distância e pode-se fugir dela; já uma pessoa maçadora requer um contacto e, só depois, se aquilatar da dimensão da tragédia. 

Ambos os preconceitos protegem quem os usa: fugir de gordos ou de maçadores pode ser um gesto de sobrevivência e, por isso, podemos classificá-los de inteligentes. O que derrota este argumento? A certeza de que por trás do horror à maçada ou à gordura há uma arrogância. Nunca conheci ninguém maçador que tivesse preconceito contra maçadores; e nunca conheci ninguém com um módico de excesso ponderal que tivesse horror aos gordos. Podemos ter horror àquilo que somos? Sim, podemos, mas não será saudável.

***

Koko Crater Arch Trail, Oahu (de acordo com o meu telemóvel), Outubro de 2024

A minha não vontade de ir ao Hawaii assentava num preconceito: é americano, não me interessa. Fui com vontade de exercer a minha inteligência e, como resultado, dizer cheio de alegria: enganei-me! Adorava voltar. Acontece que não é o caso. Gostei de ir? Sim, gostei? Gostava de voltar? Não me parece. E porquê? Talvez porque não seja suficientemente interessante para justificar a repetição. 

(Alguém me contou, e não afianço que a referência fosse esta, que fulano, ao ser-lhe perguntado o que tinha achado da Coreia do Sul, terá dito: é a Amadora em melhor.)

Honolulu é a Amadora em melhor? Não, é bastante mais do que isso. Mas não é suficientemente mais do que isso. Seguramente que o resto do Hawaii (ou apenas a ilha de Oahu, onde se situa a capital) tem paisagens muito bonitas. Mas a melhor paisagem de Honolulu são as ruas bonitas, largas, debruadas a lojas boas. O resto, diria eu com prudência, é muito americano, cheio de turistas americanos, de doses americanas, de carestia americana. Apesar disso, os locais são gente muito simpática, afável, calma, talvez cheios de uma delicadeza que lhes vem da Polinésia, não do Illinois. 

JdB

21 outubro 2024

Texto e fotografia dos dias que correm

 

Honolulu, Outubro de 2024

A Lamentação é Completamente Inútil

Não há dúvida de que é inútil e prejudicial lamentarmo-nos perante o mundo. Resta saber se não é igualmente inútil e prejudicial lamentarmo-nos perante nós próprios. Evidentemente. De facto, ninguém se lamentará perante si próprio, a fim de se incitar à piedade, o que nada significaria, dado que a piedade é, por definição, o voluptuso encontro de dois espíritos. Para quê, então? Não para obter favores, porque o único favor que um espírito pode fazer a si próprio é conceder-se indulgência, e toda a gente percebe quanto é prejudicial que a vontade seja indulgente para com a sua própria e lamentável fraqueza.

Resta a hipótese de o fazermos para extrair verdades do nosso coração amolecido pela ternura. Mas a experiência ensina que as verdades surgem apenas em virtude de uma pacata e severa busca, que surpreende a consciência numa atitude inesperada e a vê, como de um filme que parasse de repente, estupefacta, mas não emocionada.

Basta, portanto. 

Cesare Pavese, in "O Ofício de Viver"

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