15 outubro 2024

Nos 30 anos da Acreditar

A Acreditar fez ontem 30 anos, e eu tive o gosto de escrever um texto para o Sapo. É uma bonita data... Eu apanhei o comboio já em andamento, corria o ano de 2001.

JdB

***

Somos um tripé, que tomba fatalmente na ausência de um dos suportes

Caminante no hay camino, se hace camino al andar. 
(Antonio Machado Ruiz)

A Acreditar – Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro nasceu há 30 anos. E nasceu, como muita coisa nasce, fruto de uma necessidade do momento, de uma angústia, de uma pergunta que requer uma resposta tão imediata quanto possível, de um espanto: como assim, o meu filho tão pequeno tem cancro? 

À volta de uma mesma mesa, um conjunto de Pais entendeu que era preciso fazer mais pelos seus filhos mas, também, pelos filhos de todos os outros Pais, presentes ou futuros, que viessem a ser confrontados com este desafio. O que existia não chegava – era preciso garantir apoio emocional a Pais e doentes, era preciso prestar informação técnica numa linguagem para leigos, era preciso tornar a estadia num hospital tão confortável quanto possível. Era preciso garantir tudo o que não havia e que fosse importante para aquelas crianças ou jovens. 

30 anos é uma vida. Olhar para ontem, para aquele ponto de partida, e olhar para hoje, para o ponto onde estamos, é percorrer uma estrada onde está tudo o que é intangível e o seu contrário: a morte e a vida, a resiliência, a esperança e o desalento, a certeza em dias melhores, a palavra Acreditar como verbo de conjugação obrigatória. Mas é, também, percorrer uma estrada cheia de conquistas: a construção de três Casas, a dinâmica dos sobreviventes, as alterações legislativas, o crescimento da asociação e o seu posicionamento enquanto parceiro credível – e indipensável! – para tudo que é a oncologia pediátrica.

O lema dos nossos 30 anos - quando o cancro se mete no caminho, ninguém vai sozinho - é particularmente feliz, pois condensa duas ideias importantes, de obviedades distintas. Por um lado, na família de um jovem ou criança confrontada com um diagnóstico de cancro, ninguém vai sozinho: a família é, toda ela, afectada pelo acontecimento, pelo que tem de ser protegida das mais diversas formas; mas há, também, uma solidariedade que se instala e que suscita o cuidado, o apoio, tantas vezes assegurado pela Acreditar. Por outro lado, ninguém vai sozinho nas outras áreas: decisores políticos, profissionais de saúde e associações de Pais e de Doentes têm de conversar, articular-se, procurar soluções que tenham um impacto positivo na vida desta comunidade. Somos um tripé, que tomba fatalmente na ausência de um dos suportes.

Vive em todos nós, estou certo, o famoso verso de Sebastião da Gama: pelo sonho é que vamos. Talvez aos Pais de há 30 anos faltasse, numa primeira fase, a veleidade do sonho, preocupados que estavam com questões imediatas que urgia resolver no momento, ou no momento a seguir ao momento. Eram tempos de relativo desconhecimento da doença e das suas implicações. Só a palavra cancro instilava medo, tinha uma roupagem negra, de pouca esperança. Talvez, e parafraseando Alberto Caeiro quando dizia sou do tamanho do que vejo, a Acreditar fosse do tamanho do que via – ou do que era permitido ver.

O ADN da Acreditar mantém-se inalterado: cuidamos das crianças e jovens doentes, dos Pais e dos sobreviventes. Identificamos as suas necessidades e tentamos colmatá-las, para fortalecer uma comunidade fragilizada. Embora o discurso de profissionais e de voluntários seja fruto da história de vida de cada um, a mão que estendemos ou o sorriso que oferecemos é sempre o mesmo, porque deriva de um desejo genuíno de ajudar este próximo. Embora as palavras usadas sejam o resultado da diversidade geográfica, académica ou cultural de cada um dos que por aqui passa para servir estas famílias, há expressões que são iguais, porque pertencentes a um léxico comum onde predomina a palavra Acreditar.

Este fio condutor que une passado e presente, e que se prolongará pelo futuro, não se rompe, porque é isto que queremos ser. O fio é reforçado por aquilo que, em todo o momento, se entende como prioridade e que constitui a obra visível da Acreditar. Nesse sentido, como diria o poeta espanhol, não há um caminho, o caminho faz-se caminhando. O que hoje é prioridade amanhã não será mais. E aquilo que, hoje, não sabemos que existe, tornar-se-á alvo de todos os nossos esforços amanhã.

A Acreditar faz 30 anos. Muito nos separa dos Pais que começaram esta empreitada: os tempos são outros, as pessoas são outras, as necessidades são outras. Mas o que é determinante permanece: a nossa incansável dedicação às crianças e jovens com cancro, aos Pais e aos sobreviventes. 

João de Bragança,
Presidente da Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro 

14 outubro 2024

De uma conferência no Hawaii

À hora a que me estiverem a ler, já estarei em Honolulu, para a 29ª Conferência do CCI (Childhood Cancer International),  organização global à qual dei o meu voluntariado dos últimos anos. A conferência, como sempre, corre em paralelo com o encontro, também anual, de oncologistas pediátricos e outros profissionais de saúde de todo o mundo. Lá, como todos os anos, encontrarei amizades que fui fazendo ao longo do tempo, farei novas amizades, cruzar-me-ei com muita gente que fui conhecendo e pela qual tenho estima e respeito. Embora um pouco mais distante afectivamente, não deixa de ser um tempo intenso, carregado de memórias, mas, sobretudo, de alerta para o tanto que há por fazer pelas zonas mais desfavorecidas do mundo. 

Penso já o ter dito neste estabelecimento - seguramente que o disse de forma pública: desde 2009, talvez, que assisto a estas reuniões; desde 2016 que sou membro do Board (presidente entre 2020 e 2023). Nunca, em momento algum da minha vida, vivi anos de um enriquecimento humano tão grande: não são só as amizades que se fazem, que vão do Chile à Nova Zelândia, da África do Sul à Áustria, da Nigéria a Hong Kong, e que nos permitem ter um abrigo, ou uma cara conhecida, em dezenas de países do mundo. Mas há uma dimensão mais importante: enquanto presidente da Acreditar aprendi muito sobre a oncologia pediátrica em Portugal. Porém, ao ser membro do Board do CCI, tive a oportunidade de abrir uma janela e ver o mundo inteiro, cheio de contradições, injustiças, desigualdades, sofrimento, dedicação e desejo de mudança. E isso faz de qualquer um de nós pessoas mais atentas, mais informadas, mais conscientes do que se passa na comunidade global da oncologia pediátrica.  

Hawaiʻi Convention Center (onde se desenrola a conferência), muito perto de Waikiki

***

Na minha lista de 50 destinos a visitar nos próximos meses ou anos nunca constou o Hawaii. Talvez nunca tenha constado porque nunca foi uma palavra com que me tivesse cruzado muito (e que, por isso, não fica na memória) ou talvez por preconceito pateta, por me sentir excessivamente nos EUA. Talvez também fosse pela distância e preço: +/- 1.300€ (só avião) numa viagem que dura cerca de 24 horas, com duas escalas, em Frankfurt e em Vancouver (as mesmas paragens e a mesma duração no regresso).

Já que lá estou, tentarei aproveitar ao máximo. O facto de já não ser presidente da organização dá-me mais liberdade. Talvez até vá à praia de Waikiki, a 10 minutos do Coconut Waikiki Hotel, onde estarei instalado.

Faremos o nosso melhor...

Adeus, até ao meu regresso.

JdB

13 outubro 2024

XXVIII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Marcos 10,17-30

Naquele tempo,
ia Jesus pôr-Se a caminho,
quando um homem se aproximou correndo,
ajoelhou diante d’Ele e Lhe perguntou:
«Bom Mestre, que hei de fazer para alcançar a vida eterna?»
Jesus respondeu:
«Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão Deus.
Tu sabes os mandamentos:
‘Não mates; não cometas adultério;
não roubes; não levantes falso testemunho;
não cometas fraudes; honra pai e mãe’».
O homem disse a Jesus:
«Mestre, tudo isso tenho eu cumprido desde a juventude».
Jesus olhou para ele com simpatia e respondeu:
«Falta-te uma coisa: vai vender o que tens,
dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no Céu.
Depois, vem e segue-Me».
Ouvindo estas palavras, anuviou-se-lhe o semblante
e retirou-se pesaroso,
porque era muito rico.
Então Jesus, olhando à volta, disse aos discípulos:
«Como será difícil para os que têm riquezas
entrar no reino de Deus!»
Os discípulos ficaram admirados com estas palavras.
Mas Jesus afirmou-lhes de novo:
«Meus filhos, como é difícil entrar no reino de Deus!
É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha
do que um rico entrar no reino de Deus».
Eles admiraram-se ainda mais e diziam uns aos outros:
«Quem pode então salvar-se?»
Fitando neles os olhos, Jesus respondeu:
«Aos homens é impossível, mas não a Deus,
porque a Deus tudo é possível».
Pedro começou a dizer-Lhe:
«Vê como nós deixámos tudo para Te seguir».
Jesus respondeu:
«Em verdade vos digo:
Todo aquele que tenha deixado casa,
irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras,
por minha causa e por causa do Evangelho,
receberá cem vezes mais, já neste mundo,
em casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras,
juntamente com perseguições,
e, no mundo futuro, a vida eterna».

10 outubro 2024

Das qualidades

Gaivota vai com as outras: praia de Cascais numa destas manhãs

[Nota prévia: embora a conversa mencionada abaixo fizesse referência a qualidades de determinados homens e determinadas mulheres, por motivos de simplicidade usarei sempre o masculino.]

Um dias destes conversava com amigos sobre qualidades: que qualidades tinha fulano, que qualidades tinha beltrano. De um se dizia que era cuidador, de outro se dizia que era factor de equilíbrio; de um se dizia que era desembaraçado, de outro se dizia que era previsível; de um se dizia que tinha uma inteligência muito prática, de outro se dizia que era consistente; e assim sucessivamente. Num breve instante de 5 minutos se fez um retrato de um e de outro.

A conversa, só assim, é uma banalidade: todos temos qualidades, todos temos defeitos. Ora, o interessante neste tema era o tipo de qualidades: umas parecem ser qualidades activas, outras parecem ser qualidades passivas. Ou seja, a umas se associa uma acção, a outras se associa uma atitude. Ser-se cuidador, ou desembaraçado, ou prático implica movimento: cuida-se de alguém, resolve-se um problema inesperado, desmonta-se um fogão em menos de um fósforo. Já as outras não implicam movimento, mas, talvez, uma atitude perante um movimento desordenado, um momento de caos. Uma espécie de reacção perante uma espécie de acção.

Neste caso em concreto, há qualidades mais importantes ou mais adequadas? Não sei, e talvez não haja resposta certa. Tudo depende. Num mundo todo feito para a acção, é natural que as qualidades práticas se destaquem. Quem tem uma natureza voltada para o fazer, por certo que valorizará umas qualidades em detrimento de outras, sendo que a inversa também é verdadeira. Há quem possa usar um argumento forte, só aplicável para certas áreas da vida: se eu tiver uma avaria num fogão, contrato o serviço ou troco de equipamento. Porém, não posso contratar um serviço de estabilidade familiar.  

No decurso desta conversa também dizia alguém: não tenho mérito nisto; limito-me a disponibilizar o que tenho e o que sou, nada faço com esforço. Aqui a porca pode torcer o rabo para quem quiser torcer o rabo à porca: mesmo que reparar um fogão esteja na natureza de uma pessoa, ser prático em tempo de avaria é diferente de ser fiável em momentos de caos. A primeira requer um dispêndio de energia física que a segunda não requer; a primeira tem uma visibilidade que a segunda não tem - ou pelo menos uma visibilidade mais imediata. Nesse sentido, num primeiro olhar, ser-se desembaraçado tem melhor imagem do que ser-se previsível - imaginando que, numa dada altura da vida, a previsibilidade é um plus. 

O que nos diz esta divagação? Nada, a não ser o óbvio: que todas as qualidades têm a sua beleza, que o cumprimento de uma natureza se vê em tudo, da mecânica à fiabilidade, do desejo de cuidar à promoção do equilíbrio, e que nada é radicalmente melhor do que nada. Tudo está naquilo que cada um valoriza por aquilo que é e pelas suas necessidades circunstanciais. Bom, bom, é valorizarmos tudo, porque, como aprendi à mesa das cartas, cada jogo tem a sua beleza.

JdB 

09 outubro 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

OUTUBRO COM BONS PROGRAMAS 

Seguindo a ordem cronológica, na próxima Sexta-feira, às 19h00, a Gulbenkian oferece em sinal aberto a audição online do concerto, onde será interpretada a mais conhecida obra do compositor britânico Gustav Holz «Os Planetas», além do magnífico Concerto para Piano e Orquestra n.º 2 (em Dó menor, op. 18), do russo Rackmaninov, interpretado pelo talentoso pianista israelita Boris Giltburg. Um programa promissor, de sala esgotada (Os Planetas – Gulbenkian Música). 

Gustav Holz e a composição orquestral que o elevou a rock star da música clássica, composta nas vésperas da Primeira Guerra Mundial.  Desdobra-se em sete andamentos: 1. “Mars, the Bringer of War” (1914), 2. “Venus, the Bringer of Peace” (1914), 3. “Mercury, the Winged Messenger” (1916), 4. “Jupiter, the Bringer of Jollity” (1914), 5. “Saturn, the Bringer of Old Age” (1915), 6. “Uranus, the Magician” (1915), 7. “Neptune, the Mystic” (1915) 

Tributo de Jimmy Page, dos Led Zeppelin à peça de Holz, incorporando acordes do primeiro andamento The Planets em «Dazed and Confused»: 


No Domingo, das 11h-12h, no Museu do Oriente, o especialista de história de arte e ourivesaria, Nuno Vassallo e Silva, irá contar a história de uma peça extraordinária, adquirida em Maio pela Fundação Oriente: um aquamanil em prata, na forma mítica de dragão-peixe fêmea, com reminiscências do monstro mitológico mencionado na “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, como fauna originária da ilha indonésia de Sumatra – o caquesseitão. A par dos gomis e das bacias de água talhadas em materiais nobres, estas peças cumpriam a função de purificar as mãos, antes e depois das refeições, num ritual conhecido por ‘água-às-mãos’. Na Europa pós Renascimento, tornara-se num cerimonial comum das refeições nas cortes europeias e nas casas da nobreza.

Aquamanil Caquesseitão | Sul da China ou Sudeste Asiático (?) | Séc. XVII (primeira metade).
Descrição: escultura em prata com vulto perfeito, decorado em relevo com escamas, asas amovíveis, terminação da cauda de enroscar com pega assente em pés em forma de garra.
Medidas - 53x50x21cm; peso - 5845 g.
Integrado no acervo do Museu do Oriente (Doca de Alcântara; www.foriente.pt). 

Este aquamanil terá pertencido a um pequeno conjunto de dez exemplares, cuja maioria era propriedade de colecções da aristocracia portuguesa, todos de grandes proporções, à maneira das peças congéneres chinesas. No dorso, decorado a escamas, destaca-se uma pega portentosa para aguentar o conjunto cheio de água. Tipicamente, no bico abocanha um pássaro, por onde flui a água, garantindo um pequeno caudal, mais comedido. Misto de animal marinho alado e terrestre cruza uma cabeça de dragão com cauda de serpente enrolada e terminal de peixe (onde está a rosca, por ronde entra a água), patas de ave, asas de morcego cobertas de escamas e articuladas. Tudo indica ter inspiração na imagética oriental e poder provir das franjas longínquas do Império, longe da corte espanhola – Macau, até pelo seu peso excessivo e pelo fabrico em prata, mais comum na produção ourives chinesa do que na indiana. Na primeira metade do século XVII, período em que a peça é situada e com o país ainda sob a dominação filipina, o dragão costumava representar Portugal a resistir ao leão, que figurava Castela.  

Na Sexta-feira, 25 de Outubro, a Gulbenkian volta a emitir via streaming o concerto que decorrerá no Grande Auditório, às 19h00, dirigido pelo maestro Lorenzo Viotti, para interpretar Mozart e Brahms. Do primeiro, ouviremos o Concerto para Clarinete e Orquestra, em Lá maior (K. 622) e do segundo, a Sinfonia n.º 1, em Dó menor (op. 68) –  Concerto para Clarinete de Mozart – Gulbenkian Música.

Tantos programas interessantes, enquanto o Outono se adensa com as manhãs de nevoeiro e o cheiro aconchegante das castanhas e das brasas onde são assadas. Entretanto, o tempo voa até ao Natal…

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

08 outubro 2024

Poemas dos dias que correm

O QUE ESCOLHES FAZER DAS COISAS

Com
uma navalha afiada (que fura
o ventre de
um homem) também se pode soltar
a corda de
um prisioneiro. Com a corda que suspende
o pescoço do enfocado
também se pode salvar a mão
do fundo de
um poço. O nome fica de fora quando
se enterra um corpo. A sombra
de um ovo
não é branca. O mais belo
é a inteligência. Na mão (em forma de punho)
que fere o rosto de um homem
há força suficiente para
fechar
a navalha.

João Luís Barreto Guimarães * Poeta e Médico Cirurgião.
(1967 - )
In "Claridade"

07 outubro 2024

Dos amigos virtuais

 Mais do que um assistente, um companheiro

Ao contrário de outros dispositivos de IA que se focam em aumentar a produtividade, o Friend quer ser o teu novo melhor amigo. / Ele participa nas tuas conversas, faz comentários (às vezes até atrevidos!) e envia-te mensagens aleatórias ao longo do dia. / Confesso que fiquei um pouco cético no início. Será que um dispositivo pode realmente substituir a companhia humana? / Mas depois de ver o vídeo promocional, fiquei curioso. O Friend parece tão natural nas interações que é quase como ter um amigo invisível (mas que te ouve).

Amizade ou ilusão?

A questão que fica é: será que estamos a humanizar demasiado a IA? O Friend pode ser um companheiro divertido, mas será que pode substituir a complexidade e profundidade das relações humanas? / Se ficaste curioso e queres ter o teu próprio “amigo” digital, podes fazer a pré-encomenda do Friend nos Estados Unidos e Canadá. / O preço é de 99 dólares e, por enquanto, só é compatível com iOS. Mas quem sabe, se a procura for grande, talvez chegue a Android em breve.

O futuro da amizade?

O Friend é mais do que um dispositivo, é um vislumbre do futuro da nossa relação com a IA. Será que estamos prontos para ter amigos digitais? / Só o tempo dirá. Mas uma coisa é certa: o Friend veio para ficar e promete mudar a forma como vemos a inteligência artificial.

***

Ouvi falar desta aplicação ontem. Fui investigar um pouco e percebi que tinha sido inventado por um ex-aluno de Harvard. O objectivo é que as pessoas se sintam menos solitárias com o Friend, um colar com IA e microfone com o qual pode conversar-se.

Para uma pessoa da minha idade, esta realidade arrepia. É uma surpresa? Não. Mas é aterradora: se for nas camadas mais jovens da sociedade, pelos problemas que causa em termos de relacionamento humano; se for na população mais idosa, pelo desespero que traduz.

Para uma pessoa como eu, que não tem redes sociais (com excepção do Linkedin) que não sabe como funciona o Instagram ou ex-Twitter, e que não tem qualquer interesse (nem sequer científico) em dominar o funcionamento, a utilização do telemóvel, para além do que é estritamente funcional e prático, já configura uma relação virtual. Ainda que do outro lado de um telemóvel esteja um amigo que me conhece bem, que sabe do que falo quando menciono o tópico A ou B, nada substitui o contacto presencial, ainda que só se discuta o tópico A ou B. Ou seja, posso saber tudo sobre a vida de alguém só conversando com esse alguém pelo telefone ou pelo zoom, mas isso não substitui o frente a frente. 

A solidão não se combate, seguramente, com um amigo virtual que nos faz comentários (às vezes até atrevidos); em bom rigor, a solidão nem sempre se combate com um telefone que (não) toca numa casa que parece grande de mais. A solidão combate-se com o toque humano, com a observação da linguagem corporal, com a identificação de um tom de voz, com uma atenção tão plena quanto possível ao outro. Saber tudo sobre a vida de alguém através de conversas diárias por telemóvel não é mais do que saber tudo sobre a vida de alguém. Mas não é, seguramente, conhecer a vida de alguém, nem é um combate saudável da solidão. É um artifício - e isso, como os cominhos, deve ser usado com parcimónia.

Dizem que nunca houve tanta solidão como neste tempo em que estamos todos conectados. Talvez porque digamos, para dourar o nosso sentimento de culpa (e eu disse-o!) que falamos todos os dias com fulan@, embora o que fulan@ queira seja uma visita, um abraço, um beijo - e não um telefonemaEm bom rigor, fulan@ pode viver a 45 minutos de nossa casa, mas a preguiça, a falta de vontade ou a falta de caridade impedem-nos de algo mais do que dizer: ainda ontem falei com... E a frase dá-nos um ar de atenção e de preocupação pelo outro que nos deixa dormir melhor à noite. Como dizem os ingleses, been there, done that. 

Imaginar a solidão de cada um colmatada por um amigo virtual pendurado ao pescoço é terrível. E mais terrível ainda é pensar que isso poderá ser o futuro. Ou, pior ainda, que pode ser a solução.

JdB 

06 outubro 2024

XXVII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Marcos 10,2-16

Naquele tempo,
Aproximaram-se de Jesus uns fariseus para O porem à prova
e perguntaram-Lhe:
«Pode um homem repudiar a sua mulher?»
Jesus disse-lhes:
«Que vos ordenou Moisés?»
Eles responderam:
«Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio,
para se repudiar a mulher».
Jesus disse-lhes:
«Foi por causa da dureza do vosso coração
que ele vos deixou essa lei.
Mas, no princípio da criação, ‘Deus fê-los homem e mulher.
Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa,
e os dois serão uma só carne’.
Deste modo, já não são dois, mas uma só carne.
Portanto, não separe o homem o que Deus uniu».
Em casa, os discípulos interrogaram-n’O de novo
sobre este assunto.
Jesus disse-lhes então:
«Quem repudiar a sua mulher e casar com outra,
comete adultério contra a primeira.
E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro,
comete adultério».
Apresentaram a Jesus umas crianças
para que Ele lhes tocasse,
mas os discípulos afastavam-nas.
Jesus, ao ver isto, indignou-Se e disse-lhes:
«Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis:
dos que são como elas é o reino de Deus.
Em verdade vos digo:
Quem não acolher o reino de Deus como uma criança,
não entrará nele».
E, abraçando-as, começou a abençoá-las,
impondo a mão sobre elas.

04 outubro 2024

Poemas dos dias que correm

 PRECE NO MEDITERRÂNEO

Em vez de peixes, Senhor,
dai-nos a paz,
um mar que seja de ondas inocentes,
e, chegados à areia,
gente que veja com o coração de ver,
vozes que nos aceitem.

É tão dura a viagem
e até a espuma fere e ferve,
e, de tão alta, cega
durante a travessia

Fazei, Senhor, com que não haja
mortos desta vez,
que as rochas sejam longe,
que o vento se aquiete
e a vossa paz enfim
se multiplique

Mas depois da jangada,
da guerra, do cansaço,
depois dos braços abertos e sonoros,
sabia bem, Senhor,
um pão macio,
e um peixe, pode ser?
do mar

que é também nosso

Ana Luísa Amaral
(1956 - 2022)
In "A Liberdade Não Cabe no Poema"

03 outubro 2024

Dos profetas e dos maçadores

Paredão do Estoril, ontem, 07.30h

Esta semana ouvi a seguinte história numa aula na faculdade. O cenário é uma peça de teatro, talvez há 100 anos. Vasco da Gama  - miúdo, o que é importante! - está no seu quarto à procura de alguma coisa: vê debaixo da cama, por trás de um armário, por cima de uma estante, até que acaba por encontrar. A aia, ao lado dele, sorri satisfeita e diz-lhe: cedo começais a descobrir coisas, Sr. D. Vasco.

***

Ouvi e contei esta história várias vezes, tirada, ao que parece, de um sketch de um humorista brasileiro. Pedro Álvares Cabral chega ao Brasil. Atrás de uma árvore, um índio diz para o outro, em pânico: fomos descobertos...

***

O que une as duas histórias? O que é comum à aia que toma conta de Vasco da Gama criança, e os índios que vêem a chegada de Pedro Álvares Cabral? Aquilo que os liga e os torna semelhantes é uma certa ideia de antes de tempo ou de antes do seu tempo. Curiosamente, as duas expressões a itálico são muito semelhantes: falam de tempo e usam o advérbio antes. Acontece que não há aqui dois estilos: antes de tempo ou antes do seu tempo só inadvertidamente são expressões iguais às quais se aplicou um estilo diferente. 

O nosso lado optimista ou elogioso olha para a aia e para os índios como profetas. A primeira viu o que ainda ninguém tinha visto: Vasco da Gama como descobridor de coisas importantes; os segundos teriam percebido que, na verdade, haviam sido descobertos, e que isso não lhes traria uma felicidade óbvia. Mas a razão não está sempre do lado dos optimistas ou dos elogiosos. 

Acontece que a diferença entre antes de tempo e antes do seu tempo pode ser um fio de cabelo ou um fosso intransponível: o profeta fala antes do seu tempo; os maçadores falam antes de tempo. O que distingue uns e outros é a posse: se não detivermos o tempo, mais vale estarmos calados.

JdB

02 outubro 2024

Poemas dos dias que correm

Interior

o revólver de um ferro subcutâneo
o excelente amor intravenoso
o tribunal de oitava e nona instância
um louco vinte vezes furioso
 
teu belo corpo de maçãs ao colo
a escuridão relativa dos teus passos
o sumo de laranja em moderados goles
e de cigarros três ou quatro maços
 
o silêncio em repouso nas ampolas
onde convergem determinados sóis
o fantástico asseio das escovas
o bordado escondido dos lençóis
 
a pietá d’avignon ao fim da sombra
junto à ternura espessa das madeiras
o ângulo de gesso das paredes
onde já quase se pressente a noite
 
 
vasco graça moura
semana inglesa
poesia 1963/1995
quetzal editores


30 setembro 2024

De uma certa simplicidade

Um dia, a conversar sobre solidão, dizia-me alguém que tem uma companhia esporádica: sabes, sinto-me muitas vezes sozinha@. Nem sempre tenho com quem conversar. Respondi-lhe que sim, que percebia muito bem a situação, mas que, no caso desta pessoa, havia promessa de beijos, significando que havia a expectativa de chegar alguém.  

A expressão promessa de beijos é uma expressão bonita. É um verso de um poema mais comprido intitulado Uma casa Portuguesa. Cito um excerto: 

Quatro paredes caiadas
Um cheirinho a alecrim
Um cacho de uvas doiradas
Duas rosas num jardim
Um São José de azulejo
Mais o Sol da primavera
Uma promessa de beijos
Dois braços à minha espera
É uma casa portuguesa com certeza
É com certeza uma casa portuguesa 
 

O poema é singelo - há nele uma dimensão muito popular. O ponto que quero realçar é o encanto de dois versos num texto menos interessante. Uma promessa de beijos / dois braços à minha espera contam uma história. Na minha opinião não seria preciso muito mais nada. 

***

Tive um pensamento peregrino - e dei um salto quântico - e já falei disto neste estabelecimento. 

No seu livro A Pesca à Linha - Algumas Memórias, António Alçada Baptista diz ter tido um extraordinário abalo quando soube, por um livro de António Ferro, que Salazar tinha no seu escritório o soneto de Plotin intitulado Le bonheur de ce monde

Avoir une maison commode, propre et belle,
Un jardin tapissé d'espaliers odorants,
Des fruits, d'excellent vin, peu de train, peu d'enfants,
Posséder seule, sans bruit, une femme fidèle. 

N'avoir dettes, amour, ni procès ni querelle,
Ni de partages à faire avec ses parents,
Régir tous ses desseins sur une juste modèle,
Se contenter de peu, n'espérer rien des gens. 

Vivre avec franchise et sans ambition,
S'adonner sans scrupule à la devotion,
Dompter ses passions, les rendre obéissantes. 

Conserver l'esprit libre et le jugement fort,
Dire son chapelet en cultivant ses entes,
C'est attendre chez-soi bien doucement la mort

***

A tradução abaixo é minha, forçosamente imperfeita. 

Ter uma casa cómoda, limpa e bonita,
Um jardim coberto de espaldeiras perfumadas,
Fruta, excelente vinho, algum ar, alguns filhos,
Ter sozinho, sem ruído, uma esposa fiel.

Não ter dívidas, amor, processos ou quezílias,
Não ter partilhas com parentes,
Gerir os propósitos de forma justa,
Contentar-se com pouco, nada esperar de ninguém.

Viver com franqueza e sem ambição,
Dedicar-se sem escrúpulos à devoção,
Dominar as paixões, torná-las obedientes.

Manter o espírito livre e o juízo forte,
Rezar o terço cultivando as raízes,
É esperar suavemente, em casa, a morte.

Qual a relação entre os dois versos de Uma Casa Portuguesa e o soneto que decorava o gabinete de Salazar? A simplicidade que conta uma história. O raciocínio não é óbvio (e sabe Deus se está correcto). A simplicidade de um propósito e a simplicidade de uma história. Talvez Salazar, apesar de tudo, tivesse trauteado a canção, fixando-se na promessa dos beijos e dos braços que o esperariam.

JdB  

29 setembro 2024

XXVI Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Marcos 9,38-43.45.47-48

Naquele tempo,
João disse a Jesus:
«Mestre,
nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome
e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco».
Jesus respondeu:
«Não o proibais;
porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome
e depois dizer mal de Mim.
Quem não é contra nós é por nós.
Quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo,
em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa.
Se alguém escandalizar algum destes pequeninos
que creem em Mim,
melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço
uma dessas mós movidas pró um jumento
e o lançassem ao mar.
Se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a;
porque é melhor entrar mutilado na vida
do que ter as duas mãos e ir para a Geena,
para esse fogo que não se apaga.
E se o teu pé é para ti ocasião de escândalo, corta-o;
porque é melhor entrar coxo na vida
do que ter os dois pés e ser lançado na Geena.
E se um dos teus olhos é para ti ocasião de escândalo,
deita-o fora;
porque é melhor entrar no reino de Deus só com um dos olhos
do que ter os dois olhos e ser lançado na Geena,
onde o verme não morre e o fogo não se apaga».

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