COMO UM FAMOSO ‘PIANO BRANCO’ SE ESQUIVOU AO COMUNISMO
A atribulada história do piano de cauda – da marca austríaca Bösendorfer, chamado “branco” pela raridade de ter mantido a cor clara da madeira original – espelha com pica as convulsões vividas na Europa de Leste, ao longo do problemático século XX. Ali se fizeram sentir com particular intensidade os efeitos da queda do Império Austro-Húngaro, no final da Primeira Guerra Mundial e a consequente alteração de fronteiras, que ainda hoje alimentam traumas na região. Seguiu-se a invasão nazi e a devastação provocada pela Segunda Guerra Mundial, especialmente encarniçada naqueles países.
As ruínas deixadas pela guerra facilitaram a posterior conquista do Leste europeu pelo Exército Vermelho, primeiro com governos fantoches, depois com uma ocupação militar russa explícita. Sem a mínima liberdade de movimentos dentro do seu próprio país, as populações ficaram aprisionadas no lado errado da Cortina de Ferro. Metade vigiava, denunciava e assim subjugava a outra metade, mantendo um status quo de cárcere à escala nacional.
Só a implosão do império soviético libertou do jugo russo aqueles povos acoplados ao Pacto de Varsóvia, devolvendo-lhes a soberania, os direitos de cidadania dos povos livres e perspectivas de prosperidade.
As aventuras do “piano branco” confirmam a violência dessa sequência sanguinária, que varreu a Europa Central e a Hungria em particular, durante a maior parte do século passado. Depois de o Bösendorfer sobreviver aos nazis, que tinham instalado um quartel-general na casa dos Hubay, a família percebeu que o piano não resistiria ao regime comunista, recém-instalado em Budapeste, para tornar o país num satélite obediente aos ditames do Kremlin.
Aperceberam-se de quanto a liberdade recuperada após a derrota de Hitler recuara drasticamente, logo que as movimentações partidárias pró-comunistas prepararam a entrada das tropas soviéticas, que não hesitaram em estender os seus tentáculos até à linha percorrida no caminho para o assalto a Berlim (em Abril de 1945). Restou aos Hubay fugir da sua pátria, antecipando o fecho radical de fronteiras, instaurado pouco depois.
Sem condições para levar o portentoso instrumento musical, de que era herdeiro o artista plástico Andor Hubay Cebrian, ocorreu-lhe deixá-lo à guarda da Embaixada norte-americana em Budapeste, que o recebeu de bom grado, ciente do valor daquela peça feita por artesãos muito qualificados, ao longo de 6 anos. Num ápice, o Bösendorfer converteu-se na coqueluche daquela Missão Diplomática, que o estimou durante várias décadas.
Quando a Hungria se libertou do jugo soviético e recuperou a independência (com eleições livres, em Março de 1990), grande parte dos bens e do património imobiliário expropriado (parcialmente pelos nazis e integralmente pelos comunistas) foi devolvido aos antigos donos. Nessa sequência, os descendentes do pintor Hubay contactaram a Embaixada dos EUA para reaverem o raríssimo piano. Para surpresa sua, foram precisos anos de negociações até ser acordada uma solução salomónica com a Embaixada, traduzindo-se na transferência do “piano branco” para o Museu de Musicologia de Budapeste, onde permanece.
Quando fugiram à ocupação soviética da Hungria, os Hubay rumaram à Noruega, pátria da senhora Edle Astrup Hubay Cedrian (Noruega 1905-1989, em Portugal), que se tinha destacado pela elegância e cultura nos salões da elite húngara. Foi naquele país nórdico que Hubay recebeu um convite da Vista Alegre para ser Director Artístico e igualmente uma proposta para leccionar numa universidade norte-americana. Sem vontade de deixar a Europa e querendo ganhar distância da perigosa URSS, a família optou por Portugal, onde ficou até ao fim dos seus dias. Aqui escreveu a mulher de Hubay, Edle, uma autobiografia – «Uma Vontade Indomável. De Budapeste ao Estoril» – onde conta as peripécias da família, começando pelas dificuldades vividas na Hungria do pós-guerra. Um par de páginas são dedicadas a Portugal. O seu testemunho interpelativo ajuda (creio) a perceber a história do país:
Andor, Rozann e Edle - Noruega, 1952 |
EXCERTO DA AUTOBIOGRAFIA DE EDLER
«A sua fama [de Andor, o marido], entretanto, chegava além-fronteiras. Em 1952, recebeu, quase em simultâneo, duas propostas: a primeira vinha da Universidade americana de Pittsburg, e propunha-lhe uma cátedra de ensino de arte. A segunda, oriunda de Portugal, oferecia-lhe o lugar de director artístico da fábrica de porcelana Vista Alegre.
Quanto à decisão tomada, confesso-me totalmente responsável. Não queria, em circunstâncias nenhumas, ir para os Estados Unidos. Em Portugal, ao menos, estaríamos longe dos russos e dos comunistas…
Como é que eu posso descrever os muitos anos que vivemos em Portugal? Aprendemos a amar um novo país, ao mesmo tempo que nos apaixonámos pelos portugueses. No entanto, a nossa impressão era de que o tempo parara, no que dizia respeito ao Governo e à classe alta. Como se tivessem sido enfeitiçados nalgum castelo de uma Bela Adormecida. Se não tivéssemos já testemunhado o reverso da medalha na nossa dolorosa experiência de vida, talvez não tivéssemos dado pelo pequeno mal-estar que dormia por debaixo da superfície aparentemente tranquila.
Edle em Olhão, 1952, numa série Produção de moda. Fotografia de Henry Clarke |
Na fábrica da Vista Alegre, Andor iniciou, cautelosamente, um processo de modernização e melhoramentos. Mas esbarrou sempre com alguma hostilidade por parte dos proprietários. Como é evidente, não estávamos em situação – nem tínhamos esse propósito – de fazer uma revolução. O meu marido queria apenas melhorar algumas condições de trabalho. Criou-se uma situação um tanto incómoda entre Andor e a gerência da fábrica, e ele demitiu-se. Continuou, no entanto, ligado à parte artística até 1958, altura em que aquela fábrica já gozava de grande prestígio internacional.
Com a ajuda do nosso amigo Salvador Corrêa de Sá, Visconde de Soveral, fomos, então, viver para o Estoril. Andor ensinava desenho e pintura na Escola Americana, e também a filhos de alguns dos nossos novos amigos, e era treinador de futebol no colégio inglês St. Julian’s. Eu sei que ele sempre gostou muito de futebol, mas daí a ser treinador… isso confesso que me surpreendeu bastante!
Em 23 de Outubro de 1956, o povo húngaro subleva-se, em mais uma clara demonstração de repúdio pelo regime comunista que lhe é imposto. O mundo assiste, em desespero, à chacina de centenas de húngaros. Em Portugal, uma velada que reuniu milhares de pessoas desfilou pela baixa até aos Paços do Concelho, em apoio ao povo húngaro.
Andor fazia parte do grupo que apoiava o governo húngaro no exílio. Constantes telefonemas para Budapeste tornam-no suspeito. A PIDE vem buscá-lo para interrogatório e, durante três dias, a família não sabe nada dele. Uma vez mais, o seu amigo Corrêa de Sá, amigo de Salazar, vem em seu auxílio. Andor volta nesse mesmo dia para casa, conduzido num Mercedes negro com motorista. Risonho, conta-nos que foi, apenas, interrogado. “Comparada com os comunistas russos, a PIDE é um bebé de berço! – graças a Deus.”
Depois de ter feito o ensino secundário no St. Julian’s, Rozann casou em Oslo, em casa do meu irmão, numa festa que durou três dias. Um verdadeiro casamento cigano! O marido, o barão austríaco Giselbert von Schmidburg, era director de um banco, em Bruxelas, e foi para lá que eles foram viver. Lászlo, terminado o Colégio St. Columban’s, foi cursar gestão na Universidade de St. Gallen, na Suíça.
De vez em quando, em ocasiões especiais como o Natal ou a Páscoa, ou durante as férias de Verão, os meus filhos vinham a casa. Eram momentos inesquecíveis, de grande alegria. Por essa altura, estavam em Portugal outros refugiados húngaros e convivíamos muito com eles. O regente Horthy, a mulher e o filho sobrevivente, Nicky, a nora Illy, o irmão de Otto Habsburg, o sobrinho Joseph e Maria, sua mulher. Nossos amigos eram também os Condes de Barcelona e os seus filhos. O actual rei de Espanha, da mesma idade de Rozann, passava muitos dias em nossa casa.»
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)