17 janeiro 2025

Fado perseguição

Ontem a minha tese de doutoramento sofreu um impulso motivacional (expressão muito moderna): de manhã tive reunião com o meu orientador, de tarde com a minha co-orientadora. Em bom rigor não sei se preciso de motivação ou de disciplina: não sei se lá vou com uma frase que estimula - tu consegues, é só quereres - se com uma frase que educa - devias ter vergonha! Todas as razões são boas para se adiar a redacção de uma tese de doutoramento: a faixa de Gaza, uma ligeira tosse que pode ser tuberculose, uma viagem em Novembro que requer planeamento, uma mosca que zumbe ou um cão que ladra, um teclado que evidencia uma nódoa misteriosa. Nada há de mais fácil do que justificar uma indolência chamando-lhe outras coisas, tal como arritmia de vontade, o que quer que isso queira dizer. 

Tanto numa conversa como noutra falámos de temas que quero abordar: luto, fé, morte, silêncio, combate, metáfora, milagres, Deus, tristeza, oração. Não sei se são temas que me perseguem, se são temas que persigo. Podiam responder-me que os temas, com a sua dimensão imaterial, não perseguem ninguém, pelo que me restaria ser eu a persegui-los. Não estou certo disso. Talvez esta imaterialidade me persiga há 24 anos e seja agora momento de qualquer coisa, de que não estou certo. Ou talvez não haja perseguição nenhuma, mas apenas uma companhia que me vai lembrando das coisas importantes, como referem tão bem estes versos de T S Eliot (in The Waste Land)

Who is the third who walks always beside you?
When I count, there are only you and I together
But when I look ahead up the white road
There is always another one walking beside you
Gliding wrapt in a brown mantle, hooded
I do not know whether a man or a woman
—But who is that on the other side of you?’

Se calhar o terceiro que caminha ao meu lado é, também, este conjunto de temas importantes.

JdB

16 janeiro 2025

Em memória de Fernanda Maria (1937 - 2024)

Não passes com ela na minha rua 

Ao fim de tantos anos de ser tua
Amaste outra, casaste, foste ingrato
Vi-te passar com ela à minha rua
Abracei-me a chorar ao teu retrato 

Podia insultar-te quando te vi
Ferida neste amor supremo e farto
Mas vinguei-me a chorar, chorei por ti
Por entre as persianas do meu quarto 

Eu bem sei que me tentas convencer
Mas o que me propões, não é bastante
Se não servi, p'ra ser tua mulher
Também não devo ser a tua amante 

Casaste, sê feliz, Deus te proteja
Não te desejo mal, e tanto assim
Que não tenho ciúme nem inveja
Como a tua mulher teve de mim 

Mas olha meu amor, eu não me importa
Antes que fosses dela, eu já fui tua
Podes sempre bater à minha porta
Mas não passes com ela à minha rua 

***

Ler esta letra com atenção (talvez antes de a ouvir cantada por Fernanda Maria) é perceber uma certa genialidade de Carlos Conde, o seu autor. Em cinco quadras conta-se uma vida - ou um fim de vida: o ciúme, a dor, a dignidade de não ser amante de ninguém. Carlos Conde é impar, basta ler alguns versos de grande criatividade: um amor supremo e farto, o choro entre as persianas do meu quarto, o trocadilho em antes que fosses dela, eu já fui tua, ou a ligação entre porta e rua.

Desaparece Fernanda Maria, e já não há ninguém (parece-me) daquela geração de fadistas. 

JdB 


15 janeiro 2025

Vai um gin do Peter’s ?

 VISTA ALEGRE EM FESTA, RELÓGIOS ANTIGOS E BEETHOVEN

Até 31 de Janeiro, está patente na Medeiros e Almeida uma exposição bem recheada de peças da Vista Alegre (cerca de um milhar), que superabundam no acervo da Fundação, pois Margarida Medeiros e Almeida descendia do fundador da conhecida fábrica de porcelanas e era filha do administrador-delegado da V.A. – João Theodoro Pinto Basto.

O casal coleccionador, que não teve filhos.

Em Junho de 1923, Margarida Rita de Jesus da Santíssima Trindade de Castelbranco Ferreira Pinto Basto (1898-1971) casa-se com António de Medeiros e Almeida (1895-1986), que foi um empresário de sucesso. Aos carros acrescentou, mais tarde a aviação, entrando depois na produção de açúcar e noutros negócios, que lhe deram folga para investir em arte. Assim constituiu uma colecção privada com boas peças e primorosamente expostas na casa aconchegante e bonita onde viveu o casal. 

A exposição temporária toma o diminutivo por que Margarida era conhecida entre os mais chegados – «Coleção da Titita. Vidros & Porcelanas Vista Alegre» – e enquadra-se nas comemorações dos 200 anos da V. A. Terá visitas guiadas (de 30 minutos, sem marcação, admissão por ordem de chegada) nos próximos dias 16 Jan. às 13h30, 23 Jan.  às 18h30 e 30 Jan. às 13h30.  


Conjunto de c. 40 peças de vidro da Real Fábrica da Vista Alegre, realizados entre 1837 e 1846,
com camafeus cerâmicos incrustados, por recurso à técnica de “Crystallo Ceramie”.
Os camafeus apresentam efígies de personalidades nacionais e internacionais conhecidas,
entre artistas, soberanos, políticos, etc.

Uma colecção valiosa do acervo Medeiros e Almeida inclui 600 relógios, em que alguns dos modelos mais emblemáticos mereceram curta-metragens explicativas sobre as histórias imprevistas que guardam, como o artefacto da famosa casa Breguet encomendado pelo general Junot, depois adquirido pelo Duque de Windsor e, em 1964, comprado por Medeiros e Almeida num leilão compreensivelmente renhido. A série intitula-se «LaMontre» e já conta 9 episódios, dos quais três são dedicados a peças da Fundação: LaMontre. (@lamontremag) • fotos e vídeos do Instagram.

A 24 de Janeiro, às 19h00, a Gulbenkian passará em sinal aberto (nas plataformas digitais), o magnífico concerto para piano e orquestra, de Beethoven, conhecido por «Imperador». Será interpretado pelo grande pianista russo Alexander Melnikov e o maestro será o finlandês Hannu Lintu. O programa desse final de tarde inclui também a Sinfonia «Mathis o Pintor» de Hindemith, baseada na ópera homónima, que questiona o papel do artista na sociedade. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

14 janeiro 2025

D' A Banda como metáfora

A Banda

***

A letra desta música de Chico Buarque (letra que também é dele), tem, como provavelmente muitas músicas, uma dupla leitura. A primeira - mais óbvia e imediata - é a de uma banda que passa por uma povoação, trazendo alegria, transformação e esperança; tudo volta à primeira forma quando a banda se vai embora. A segunda leitura, também óbvia para quem gosta de ver além do desfocado, ou quem gosta, simplesmente, de ser criativo, é que a letra é uma metáfora; e sendo uma metáfora o horizonte que se abre é vasto, quase infinito. Divaguemos:

A letra de A Banda pode ser uma metáfora para o 25 de Abril de 1974, um momento de alegria, esperança e transformação para Portugal que redunda em tristeza, desesperança e imobilismo. 

Parte da letra de A Banda pode ser uma metáfora para o Carnaval, tão bem retratada na Marcha da 4ªfeira de Cinzas, 

Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas foi o que restou  

ou também uma metáfora para o fim de uma feira, tão bem retratada no fado Arraial, da autoria de João Ferreira Rosa

Acabou o arraial
Folhas e bandeiras já sem cor
Tal qual aquele dia em que chegaste
Tal qual aquele dia, meu amor 

A letra de A Banda pode ser, numa última entrada desta possível lista de sugestões, uma metáfora para uma noite de amor carnal: o anúncio (uma promessa de beijo / dois braços à minha espera), a exaltação, a transformação, o êxtase e, por fim, o retomar da rotina rotineira.

Acima de tudo, a letra de A Banda é uma metáfora para o dia seguinte - o day after - e não para o dia anterior, nem para o dia durante. Apesar da toada alegre, sambista (que eu tive oportunidade de dançar numa passagem de ano longínqua e brasileira de 1975, talvez) esta letra é sobre a desilusão das coisas que acabam, que morrem, que desaparecem. Nesse sentido - e só nesse sentido - afasta-se da Marcha da 4ªfeira de Cinzas que, apesar de tudo, tem um final esperançoso

E o povo cantando seu canto de paz
Seu canto de paz    

para se aproximar do Arraial, que acaba com uma nota de tristeza:

Abro as janelas, ainda cheira a rosmaninho
Vejo-me ao espelho, ainda vejo luto

É disto que fala Chico Buarque, arrisco eu.

 JdB

13 janeiro 2025

Poemas dos dias que correm

 ÍTACA

Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestregónios, e mais monstros,
um Poseidon irado – não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestregónios, e outros monstros,
Poseidon em fúria – nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas.
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito. 

Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas. 

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te. 

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca. 

Konstantínos Kaváfis
Tradução de Jorge de Sena

12 janeiro 2025

Festa do Baptismo do Senhor

 EVANGELHO – Lucas 3,15-16.21-22

Naquele tempo,
o povo estava na expectativa
e todos pensavam em seus corações
se João não seria o Messias.
João tomou a palavra e disse-lhes:
«Eu batizo-vos com água,
mas vai chegar quem é mais forte do que eu,
do qual não sou digno de desatar as correias das sandálias.
Ele batizar-vos-á com o Espírito Santo e com o fogo».
Quando todo o povo recebeu o batismo,
Jesus também foi batizado;
e, enquanto orava, o céu abriu-se
e o Espírito Santo desceu sobre Ele
em forma corporal, como uma pomba.
E do céu fez-se ouvir uma voz:
«Tu és o meu Filho muito amado:
em Ti pus toda a minha complacência».

09 janeiro 2025

Pensamentos dos dias que correm

 O Início do Conhecimento

Um primeiro sinal do início do conhecimento é o desejo de morrer. Esta vida parece insuportável, a outra, intangível. A pessoa já não se envergonha mais de querer morrer, pede para ser levada da velha cela que ela odeia para uma nova, que só então aprenderá a odiar. Persiste um resíduo de fé durante a transferência se o senhor do lugar casualmente passar pelo corredor, avistar o prisioneiro e disser: «Este homem vocês não podem prender outra vez. Ele vai para a minha casa».

Franz Kafka, in 'Os Aforismos de Zurau ou Reflexões no Pecado, Esperança, Sofrimento, e o Caminho da Verdade (13)'

07 janeiro 2025

Da surpresa *


Velha Deli, Janeiro 2017

Uma conversa ainda com resquícios indianos faz-me abordar o tema: como nasceu o (sor)riso? No fundo, o que me interessa saber é quem / o quê, quando e em que circunstâncias (sor)riu pela primeira vez.

Vou presumir que há inúmeras teorias mas, para o devaneio em apreço, bastam-me duas: (i) o primeiro (sor)riso nasceu, primitivamente, do alívio de uma situação de perigo; (ii) o primeiro (sor)riso nasceu nos animais inferiores que o utilizavam pelo som - o repuxar dos cantos da boca e a exibição dos dentes provocava um ruído que para os outros animais significava "não sou perigoso". 

Como já aqui escrevi uma vez, é pelo sorriso que se estabelece o comércio entre os Homens. Rimos de (ou por causa de), mas sorrimos para. É por isso, por esta ligeira nuance, que acredito que as duas definições acima se referem a manifestações diferentes, embora correlatas: a primeira, a riso; a segunda, a sorriso.

A surpresa - ou uma certa surpresa, ou ainda uma surpresa manifestada de determinada forma - é o equivalente do sorriso, seja na sua versão facial, seja na sua versão verbal, que se desenvolve de seguida. Ou seja, é também a surpresa que estabelece o comércio entre os Homens, porque o comércio é uma troca de elementos, uma permuta de informações, opiniões, sensações ou artigos que determinam uma transacção. Se o sorriso diz ao outro "não sou perigoso", a surpresa abre uma porta: "estou interessado".

Uma troca de bens, serviços, palavras, emoções faz-se através de uma oferta e procura: do lado da oferta, quando alguém quer disponibilizar algo que outro (ainda) não tem; do lado da procura, a inversa do raciocínio precedente. Só me vendem cachimbos se eu não tiver nenhum e estiver interessado na sua aquisição, ou, tendo já muitos, quiser acrescentar ao stock (e um stock é uma colecção não trabalhada). O sorriso significa "pode entrar"; a surpresa (na sua íntima união com o verbo surpreender) significa "vai enriquecer o meu espólio". 

O sorriso estabelece um clima; a surpresa alavanca o clima, colocando o sucesso da troca no interlocutor. Quando nos surpreendemos por aquilo que o outro nos diz ou apresenta ou disponibiliza, estamos a revelar uma certa inferioridade saudável perante outro - descemos para que o outro suba, ou ficamos quietos para que o outro suba. O contrário disto é receber o vendedor de cachimbos com frases repetidas: "já tenho" ou "já tinha visto" ou "tem pouca relevância" ou "é só isto?". Onde quer que estejamos, o outro desce.      

Não sei como, onde e por quem se manifestou a surpresa pela primeira vez. Mas estou certo de ter sido alguém que quis dizer através de um sorriso: "estou interessado." Porque uma voz que não se surpreende é um rosto que não sorri. 

JdB

* publicado originalmente a 6 de Março de 2017

06 janeiro 2025

Dia de Reis

 

Adoração dos Magos [Domingos António de Sequeira (1768-1837), MNAA]


Poemas dos dias que correm

 RECEITA DE ANO NOVO

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.


05 janeiro 2025

Solenidade da Epifania do Senhor

 EVANGELHO – Mateus 2,1-12

Tinha Jesus nascido em Belém da Judeia,
nos dias do rei Herodes,
quando chegaram a Jerusalém uns Magos vindos do Oriente.
«Onde está – perguntaram eles –
o rei dos judeus que acaba de nascer?
Nós vimos a sua estrela no Oriente
e viemos adorá-l’O».
Ao ouvir tal notícia, o rei Herodes ficou perturbado,
e, com ele, toda a cidade de Jerusalém.
Reuniu todos os príncipes dos sacerdotes e escribas do povo
e perguntou-lhes onde devia nascer o Messias.
Eles responderam:
«Em Belém da Judeia,
porque assim está escrito pelo profeta:
‘Tu, Belém, terra de Judá,
não és de modo nenhum a menor
entre as principais cidades de Judá,
pois de ti sairá um chefe,
que será o Pastor de Israel, meu povo’».
Então Herodes mandou chamar secretamente os Magos
e pediu-lhes informações precisas
sobre o tempo em que lhes tinha aparecido a estrela.
Depois enviou-os a Belém e disse-lhes:
«Ide informar-vos cuidadosamente acerca do Menino;
e, quando O encontrardes, avisai-me,
para que também eu vá adorá-l’O».
Ouvido o rei, puseram-se a caminho.
E eis que a estrela que tinham visto no Oriente
seguia à sua frente
e parou sobre o lugar onde estava o Menino.
Ao ver a estrela, sentiram grande alegria.
Entraram na casa,
viram o Menino com Maria, sua Mãe,
e, prostrando-se diante d’Ele, adoraram-n’O.
Depois, abrindo os seus tesouros,
ofereceram-Lhe presentes:
ouro, incenso e mirra.
E, avisados em sonhos
para não voltarem à presença de Herodes,
regressaram à sua terra por outro caminho.

02 janeiro 2025

Em memória de Adília Lopes (1960 - 2024)

Deus é a Nossa Mulher-a-Dias

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a vida
porque achamos
que não presta

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a fé
porque achamos
que é pirosa 

Adília Lopes, in 'Florbela Espanca Espanca'
***
Para um Vil Criminoso

Fizeste-me mil maldades
e uma maldade muito grande
que não se faz
acho que devo ter sido a pessoa
a quem fizeste mais maldades
nem deves ter feito a ninguém
uma maldade tão grande
como a que me fizeste a mim
não sei se tens remorsos
tu dizes que não tens remorsos nenhuns
porque dizes que és um vil criminoso
para mim
eu também sou uma vil criminosa
mas não para ti
desconfio que tens o remorso
de ter alguns remorsos
por me teres feito mil maldades
e uma maldade muito grande
a maldade muito grande está feita
e não se faz
acho que essa maldade muito grande
nos aproximou um do outro
em vez de nos afastar
mas para mim é um drôle de chemin
e para ti também deve ser
mas com um vil criminoso nunca se sabe

Adília Lopes, in 'Um Jogo Bastante Perigoso'

01 janeiro 2025

Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus

 EVANGELHO – Lucas 2,16-21

Naquele tempo,
os pastores dirigiram-se apressadamente para Belém
e encontraram Maria, José
e o Menino deitado na manjedoura.
Quando O viram, começaram a contar
o que lhes tinham anunciado sobre aquele Menino.
E todos os que ouviam
admiravam-se do que os pastores diziam.
Maria conservava todas estas palavras,
meditando-as em seu coração.
Os pastores regressaram, glorificando e louvando a Deus
por tudo o que tinham ouvido e visto,
como lhes tinha sido anunciado.
Quando se completaram os oito dias
para o Menino ser circuncidado,
deram-Lhe o nome de Jesus,
indicado pelo Anjo,
antes de ter sido concebido no seio materno.

Vai um gin do Peter’s ?

 ONDE CONCORDAM LEONARDO DA VINCI, HOPKINS E OS SCORPIONS? 

Sabem tão bem as boas companhias, ao longo da vida! E são tantas, numa exuberância de formas deliciosamente imprevistas. Até de gente distante, no tempo e no espaço, nos chegam palavras de ânimo e de esperança espontâneas, por pura gratuitidade.  Com um pouco de atenção, descobrimos incontáveis gestos humanos que ajudam a iluminar o nosso dia-a-dia, inclusive onde menos se esperam e de épocas recuadas, como de geografias longínquas! 

Para o começo do Novo Ano – do novo tempo inteiro e límpido que se reergue no horizonte da nossa vida – o primeiro dia é dedicado à Paz. A Cristandade juntou-lhe a festa de Santa Maria Mãe de Deus, medianeira e guardiã-mor da Paz. Há bons anos, os Scorpions surpreenderam os milhares de fãs reunidos na Cidade do México, para um concerto memorável, dedicando ao público entusiasmado a composição do brasileiro Herivelto Martins: «Avé Maria no Morro». É uma coincidência curiosa ser interpretada por um grupo de heavy metal alemão a música composta em plena Segunda Guerra Mundial – 1942 –, quando as tropas de Hitler semeavam o terror pelo mundo. A voz cristalina de Klaus Meine, imortalizada em “Winds of Change” e “Still loving you” entre outras, com um domínio extraordinário dos agudos, soa incrivelmente doce nesta ária transposta para a língua falada no país onde actuou a banda de Hannover:  


Letra em espanhol 

«AVE MARIA DEL MONTE …

«Ave Maria del monte preciosita, chiquitita
Es el morro de los negros la mansion
Extraño mundo tan desgraciada y tan sencilla
Ni siquiera una capilla te aprovecha para rezar

Pero si vive en Tierra y Cielo y (cambiara)
Y la noche con su manto cubre las losas que van a amar

Alla se escucha, al fin del dia una plegaria
Ave Maria
Alla se escucha, al fin del dia una plegaria
Ave Maria
Ave Maria
Aunque no tenga capilla, reza la gente sencilla

Ave Maria»

De Herivelto Martins (1912-1992) 

Outra voz penetrante, como a de Anthony Hopkins, oferece-nos uma súmula interpelativa sobre o alcance histórico do Bebé, nascido há dias, em Belém, que se oferece à humanidade como fonte de Paz. O premiadíssimo actor de Hollywood desfia num minuto e meio os múltiplos paradoxos que, pelos critérios humanos, tornam única e misteriosa a figura que mais revolucionou a História, mesmo se considerássemos apenas a dimensão humana de Cristo, sem atender à sua natureza divina. Por que terá sido temido por governantes um rei sem exércitos, e chamado de Mestre, seguido por multidões, embora não fosse reconhecido na hierarquia judaica e menos ainda na romana? Por que foi violentamente invejado pelas elites do seu povo, apesar de não possuir riquezas exteriores e levar uma vida errante, sumamente desconfortável, cuja maioria dos discípulos era pobre e insignificante?  E por que continua, hoje, a ser invocado e seguido um proscrito do Império Romano, condenado à mais humilhante e dolorosa das mortes?... 


Coube ao genial pintor da Mona Lisa uma reflexão imperdível e auspiciosa para inaugurar o Novo Ano: «As mais sublimes palavras de amor, são ditas no silêncio de um olhar.»  Quem melhor do que um pintor da craveira de Leonardo da Vinci (1452-1519) para falar da força ímpar do silêncio, quando é habitado por uma presença de Amor?  Na mesma senda, C.S.Lewis lembrou que a existência humana se eleva e completa, quando ecoa uma grandeza infinita gravada no seu coração: «Não sou eu. Sou só um sinal. Olha! Olha! Quem te lembro?» Na gruta de Belém, os pastores e os Magos encontraram a resposta… igualmente ao nosso alcance. FELIZ 2025!

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

Acerca de mim

Arquivo do blogue