14 março 2010

4º Domingo da Quaresma

De tanto chamar a Deus, “Senhor”, (e não deixa de o ser, mas certamente é “Senhor à sua maneira” e não à nossa!) podemos esquecer o nome mais belo que Jesus nos deu. O nome, “Pai”, que Jesus exprimia em aramaico: “Abba”, “Paizinho”! É com ele que Andrei Tarkovski termina o belíssimo filme “Sacrifício”. Jesus não queria que olhássemos para Deus como um rei, um senhor ou um juiz. Esses títulos evocam superioridade, exigem obediência e submissão, reclamam o cumprimento de deveres. Pai implica relação, intimidade, descoberta e amor.
É uma maravilha o pai desta parábola. Não pensa em si e não se ofende quando o filho mais novo o trata como “morto” e lhe pede a sua parte da herança. Espera-o e comove-se ao vê-lo ao longe, renunciando a toda a compostura para o abraçar e beijar. Devolve-lhe a dignidade de filho e prepara-lhe a verdadeira festa onde a alegria supera em muito as anteriores diversões e prazeres. Não pede contas dos bens esbanjados nem castiga os seus desvarios. Tudo parece pronto para um final feliz.
Mas uma sombra vem obscurecer esta felicidade. O irmão mais velho fica ressentido. Ele, que sempre tinha cumprido tudo, revolta-se com o excesso de generosidade do pai. Não era justo. Os seus méritos não eram reconhecidos. Não faz sentido desbaratar mais bens com aquele que tanto desperdiçou. Sem se dar conta, dentro de si, o dever tinha morto o amor. Por isso, trata o pai como um senhor, e o irmão como um estranho.
Mais uma vez, o pai é surpreendente. Sai de casa, ouve o filho e procura reacender nele, de novo, o amor apagado. Está sempre a caminhar este pai! A ir ao encontro dos filhos perdidos. Um perdido na distância, outro na proximidade; um na desobediência, outro no dever. Que frase tão bela diz ao filho mais velho: “Tu estás sempre comigo”! E insiste na necessidade da festa. Como que para nos dizer que todo o perdão é uma festa, e que nem a teologia, nem o direito canónico, nem a catequese, nem a liturgia podem esquecer isto. Trazemos um pouco dos dois irmãos na alma? Umas vezes um, outras, o outro? E do pai, o que transparecemos? A casa do Pai, que também acredito ser a Igreja, produz a memória feliz que alimenta a esperança de um regresso? Com que alegria e projecto de crescimento acolhemos? Que disponibilidade criamos para fazer festa? É muito difícil dizer “Pai” simplesmente por dever!

P. Vítor Gonçalves


Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
os publicanos e os pecadores
aproximavam-se todos de Jesus, para O ouvirem.
Mas os fariseus e os escribas murmuravam entre si, dizendo:
«Este homem acolhe os pecadores e come com eles».
Jesus disse-lhes então a seguinte parábola:
«Um homem tinha dois filhos.
O mais novo disse ao pai:
‘Pai, dá-me a parte da herança que me toca’.
O pai repartiu os bens pelos filhos.
Alguns dias depois, o filho mais novo,
juntando todos os seus haveres, partiu para um país distante
e por lá esbanjou quanto possuía,
numa vida dissoluta.
Tendo gasto tudo,
houve uma grande fome naquela região
e ele começou a passar privações.
Entrou então ao serviço de um dos habitantes daquela terra,
que o mandou para os seus campos guardar porcos.
Bem desejava ele matar a fome
com as alfarrobas que os porcos comiam,
mas ninguém lhas dava.
Então, caindo em si, disse:
‘Quantos trabalhadores de meu pai têm pão em abundância,
e eu aqui a morrer de fome!
Vou-me embora, vou ter com meu pai e dizer-lhe:
Pai, pequei contra o Céu e contra ti.
Já não mereço ser chamado teu filho,
mas trata-me como um dos teus trabalhadores’.
Pôs-se a caminho e foi ter com o pai.
Ainda ele estava longe, quando o pai o viu:
encheu-se de compaixão
e correu a lançar-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos.
Disse-lhe o filho:
‘Pai, pequei contra o Céu e contra ti.
Já não mereço ser chamado teu filho’.
Mas o pai disse aos servos:
‘Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha.
Ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés.
Trazei o vitelo gordo e matai-o.
Comamos e festejemos,
porque este meu filho estava morto e voltou à vida,
estava perdido e foi reencontrado’.
E começou a festa.
Ora o filho mais velho estava no campo.
Quando regressou,
ao aproximar-se da casa, ouviu a música e as danças.
Chamou um dos servos e perguntou-lhe o que era aquilo.
O servo respondeu-lhe:
‘O teu irmão voltou
e teu pai mandou matar o vitelo gordo,
porque ele chegou são e salvo’.
Ele ficou ressentido e não queria entrar.
Então o pai veio cá fora instar com ele.
Mas ele respondeu ao pai:
‘Há tantos anos que eu te sirvo,
sem nunca transgredir uma ordem tua,
e nunca me deste um cabrito
para fazer uma festa com os meus amigos.
E agora, quando chegou esse teu filho,
que consumiu os teus bens com mulheres de má vida,
mataste-lhe o vitelo gordo’.
Disse-lhe o pai:
‘Filho, tu estás sempre comigo
e tudo o que é meu é teu.
Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos,
porque este teu irmão estava morto e voltou à vida,
estava perdido e foi reencontrado’».

2 comentários:

Anónimo disse...

Há um quadro do Rembrandt que é sobre este tema. É lindo de morrer. É comovente a forma como pai e filho se encontram em frente um do outro. A luz é magnífica. Um momento em que o tempo e o mundo deixaram de existir... É uma verdadeira fotografia de um momento carregado de emoção. Está no Hermitage, em S. Petersburgo. Obrigada. pcp

JdB disse...

pcp: conheço bem esse quadro - belíssimo, de facto - não por o ter visto, mas por ser a capa de um livro interessante sobre este tema do regresso do filho pródigo. Uma análise sobre todos os intervenientes da parábola.

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