Durante muito tempo foi apenas o Miguel, sendo que a palavra a
itálico se refere a uma dimensão a ser explicada não tarda um instante. Era um homem
reconhecidamente bonito, com um cabelo forte, negro, ondulado e abundante a
encimar uns olhos muito verdes, quase transparentes. Além de tudo era alto e
bem constituído fisicamente, o que reforçava a certeza da injustiça terrena: uns
são quase tudo, outros são pouco mais do que nada.
Por volta dos 30 anos, o advérbio apenas
viria a ser substituído pelo substantivo padre
– ambas as expressões a itálico, revelando, porém, realidades profundamente
diferentes. Poupemos na caracterização da melena negra e do inegável corpore sano, porque a mudança de
estatuto não implica alterações obrigatórias de carácter físico. Percebeu-se então o que já
se suspeitava: tudo lhe assentava bem, fosse um polo coçado e umas calças de
ganga velhas, um casaco de bom corte, uma camisa azul riscada com um cabeção –
ou mesmo uns paramentos antigos debruados a ouro fino.
Num dia de Maio, com um sol
intenso bafejado por uma brisa suave, Matilde entrou na igreja onde o Padre
Miguel era prior, solicitando a resolução de um assunto que de momento não se
considera relevante. Tinha uma elegância fina, um conhecimento profundo do que
era e do que vestia, e uns óculos escuros de marca. Havia naquele corpo, esguio
sem ser magro, alto sem ser desconforme, uma consciência clara que podia
traduzir-se (digo eu, que não lhe perguntei) numa frase simples: sou respeitadora da igreja, mas sou mulher.
A generosidade do decote e o tamanho da saia estavam na fronteira certa,
porque a elegância e o respeito não circulam no espaço shengen.
Quem observou o diálogo entre o
prior e a dama revela factos: um aperto de mão forte, uns
dedos femininamente esguios assentes num antebraço musculado, sorrisos e silêncios, o olhar dela que não se fixou no dele, as frases educadas que revelam uma despedida amistosa. Há depois o que a pretensa virtude qualificou no domínio do
subjectivo - ou da maledicência: a desadequação da roupa e do
contacto físico, umas gargalhadas demasiadas, uns
óculos escuros inapropriados, uma desconfiança materializada em o que vai sair daqui?
Durante algumas semanas as
conversas entre Matilde e o Padre Miguel continuaram com uma regularidade, feita não só de dias e horas marcadas, como também de adereços: o cabeção e a camisa
riscada, os óculos escuros e a elegância feminina, o riso e a conversa
prolongada. Uma mudança, para alguns nada despicienda, provocou uma alteração
ao nível da sintaxe. A partir de um dado momento já não se perguntava o que iria sair dali (interrogação)
mas sabia-se que algo iria sair dali (exclamação). De facto, ambos os
interlocutores se despediram com um beijo, o que configurava uma qualquer intimidade.
Em Setembro, a paróquia do
Padre Miguel organizou uma conferência cujo título (tal como o assunto de
Matilde) não se considera relevante, até por ser na linha de tantas outras.
Cadeiras dispostas em semicírculo, a da elegância feminina e dos óculos escuros no lado oposto da do cabeção e da cabeleira negra e abundante - frente a frente portanto, como se fossem dois toldos nas extremas de uma enseada. Naquele momento ninguém quis arriscar se as posições mútuas se deviam a acaso, se a estratégia. A sala em redor foi-se compondo com paroquianos numa
ocupação gradual – e nem sempre pontual – dos espaços vazios. No curtíssimo intervalo assistiu-se, então, ao inimaginável: frente ao prior, Matilde atirava
beijos, abria sorrisinhos marotos, estirava os lábios em boquinhas sensuais, acenava adeuses cúmplices. Pela assembleia perpassou uma guerra interior na qual se digladiavam os bons costumes da santa madre igreja e o erotismo mais descabido e público.
No fim da palestra, no preciso instante em que algumas pessoas mais acaloradas se enchiam de furor virtuoso e avançavam para uma flagrante indignação, Matilde levantou-se, abriu os braços e, olhando para
o prior, caminhou numa direcção ligeiramente desviada. Vítima de um tropeção, agarrou-se a custo a uma cadeira de madeira com estofos de napa preta.
Os óculos escuros misteriosos, imagem de marca da sua elegância feminina,
voaram pela sala, indiferentes ao recinto, ao público, à dona, ao decoro. O espanto foi
total: Matilde tinha um olho violentamente assimétrico e que a forçava a olhar
para a direita quando queria ir em frente, ou a olhar em frente se queria ir para a esquerda. Passou a dois metros do prior mas ainda teve
tempo para lhe dizer:
- Quer conhecer o meu noivo que está aqui atrás de si? É o
oftalmologista de que lhe falei.
JdB
3 comentários:
Muito muito bom texto! Parabéns! TdB
Delicioso!
Quer explicar o que é esse fetiche com os olhos das meninas? Uma tinha um olho de cada cor, esta é estrábica.
Gosto imeeeeeennnnnso do que escreve!
Não sei se consigo imaginar, sem restrições estéticas, uma camisa riscada encimada por um cabeção.
Uma delícia! Demais!! pcp
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