No seu esforço intrépido por atenuar o flagelo dos párias
da sociedade, Angelina adoptou um bebé cambodjano, com quem se cruzou enquanto
filmava uma película de aventuras, na pele de Lara Croft, nos fantásticos templos
de Angkor! Adoptou outro do Vietname e ainda uma terceira de outra nação paupérrima
– a Etiópia. Visitou regiões asfixiadas pela indigência, onde chegar vivo ao
dia seguinte é uma aventura. Esteve em campos de guerra, arrastando paparazzis
e repórteres, para dar voz aos desalojados. Recentemente, realizou um filme
sobre uma guerra fratricida, onde o manto de silêncio expôs, indecentemente, os
alvos de uma feroz purga étnica, no pequeno estado da ex-Jugoslávia: a
Bósnia-Herzgovina. «NA TERRA DE SANGUE E MEL»(1) atesta o sofrimento do grupo mais
indefeso dos terríveis anos de 1992 a 1995, quando a etnia sérvia pegou em
armas para ajustar contas antigas (da II Guerra) com a comunidade muçulmana, que
dizimou selvaticamente. Terá sido dos piores genocídios depois da II Guerra
Mundial, segundo a realizadora norte-americana.
Os ajustes de contas (leia-se: as vinganças) nunca são
simples, complicando intencionalmente o que antes fora simples, apesar de tudo.
Sim, era relativamente harmoniosa a coabitação entre as diferentes raças,
religiões e civilizações que viviam naquele enclave pobre. Fui disso
testemunha, quando estive em Medjugorje, no final dos anos 80.
Mas sempre que se pretendem apurar culpas, reivindicar direitos,
punir e fazer justiça unilateralmente, pela lei da bala, o resultado é desastroso.
Porque nunca uma arma foi capaz de dar vida! Isto que é uma evidência, desde o
princípio dos tempos, persiste em ser também uma tentação. Um erro tremendo,
suicida! Naturalmente que embatemos no mistério do mal, puro e duro.
Argumentação do General Šerbedžija
ao filho, para justificar a guerra:
"We're doing this for our children, so that they would not have to go to war when they grow up."
"We're doing this for our children, so that they would not have to go to war when they grow up."
É por aí que a realizadora-argumentista envereda, optando
por um casting local(2), integralmente falado na língua
bósnia. Actores bem dirigidos dão corpo à história de amor, que corre em pano
de fundo, criando um epifenómeno insólito na onda de terror semeada pelos
beligerantes.
O filme é longo, permitindo-nos familiarizar com várias
personagens, perceber um pouco as suas motivações, onde alguns dos soldados
também revelam os paradoxos da sua difícil circunstância. No fundo, quase todos
são apanhados na mesma ratoeira, com pouco espaço de escolha: uns fadados para máquinas
de guerra e outros para alvos a abater impiedosamente.
As duas horas de película obrigam-nos também a sentir a
pressão galopante da luta, sedenta de mais sangue, numa escalada de poder
despótica, que rapidamente atinge níveis animalescos. Como é costume nas
beligerâncias: os mais fracos são os mais atacados, confirmando a regra
horrenda de que um mal arrasta uma avalanche de outros piores. Nesse sentido, vemos
a cobardia transfigurar-se em sadismo numa baixeza
totalmente indigna do ser humano (mesmo em situações de combate), ou a cupidez arranjar
perigosos incentivos na inveja e num
orgulho enraivecido pela mesquinhez e pelo desgaste da guerra (também do lado
dos vencedores). Infelizmente, a mediocridade invade as mentes e vale tudo,
i.e., quanto pior melhor!
Neste contexto, onde as vítimas são usadas e abusadas –
para escudos humanos, sexualmente (a estatística avançada no fim dispara cifras
assustadoras, de 50.000 mulheres violadas), em espancamentos ociosos,
assassinatos cruéis, etc. – a relação afectiva entre um oficial sérvio e uma
prisioneira muçulmana vai decorrendo ao ritmo frenético e precário do cerco que
se aperta em volta dos fiéis de Maomé. Para complicar a relação: ele é um
militar exímio e filho do general mais assanhado da guerra. Mas gosta muitíssimo
dela, só dela, diferentemente dos outros militares, que se vão divertindo com
umas e com outras. Já gostava antes e nunca parou de gostar e de fazer tudo para a ter por
perto. Em situação de alto risco, até do ponto de vista de equilíbrio
psicológico. Por seu turno, ela é muito gira, de
modos suaves e sofisticados, pintora de talento e também gosta dele. Já gostava
e terá gostado até ao fim… apesar do final suscitar dúvidas, depois de tudo o
que padeceu. De meter medo! Impressionante as vezes que rasou a morte, que foi
horrivelmente humilhada, para além da revolta crescente face ao massacre imparável
contra o seu povo.
Um amor absolutamente em contra-corrente: quanto tempo
resistiria? Quantas vicissitudes superaria? Em que bases se sustentava, afinal?
Sem quebrar o suspense do filme, sublinho
apenas momentos reveladores da posição dele (no lado do poder) a respeito dela:
o primeiro incidente, evidencia o quanto ele arriscou para estar com ela, numa discoteca
de muçulmanos; quando ela foi feita prisioneira, protegeu-a desde a primeira
hora, sem abusar da sua posição de força e sendo respeitador – toda a
intimidade da sua relação percebe-se que tem o acordo de ambos; as vezes que
poupou a vida a muçulmanos por pensar nela, foram uma constante na sua forma de
estar na guerra; o preço que pagou por a manter hospedada no quartel-general
sérvio foi elevado (embora ela estivesse mais desprotegida), como arrojada e
generosa foi a visita clandestina à galeria de arte de Sarajevo, para lhe dar
gosto a ela, uma apaixonada por pintura; a rendição dele – auto-assumindo-se
como war criminal – reportava-se
inteiramente a ela! Resumia o que mais fracassara na sua vida…
E, no entanto, tudo era tão mais complexo, porque a
extrema dependência dela relativamente a ele (subjugação!) perturbava toda a
relação, tornando-a doentia e frágil. Claro que o problema decorria, sobretudo,
da situação de conflito. Só que não é a
faca que mata, mas o coração do homem, como alertava João Paulo II. E o
excesso de poder sobre os outros, tende a perverter qualquer relação, até mesmo
as afeições mais profundas.
O filme faz-nos viver a aridez repugnante da guerra, sem
momentos de alívio. Banda sonora reduzida aos mínimos, a irromper no fim com um
fundo musical que enquadra a mensagem de alerta ético, de justiça histórica, em
texto sóbrio sobre fundo negro, num luto profundo.
A presença forte de uma pintora na trama dá pretexto para
imagens excelentes, com retratos em sanguínea, de uma expressividade incrível, além
de uma pintura mural gigantesca, a concluir o enredo – auto-retrato de Ajla. Ressalta
nele o olhar envolto numa sombra espessa, de um azul triste, a evocar as muitas
lágrimas choradas e mais ainda por chorar. Funde-se também com o tom dos olhos
dele, desgostosos e perdidos, já sem conseguir vislumbrar um futuro em
conjunto. Representa ainda a dor d’alma, bem mais aguda e indizível do que ferida aberta,
por onde jorra sangue.
Um filme intenso, pesado, que nos faz ter pena de não ter
sabido parar tanta carnificina. A realizadora lamentava-se por não ter aliviado
o sofrimento infligido na Bósnia. Mas, em diferido, a sua narrativa ajudará a
fazer jus a tanta crueldade escusada, pelo menos contra a população muçulmana(3) .
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
_____________
(1)
FICHA TÉCNICA
Título original:
|
IN THE LAND OF BLOOD AND HONEY
|
Título traduzido
em Portugal:
|
NA TERRA DE SANGUE E MEL
|
Realização:
|
Angelina Jolie
|
Argumento:
|
Angelina
Jolie
|
Produzido por:
|
Graham King, Angelina
Jolie, Tim Headington e Tim Moore
|
Fotografia:
|
Dean Semler
|
Banda Sonora:
|
Pelo compositor libanês, Gabriel Yared
|
Duração:
|
127 min.
|
Montagem:
|
Patrícia Rommel
|
Ano:
|
2011
|
País:
|
EUA
|
Elenco:
|
Zana Marjanovic (Ajla
- a muçulmana bósnia)
Goran Kostic (Danijel
- o oficial sérvio)
Rade Servedzija (o
general - pai de Danijel, Nebojša Vukojević )
Dzana injo (a irmã de Ajla),
etc.
|
Local das filmagens:
|
Bósnia-Herzegovina e Hungria (Budapeste)
|
Site oficial:
|
www.inthelandofbloodandhoney.com
|
Premiado
|
Globo de Ouro do Melhor Filme Estrangeiro
Menção Honrosa no Festival de Sarajevo
Stanley Kramer Award
|
(2) Compreensivelmente, a escolha do elenco foi feita sem revelar
o nome da realizadora, só desvendado depois de a selecção estar terminada.
(3) O filme está a levantar celeuma junto da facção
sérvia, que se sente injustiçada por esta visão do conflito. No entanto, o
desbaste da população muçulmana na Bósnia foi e continua a ser uma evidência
estatística.
1 comentário:
Wow, what a text. Now I want to see this film. There is more to Jolie than the gossip magazines give her credit for. Thanks, PO
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