A sugestão de hoje é um filme de três minutos, que segue no final do gin.
Vencedor em Cannes, na categoria das curtas-metragens, «PORCELAIN UNICORN»(1) explora
uma metáfora linda, das intemporais, que percorre intacta toda uma vida, da
infância até ao alvor dos cabelos brancos.
Decorre num período intencionalmente hostil, a Segunda Guerra Mundial, na
situação mais extrema – o ápice da perseguição nazi aos judeus. Torna-se
especialmente tocante por decorrer no aconchego de casa de família, simples e
acolhedora. Ainda por cima com crianças amorosas, expoentes da inocência. Porém,
simbolicamente, exibem as marcas de pertença a pólos opostos: ela com a cruz de
David bordada na braçadeira, ele a imitar as milícias do Reich replicando o
mundo adulto que lhe era próximo…
Cinge-se a poucas personagens. Recorrendo a actos por demais conhecidos,
como a crueldade selvática das SS, oscila entre dois tempos q.b. distantes em
termos cronológicos, mas cruciais enquanto ciclos da vida humana. E centra-se
num símbolo forte: um unicórnio de uma beleza nívea e frágil, a caber na palma
de uma mão.
Enquanto brincava
aos soldados, o rapazinho descobriu uma
refugiada a brincar na clandestinidade. Mas, ao
invés dos
soldados, a
sua era uma missão de paz...
O galardão assinala-o como o Vencedor de uma Competição muito sugestiva
para cinema, promovida pela Philips, chamada Conte à sua Maneira («Tell It Your Way»). De facto, os três minutos
voam nas mãos do realizador Keegan Wilcox, expondo sugestivamente a semente de
bem que, anos mais tarde, cresceu e pôde vir em desforra de um tempo que fora
prisioneiro do mal total. Mas nem isso é completamente exacto, pois mesmo
durante esse período de trevas tinha havido espaço para uma intervenção
pessoal, minúscula, embora muito eficiente, à medida da pequena grande-criança
que a protagonizou! Demonstrou como há sempre uma aberta mínima para o exercício
da liberdade pessoal, mesmo em face das piores situações, permitindo mitigar (ainda
que ligeiramente) a fúria do ódio em acção.
O gesto heróico da criança é expressivo da importância de cada opção, incluindo
a mais ínfima, para definir ou consolidar um carácter. Porque a identidade
humana permanece em devir, desde o nascimento até à morte. Aquele menino
imberbe é a personificação da pessoa que escolhe, todos os dias, ser movida
pela bondade e pela coragem, apesar da coragem que isso implica.
Ora, a memória de um bom homem ajuda a que o tempo lhe seja favorável,
enquanto guardiã da percentagem de bem que se preserva, ao longo da vida. Nessa
arca de registos passados, o menino já crescido conseguiu reter o melhor
daquele episódio tremendo da infância. Assim, de um mal horrendo foi possível extrair
algum bem. Porque o seu tempo vivido na atenção aos outros, levou-o a querer repor
os estragos (possíveis) do tal outro tempo de bestialidade. A ponto de pouco ou
nada se ter perdido, naquela voragem devoradora de um antigamente sangrento e
desvairado.
Sem me deter em pormenor sobre a simbologia do unicórnio, vale a pena
sublinhar, em traços gerais, a riqueza mitológica deste cavalo branco de chifre
proeminente, com poderes mágicos. Na tradição ancestral, este ser feroz e
indomável significava o poder da alma e a junção de opostos, pelas diferentes
partes de animal que reunia (corpo de cavalo, patas de gazela, rabo de leão,
chifre de antílope). A sua captura envolvia um ritual especialíssimo, em que
uma jovem seria a única presença capaz de o atrair e domar. Sob o efeito da sedução
feminina, o unicórnio ficaria então à mercê dos caçadores. Não por acaso, foi o
símbolo exibido no final do grande filme «Blade Runner» (de Ridley Scott,
1982), quando as dúvidas sobre quem era ou não replicant estavam ao rubro e faltaria ainda capturar um… Na
tradição cristã converteu-se em símbolo de pureza, representação de Maria e
expressão da vida eremita e monacal.
Na curta-metragem, o sentido original do unicórnio reinventa-se e passa das
mãos da menina judia para o rapaz alemão, sendo depois sacrificado ao serviço
de uma manobra de diversão salvadora. Mas ressuscitará,
oportunamente, para celebrar a nova era de paz, na reconciliação posterior de
dois mundos que pareciam irreconciliáveis.
Comparável à delicadeza da amizade –impotente perante a força bruta das
armas– a porcelana quebradiça reflecte aqui a vitalidade intemporal dos valores
maiores, cuja beleza insiste em ser indefesa, demasiado acessível, maximamente
generosa. E se a vida está repleta destas riquezas subtis que, sob um aspecto
precário, escondem um poder infinito, eterno! Das que só o coração reconhece!
Que passam, subtilmente, de geração em geração, de coração a coração… acredito
que até ao fim dos tempos. Por isso tem tanto a ver com este tempo – BOA PÁSCOA
a todos.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2
semanas)
_____________
(1) FICHA TÉCNICA
Título original:
|
THE PORCELAIN UNICORN
|
Realização:
|
Keegan Wilcox
|
Argumento:
|
Keegan Wilcox
|
Duração:
|
3 min.
|
Ano:
|
2010
|
País:
|
EUA
|
Elenco:
|
Clayton Brown (um dos miúdos)
Ron Carlson (soldado nazi)
John C. Crow (soldado
nazi)
Fiona Perry (miúda judia)
|
Local das filmagens:
|
Los
Angeles - Califórnia
|
Prémios:
|
CANNES: Vencedor da Competição da Philips Tell It Your Way, na categora das curta-metragens.
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