Era 1981, talvez, e eu fumava Português Suave sem filtro.
Por duas vezes, em fins de semana com amigos, partilhei um exercício com quem estava ao meu lado, que podia ser companhia certa ou ocasional de restaurantes modestos: escrever na toalha de papel - nos interstícios dos cigarros, das nódoas de vinho tinto ou de gordura das viandas - palavras soltas, excertos de frases igualmente soltas que se iam proferindo durante aquela refeição. No fim, dividida a conta, levantada a loiça e sacudidos os despojos, dobrava-se a toalha escrevinhada e fazia-se a oferta, como se fosse um recuerdo, um agradecimento, um rendilhado em forma de nada para memória futura.
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Mencionam-me uma dissertação filosófica sobre um álbum de fotografias. Pós-segunda guerra mundial, talvez; nos Alpes, parece. Uma fotografia de um homem parcialmente de costas, outra de uma mulher a sorrir. Depois, tudo o resto é paisagem - a neve, os montes, um carro ao longe, uma casa bucólica, uma vaca sem passado nem futuro. Invento eu, que só as duas primeiras fotos, a data e o local foram citados. O resto fica em aberto, ao devaneio de cada um. Paisagem, sempre. O homem não aparece mais, a mulher, se sorri, já não é para a câmara.
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O que distingue os dois "acontecimentos"? Nada. Falo de duas coisas talvez iguais, e contudo diferentes. Uma toalha de mesa ornada com semi-frases soltas e anónimas é igual a um álbum de fotografias onde não se identifica mais do que uma época, um local, um retalho de costas ou um sorriso quiçá ingénuo. São fragmentos de vida que dizem tudo ou não dizem nada, consoante os olhos de quem os vê. Para os mais afortunados talvez digam o suficiente, e esse "suficiente" seja uma infinidade de hipóteses, um centro vital pejado de saídas para a interrogação.
Não saber é o caminho mais feliz, porque é o caminho de todas as hipóteses. O que distingue o personagem fictício mais fascinante do ser humano mais baço? A vida do primeiro resume-se ao conteúdo do livro - fora dele não existe. Tudo o que há para saber está vertido nas duzentas páginas do romance. A vida do segundo, pelo contrário, é um jogo de cartas que pode deduzir-se, adivinhar-se, supor-se. É uma toalha de papel para onde se transcreveram frases soltas e incompletas; é um álbum onde se vêem um pedaço de costas e um sorriso quiçá ingénuo. Parece pouco, mas esse aparente pouco é quase tudo.
JdB
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