O nome dele surgiu
por puro acaso num jantar social. Há instantes que são marcantes, porque
determinam o fluxo de uma conversa que parece inexistir na mente dos
interlocutores. Num minuto, o Ruben era alguém que não fazia parte das
probabilidades de conversa; num repente, alguém menciona o seu nome a propósito
de uma ninharia e já toda a gente o conhecia, afadigando-se em comentários que
gravitam entre a curiosidade e o elogio.
Ninguém sabe
exactamente de onde veio este homem dos seus quarenta anos, engenheiro de
formação, com uma cabeleira longa e loira toda penteada para trás. Olhando para
ele, poderia sugerir-se um encontro fortuito num espectáculo de música
alternativa, numa peça de teatro levada à cena por um grupo rebelde, numa
exposição de pintura que olha para o abstracto com um ar de ligeiro enfado,
porque a entende demasiado conservadora.
Mas o Ruben, por mais
estranho que possa parecer, surgiu na Igreja. Ao princípio sentava-se na
penumbra de um lugar discreto, tendo avançado posteriormente para o centro do
palco, se assim se pode dizer sem que o desrespeito atinja foros de exagero. Ao
fim de algumas semanas, este homem das ciências, a trabalhar numa empresa de
consultoria, oferecia-se para a segunda leitura dominical, cujas
características próprias casam melhor com uma voz masculina.
Um fiel novo na casa
de Deus é sempre motivos de alegria. Ninguém conhecia o passado do Ruben, e
ninguém falava nisso, como se fosse um tema de conversa que devesse ficar na
meia-luz de uma qualquer reserva. Há vidas que não queremos esmiuçar, e essa
decisão é uma entremeada composta pelo respeito da privacidade alheia e pelo
temor da caixa de Pandora.
O Ruben tornou-se
conhecido pela disponibilidade para ajudar, pela farta gaforina e, também, pela
presença repetida nos vários serviços dominicais. Era visto na missa das nove e
das dez, ou do meio-dia e meia e das seis da tarde, ou das onze e das treze. O
Ruben era visto, e esta expressão não é apenas o arrumar livre de palavras
singelas. Ele era, de facto, visto, porque não passava despercebido. Para
completar este ramalhete de características, o Ruben era simpático,
conversador, discreto mas presente, exaustivamente democrático nos seus
contactos, pois falava com toda a gente por igual, fossem ricos e pobres,
condes e operários, padres e leigos, cultos e ignorantes. Como se tivesse o
gene da abertura humana no seu esplendor, ou como se lhe faltasse a enzima que,
em todos nós, faz marcar a diferença com que olhamos os outros e materializamos
a abordagem.
Toda a gente gostava
do Ruben, e não hesitavam em lhe manifestar esse apreço. Apreciavam-lhe a
educação e a disponibilidade, a afabilidade e a prontidão, a generosidade e o
sorriso. E o Ruben sorria numa humildade contida, como se todos os elogios
fossem um exagero de generosidade imerecida e embaraçante.
O calendário
religioso avançava a um ritmo certo e previsível, como o alinhamento dos
astros, os eclipses e as marés, ou a inevitabilidade dos impostos e da morte,
estes dois últimos acontecimentos constituindo, ao que dizem, a única certeza
da vida. Tal como numa célebre viagem de comboio entre a velha Sevilha e
Guadalquivir, o Bem e o Mal, Deus e Satanás disputavam as almas com argumentos
fortes: o céu, o prazer, o momento presente, o futuro, a construção, a
facilidade, o imediato. E a contabilidade era uma guerra feita dia a dia, hora
a hora, minuto a minuto, sendo que o resultado final só se saberia no fim dos
tempos, no apocalipse da vida, no estertor da existência.
O Ruben continuava a
aparecer, a disponibilizar-se, a colaborar, a ouvir, a opinar, a olhar, a
sorrir, a comover-se, a discordar. Entrava-se na Igreja, fosse em que dia ou
hora fosse, e olhava-se à volta para descortinar onde andaria o Ruben, o que
estaria a fazer, o que pensaria disto ou daquilo. E o homem da gaforina loira
atirada para trás surgia do nada, de uma penumbra, de uma discrição. E
cumprimentava, sorria, ajudava, olhava à volta de forma perscrutadora.
Um dia o Ruben
desapareceu, não do campo do Divino que tudo vê e tudo pressente, mas do
horizonte visual do fiel que circula pelo templo religioso com conhecimento de
casa, que é a sabedoria aplicada à domus. Houve quem falasse de um retiro de silêncio onde a alma se reencontra com ela própria e a boca entra numa espécie de greve voluntária ou num momento de inutilidade óbvia. Afinal, Ruben falara nisso durante muito tempo - a voracidade da informação, a música permanente no espaço público, a incapacidade da contemplação que permite vislumbrar o horizonte da vida onde o terreno se junta ao sobrenatural. Era, por certo, um retiro de silêncio, o descanso do espírito, o olhar a cantar leva-me mais longe numa ânsia de peregrinação.
A comunidade de fiéis soube do Ruben cinco dias mais tarde - não pela equipa de consagrados, pelo organizador da escala de leitores ou pelas voluntárias do acolhimento. As informações vieram por uma televisão especializada em crimes, paixões sangrentas, utilização de alfaias agrícolas para destruição de vidas humanas. Ruben, de cabeça rapada e barba hirsuta, olhos esgazeados, não para o além, mas para uma linha de pó branco, agarrado a uma guitarra eléctrica cujo botão de volume estava rodado ao máximo, foi detido pela polícia, a quem disse: "o olhar da polícia para o delinquente revela o regozijo da detenção, não o confronto com a ilegalidade." Antes de ser algemado falou crípticamente: "Leiam Aristóteles, que afirmava que o leão não se regozija com o mugido do boi, mas com o poder devorá-lo. Já é Domingo?"
JdB
(* aproveitado desinspiradamente de um texto de 2009)
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