S. Miguel, Açores, Maio de 2015 |
Requiem por Mim
Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.
Miguel Torga, in 'Diário (1993)'
***
Já Velho e Doente
«Seja a terra da Terceira
A minha coberta de alma»,
Disse eu na idade fagueira,
Em que tudo é força e calma.
Mas hoje, já velho e doente,
Em que as almas não se cobrem,
Hoje sim, peço seriamente
Que os sinos por mim lá dobrem.
Até já me aconselharam
Um quarto lá no Hospital,
Tanto caipora me acharam,
Escaveirado, mal, mal...
Ali visitas teria
Por obra de misericórdia,
Embora comida fria,
Alguma vez, que mixórdia!
Mas sempre era doce ao peito
Ir acabar os meus dias
Na Praia, de qualquer jeito,
Perto da casa das tias.
Tive o exemplo resignado
Que me deu a prima Alzira
Num lençolinho lavado
Com rendas limpas na vira.
Ali matámos saudades,
Ela alegre e penteadinha,
Mal pensando eu que as idades
Não perdoam. Hoje é a minha.
Também cheguei a pensar
No Asilo, talvez com um biombo.
Sou biqueiro. Mas jantar?
Todos ali, lombo a lombo.
Como outrora o Tintaleis,
Três-Quinze, Manuel de Deus
Eram duas vezes seis,
Lava-Pés, e Pão-por-Deus.
Mas já sei que nem no hotel!
(A família não consente).
Tenho que amargar o fel
Mortal como toda a gente
Morrer num navio, à proa,
Numa aldeia ou num porão,
Provavelmente em Lisboa
Prò Alto de S. João.
Se acaso em Ponta Delgada
Me fosse dado ter fim:
Queria a última morada
Com Antero, em S. Joaquim.
O melhor é não pensar.
É seja onde Deus quiser.
Bem me podem sepultar
Ao pé de minha mulher.
Vitorino Nemésio, in "Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga"
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