13 agosto 2018

Crónicas de um dourando tardio *

Leio O Enigma da Chegada. O livro de Naipaul abre-nos uma perspectiva desafiante: a distância com que olhamos para um objecto, sendo que objecto tem um sentido muito lato: pode ser uma bicicleta, uma flor, uma fotografia, uma cara, uma casa, uma sequência de casas, um momento ou uma sequência de momentos. E o que é a vida, se não todos estes objectos elencados?

Se mantivermos um olhar demasiado próximo do objecto, detectamos facilmente a imperfeição do contorno de uma letra impressa ou a implausibilidade de uma paixão que nasce numa franja negligente da violinista. É o olhar que vê a inutilidade do incenso que se queima numa cerimónia religiosa, a soturnidade de um coro de Bach a cantar a paixão de Cristo, o amor paternal exercido com uma disciplina extemporânea. Um olhar excessivamente próximo detecta facilmente a pequena falha que desfeia. Fixa a árvore, talvez o arbusto, seguramente a erva daninha.

Por outro lado, um olhar demasiado afastado do mesmo objecto só vê um ponto contra a linha do horizonte. A dissonância da cor dos olhos de uma criança numa aguarela é um ponto no horizonte, o cheiro a sardinha no estalar do Verão é um ponto na linha do horizonte, uma vida dedicada ao próximo é um ponto no horizonte. Tudo se esbate, se perde num ambiente de ruído e distracção. A lonjura não permite ver o belo nem a sua inversa, permite apenas imaginar sem encanto.

É preciso encontrar o espaço certo para observar estes objectos de que falo. Pode ser um milímetro, um hectómetro – ou dez anos. Ou pode ser outra medida de comprimento ou de tempo que ainda não tenham sido inventadas pelo génio humano. É importante referir, no entanto, que esta distância milimétrica ou temporal pode ser fruto de um acaso, isto é, não há garantia que seja definida por critérios de decisão, do tipo o sítio onde se vê bem o Cristo-Rei é o Chapitô. Há quem se sente no Chapitô e só veja palhaços, há quem se sente no Catujal e vislumbre com nitidez o encanto dos braços abertos de Cristo.

O que era Naipaul no remanso verdejante do Wiltshire? Em que se tornara o Naipaul, jovem indiano da ilha de Trindade, que aos 18 anos parte para Inglaterra para estudar e, posteriormente, se tornar escritor? Era um emigrante, um exilado, um explorador, um peregrino? O que somos, cada um de nós, num país que nos é relativamente estranho, com pessoas que nos são estranhas, a querer ser aquilo que queremos ser desde o princípio: escritor, médico, desenhador de moda? O que nos diz cada uma destas profissões, ou outras que possamos abraçar, sobre o que é ou foi a nossa vida? Diz-nos o mesmo, mas de um modo diferente, apenas. O emigrante, o turista, o peregrino ou o exilado fazem tudo para se sentirem em casa: o festejo da passagem do ano pelo fuso português, a colocação de artesanato alegórico barcelense nas varandas dos países da emigração, os estabelecimentos da restauração com as bicas e os pastéis de nata; mas também o acto de ir pelos campos aprendendo com os pés, ou, olhando para a paisagem envolvente, vislumbrar a sua casa.

Assim como foi a medicina que fez o médico, foi o trabalho da escrita que fez Naipaul ser (ou voltar a ser) de Trindade. Se no Catujal se pode ver o Cristo-Rei, também no Wiltshire se pode ver a ilha de Trindade. Naipaul, como tantos outros retirados do seu espaço vital, quis voltar para casa. O tempo todo em que ele viveu em Inglaterra foi de preparação, de meditação e de construção sobre a sua própria narrativa. “Os homens precisam da História. Mas a História, como a santidade, pode residir no coração; basta que o coração não seja um lugar vazio.”

Ironicamente, talvez a História de Naipaul tenha nascido quando ele escreveu a palavra morte – a da irmã -  palavra essa que determinou o seu regresso a casa que, no caso vertente foi um regresso físico, mas podia não tê-lo sido.

“O nosso mundo sagrado – o sentido do sagrado que nos tinha sido transmitido, quando éramos pequenos, pelas nossas famílias, os locais sagrados da nossa infância, sagrados porque os tínhamos visto quando éramos crianças e lhes tínhamos atribuído qualidades maravilhosas, lugares que, para mim, eram dupla e triplamente sagrados porque, na longínqua Inglaterra, eu viva neles imaginariamente em muitos livros e, na minha fantasia, localizara nesses lugares o início de todas as coisas, construíra a partir deles uma fantasia de lar, embora viesse a saber que aquela terra fora encharcada de sangue, que, outrora, houvera indígenas que tinham sido mortos ou deixados morrer até à total extinção -, o nosso mundo sagrado desaparecera. (...)”.

O que significa o título O Enigma da Chegada? De que enigma falamos? O enigma não se deve ao facto de nunca partirmos, mas ao facto de nunca sabermos onde e quando é a chegada. Viajar é partir para ver a casa com a distância certa. Viajar é partir para longe à procura do regresso.

JdB

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* excerto de um trabalho escrito no âmbito do doutoramento, repescado por alturas da morte de V S Naipaul

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