28 fevereiro 2019

Textos dos dias que passam

Os capotes russos

«Muitos dos capotes russos distribuídos aos pobres têm um pequeno remendo no peito ou nas costas. Um pequeno remendo redondo que fecha o buraco através do qual entrou uma bala e saiu uma alma.

O meu capote tem um pequeno remendo precisamente no lugar do coração. Está bem cozido e de pano grosso, mas no pequeno buraco que cobre entra um subtil sopro de ar gelado, mesmo quando não há vento. E o coração dói, perfurado por esse alfinete de gelo.»

No seu “Diário clandestino” (1946), o escritor italiano Giovanni Guareschi conta este episódio da sua experiência durante a guerra na Rússia.

O aspeto simbólico é evidente: aquele pequeno remendo atinge o coração de quem está vivo, trespassando-o com o alfinete da memória, da solidariedade, do amor por quem está morto, mas vive através daquele dom.

Na verdade, todos, de certa maneira, trazemos o capote protetor de um outro que já não está entre nós. Recebemos em herança preciosa não tanto alguns bens de quem nos precedeu, mas sobretudo alguns valores que aquecem a alma, mais do que quanto pode fazer um tecido ou um muro para o corpo.

Já escasso é o reconhecimento que temos por aqueles que nos apoiam e nos ajudam agora em vida. Bem mais desvanecida (se não extinta) é a gratidão por quem nos amou no passado e agora está distante de nós.

Com efeito, recebemos dons de afeto, de estima, de ensinamento, de valores, que revestiram a nossa vida, deram-lhe frémito e calor. Mas a nossa superficialidade sepultou tudo no esquecimento.

Na narrativa de Guareschi há, porém, outro aspeto a sublinhar. Cada morte pode ser uma semente de vida, como dizia Jesus do grão de semente. Mas para que isso aconteça, é preciso ter vivido deixando atrás de si um rasto de luz, de generosidade, de bondade, de amor.


P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 26.02.2019

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