Os capotes russos
«Muitos dos capotes russos distribuídos aos pobres têm um pequeno remendo no peito ou nas costas. Um pequeno remendo redondo que fecha o buraco através do qual entrou uma bala e saiu uma alma.
O meu capote tem um pequeno remendo precisamente no lugar do coração. Está bem cozido e de pano grosso, mas no pequeno buraco que cobre entra um subtil sopro de ar gelado, mesmo quando não há vento. E o coração dói, perfurado por esse alfinete de gelo.»
No seu “Diário clandestino” (1946), o escritor italiano Giovanni Guareschi conta este episódio da sua experiência durante a guerra na Rússia.
O aspeto simbólico é evidente: aquele pequeno remendo atinge o coração de quem está vivo, trespassando-o com o alfinete da memória, da solidariedade, do amor por quem está morto, mas vive através daquele dom.
Na verdade, todos, de certa maneira, trazemos o capote protetor de um outro que já não está entre nós. Recebemos em herança preciosa não tanto alguns bens de quem nos precedeu, mas sobretudo alguns valores que aquecem a alma, mais do que quanto pode fazer um tecido ou um muro para o corpo.
Já escasso é o reconhecimento que temos por aqueles que nos apoiam e nos ajudam agora em vida. Bem mais desvanecida (se não extinta) é a gratidão por quem nos amou no passado e agora está distante de nós.
Com efeito, recebemos dons de afeto, de estima, de ensinamento, de valores, que revestiram a nossa vida, deram-lhe frémito e calor. Mas a nossa superficialidade sepultou tudo no esquecimento.
Na narrativa de Guareschi há, porém, outro aspeto a sublinhar. Cada morte pode ser uma semente de vida, como dizia Jesus do grão de semente. Mas para que isso aconteça, é preciso ter vivido deixando atrás de si um rasto de luz, de generosidade, de bondade, de amor.
P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 26.02.2019
As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Acerca de mim
- JdB
- Estoril, Portugal
Arquivo do blogue
-
▼
2019
(351)
-
▼
fevereiro
(29)
- Textos dos dias que passam
- Vai um gin do Peter’s ?
- Da privacidade e do povo Sakalava
- Textos dos dias que correm *
- VII Domingo do Tempo Comum
- Pensamentos Impensados
- Da importância do testemunho
- Da pedofilia na Igreja e do Observador
- Duas Últimas *
- Textos dos dias que correm *
- Pensamento Impensado
- Dos moinhos e dos gigantes
- 6º Domingo do Tempo Comum
- Pensamentos Impensados
- Poemas dos dias que correm
- De uma ida a Paris
- Vai um gin do Peter’s ?
- Textos dos dias que correm
- Duas Últimas
- 5º Domingo do Tempo Comum
- Pensamentos Impensados
- Dos cuidadores informais
- Poema e comentário dos dias de hoje *
- Textos dos dias que correm
- Da monarquia inglesa como metáfora para a vida
- Poemas dos dias que correm
- 4º Domingo do Tempo Comum
- Pensamentos Impensados
- Das coisas que são estas coisas e não outras
-
▼
fevereiro
(29)
Sem comentários:
Enviar um comentário