10 dezembro 2019

Do que desaparece com quem desaparece

Chegado aos quase 62 anos é normal que no meu curriculum conste uma certa dose de lutos. Para este exercício em voz alta retirarei aquele luto, brutalmente antes do tempo, que revisito de forma mais visível aqui, neste estabelecimento, no dia 6 de Julho e no dia 4 de Novembro. Poderia, sobre todos eles (sogros, cunhada, irmão, pessoa que ajudou a tratar de mim quando eu tinha 1 ano e morreu lá em casa passados 30 anos, mãe e pai, outros) tecer considerandos de ordem afectiva: as saudades que deixam, o amor que me devotaram ou que lhes devotei, a ideia do nunca mais os vejo, etc. Mas não é disso que quer falar.

O que morre em nós quando os outros nos morrem? O amor que perdemos é, de certa forma, um menor múltiplo comum que torna todos os nossos mortos iguais. Amamos um pai ou um irmão, temos afecto por uma cunhada ou por um sogro, liga-nos uma amizade especial a quem nos viu crescer e nos mimou uma vida inteira. Mas o que desaparece com aqueles que desaparecem e que não é traduzível por amor de mãe, que pode não ser mais do que uma expressão bonita?

Há uns anos morreu-me uma tia, não só por ser mulher de um primo com idade para ser meu pai, mas por ser grande amiga da minha mãe desde sempre. Na morte dela não morreu o afecto que ela me tinha. Na morte dela morreram 40 anos da minha existência - e sobre isso perorei neste estabelecimento. Morreu uma parte substantiva da minha adolescência e, com isso, memórias de cheiros, de conversas, de sons, de ambientes que me eram próximos e muito aprazíveis. Não morreu uma parente - morreu uma época. 

A minha mãe morreu há pouco mais de três anos, aos 80 e muitos anos; o que morreu com ela? Talvez a certeza da incondicionalidade - a última certeza que eu tinha da incondicionalidade. O meu pai morreu há pouco mais de 15 dias, aos 94 anos. O que morreu com ele? Talvez (entre outros) a memória. No desaparecimento deles não me ocorre a angústia do nunca mais os vejo, embora isso seja verdade. Mas, tal como o meu pai dizia com graça, nenhum dos dois tinha já idade para morrer de repente, pelo que foi uma partida de certa forma anunciada. Com o meu pai desaparece um repertório de informações (talvez "notícias", e já lá vou ao conceito) que não recolherei de mais ninguém. Há ainda gente antiga na família, com 90 anos. Mas, se acreditar que uma notícia é uma informação trabalhada, essa gente dá-me informações, o meu pai dava-me notícias. Porquê? Porque tudo era filtrado pela inteligência dele, pelos defeitos e qualidades dele, pela visão que ele tinha sobre o mundo - certa ou errada - pelo sentido de humor. Era uma memória não mecânica que reproduzia um dado passado há 60 anos, e que reproduzia uma sensação passada há 60 anos. 

Foi-se a ideia de incondicionalidade, foi-se a ideia de memória não mecânica. A vida é o que é.

JdB         


3 comentários:

ACC disse...

A distinção entre informação e notícia é brilhante.
Reforcei a ideia da morte quando há 11 anos morreu o meu pai, 9 anos depois da minha mãe.

Nesse dia fiquei com uma ideia muito clara de que não eram eles que tinham morrido, porque à sua morte sobrepôs-se a dureza do sentimento de perda, da "incondicionalidade" desaparecida.

Era uma ideia muito clara de morte, mas morte, sim, da minha infância.
A partir de agora ninguém me sabe dizer se tive varicela, se em criança gostava de morangos, ou da idade em que tive o meu primeiro contacto com a vergonha. Foi a minha infância que morreu, porque dos meus pais ficou a memória e o sabor da incondicionalidade.

Anónimo disse...

Muito bem escrito, ACC

Anónimo disse...

Muito bom texto João! TBL

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