29 março 2021

Textos dos dias que correm *

 A audácia da vulnerabilidade, a profecia de uma visão

É sabido que vivemos na era da padronização das imagens. Em nenhuma época anterior da história foram produzidas tantas imagens e, além disso, nenhuma outra como a nossa testemunhou a sua radical banalização. Em vez de imagens únicas e autênticas, temos produtos fabricados em série, selfies fabricadas num instante e num instante prontas para serem devoradas pelo esquecimento. O filósofo Walter Benjamin falou com razão em "perda da aura", ou seja, a imagem deixa de constituir "a única aparência de uma coisa distante" e passa a fixar-se na repetição sonâmbula de um déjà vu. Por isso, o comovente consenso em torno da imagem do Papa Francisco na praça de São Pedro vazia é algo que nos faz pensar, dentro e fora do espaço eclesial.

Um ano depois, vale a pena revisitar aquela imagem, que na realidade nunca deixou de estar presente, e indagar de onde vem o seu excepcional poder icónico. Por que é que essa imagem que ficou ainda representa o que estamos a viver e não qualquer outra imagem? E o que é que isso nos revela sobre ela mesma, ou o que nos ensina sobre nós próprios? Procurando sintetizar o que certamente merece uma reflexão mais ampla, indicaria quatro motivos.

A ousadia de habitar a vulnerabilidade como lugar de experiência humana e crente. É verdade que a cultura dominante, o mainstream modelado como um automatismo pelas nossas sociedades de consumo fez da vulnerabilidade uma espécie de tabu. A fragilidade está sujeita a ocultação. E, ao impedirmo-nos de enfrentar o sofrimento humano, cada vez menos sabemos como nos reconhecermos nele, ou como partirmos dele para aprofundar o sentido da nossa humanidade comum. Mas esse não é apenas um problema da cultura actual. A performance religiosa também tem alguma dificuldade em integrar o que Michel de Certeau chamou "fraqueza de acreditar". A imagem que se transmite é mais a de uma operação efectuada a partir de um guião do que de desapropriação e abertura para criar um "caminho não percorrido". O Papa Francisco ousou habitar a vulnerabilidade. Ele não falou apenas sobre a vulnerabilidade do mundo, como se estivesse fora dela. Na medida em que aceitou expor-se como qualquer pessoa, surgiu como uma figura sacerdotal capaz de representar todos.

A audácia de abraçar e devolver sentido ao vazio. Uma das experiências mais impactantes do confinamento foi testemunhar, no início da pandemia, o esvaziamento das cidades. De um momento para o outro espalhou-se um silêncio estranho e desconhecido. Incrédulos, olhávamos das nossas janelas para as ruas e praças em total solidão, sentindo-nos despojados do mundo. A nossa primeira reacção foi ler o vazio como algo hostil que nos ameaçava. Pois bem, Francisco teve a grande sabedoria de abraçar o vazio em vez de repudiá-lo, sublinhando o seu potencial simbólico e revelador. Por isso foi muito importante o texto escolhido para o Evangelho, cenário da tempestade acalmada segundo Mc 4, 35-41. Porque se, por um lado, o vazio foi aceite, abraçando-o como lugar existencial e teológico, por outro, a Palavra de Deus forneceu a chave para dar-lhe sentido. O vazio tornou-se um barco. “Percebemos que estávamos no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários, todos chamados a remar juntos, todos a precisar de consolo uns nos outros. Neste barco… estamos todos lá ”. O vazio ofereceu uma nova gramática para nos descobrirmos, não como fragmentos isolados, mas como Fratelli Tutti.

A audácia de encontrar uma metáfora. Comentando o texto do Evangelho de Mc 4, 35-41, o Papa Francisco fez um gesto de grande importância: reorientou a percepção a respeito da pandemia. Os primeiros Chefes de Estado a falar referiram-se à pandemia como uma guerra, uma metáfora até certo ponto compreensível, mas muito equívoca e com muitos perigos à espreita. O Papa foi o primeiro a falar disso como uma tempestade. Essa passagem do estreito plano beligerante para o plano cosmológico coincidiu com um alargamento da visão. Permitiu, por exemplo, desmantelar o impulso inicial de encontrar um culpado, aceitando em vez disso que a tempestade nos atraiu a todos para uma vulnerabilidade que não queremos ver e que nos envolve numa reconstrução que nos compromete globalmente. Este tempo de prova representa, portanto, um tempo de escolhas novas e proféticas que nos unem, em vez de intensificar o triunfo da lógica dos conflitos e das partes.

A audácia de pregar Deus no silêncio de Deus. As tempestades são experiências de crise, até para os crentes. Há um escândalo implícito no grito dos discípulos que tentam despertar Jesus: "Mestre, não te preocupas que estejamos perdidos?" (Mc 4, 38). Como explica o Papa, esta “é uma frase que fere e desencadeia tempestades no coração”. Perante a propagação do mal e a sua proximidade traumática, sentimos com sofrimento o que parece ser o silêncio incompreensível de Deus, e a grande tentação nesses momentos é o niilismo ou a desmobilização. Sobre o poder das imagens, Heidegger escreveu que "a essência da imagem é mostrar algo". A imagem do Papa a rezar e a dar a bênção eucarística, num contexto universalmente vivido como de desolação, mostra como o invisível de Deus penetra os blocos da história e o seu silêncio nos dá a possibilidade de viver, seguindo os passos de Jesus, as situações de abandono como confiança e entrega nas Suas mãos. Francisco pediu: "Desta colunata que abraça Roma e o mundo, que a bênção de Deus desça sobre vós como um abraço consolador". E assim foi.

D. José Tolentino de Mendonça

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* tradução livre minha de um artigo publicado aqui

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