03 março 2021

Vai um gin do Peter’s ?

 PALACETES DE LISBOA – À PORTA DO BAIRRO ALTO 

Nesta cidade linda que é Lisboa, alguma arquitectura histórica subsiste, contribuindo para o charme imenso da capital portuguesa. Como, felizmente, ainda há bastantes exemplares, alguns dos menos conhecidos seguem repartidos por mais de um gin. 

Um restauro emblemático, terminado em 2020, permitiu recuperar o antigo palácio dos Condes de Tomar, que já tinha sido o palácio Brito Freire (BF) e até de proprietários antanhos, remontando ao século XVI. Situado em frente à fachada poente da Igreja de S.Roque, corresponde ao nº 3 da lendária rua de S.Pedro de Alcântara. 

No tempo de BF, o palacete tinha adquirido um portentoso conjunto de azulejos seiscentistas, em azul e amarelo. Mas os enormes estragos causados pelo terramoto de 1755, reduziram-no a um vaivém de ocupantes nos pisos superiores e de lojas variadas no piso térreo. Só em 1845, um negociante bem sucedido, Joaquim Pereira de Sousa, resolveu comprá-lo e lançar-se em obras de recuperação e embelezamento expressivas. Adjudicou-as ao estucador Manuel Afonso Rodrigues Pita, conhecido por intervenções de monta noutros palácios de Lisboa, como o dos Burnay, na Junqueira, o dos Marqueses de Viana, no Rato, o dos Costa Lobo no Campo dos Mártires da Pátria, ou o de Eugénio d’Almeida, em São Sebastião da Pedreira. 

As paredes e os tectos foram revestidos com medalhões e outros ornamentos, na entrada houve estátuas de grande porte, a escadaria marmoreada era iluminada pela clarabóia superior, as salas beneficiavam de janelas amplas e nos compartimentos  interiores havia janelas falsas revestidas por vitrais multicolores, hoje iluminados por dentro, num conjunto aparatoso. Quando tudo terminou, já o novo dono se aproximava dos 80 anos, pelo que pouco aproveitou da faustosa residência. 






Tectos com frescos e decorações em estuque; e medalhões ao longo das paredes da escadaria e de algumas salas. 

Seguiu-se o rodopio de herdeiros, até chegar a ser habitado por um filho do Ministro Costa Cabral, casado com uma filha dos Condes de Tomar. Vem daí a associação do título ao palacete. No início do século XX, voltam as confusões entre herdeiros e um novo inquilino – o Royal British Club – fica por lá, até 1966. Entretanto, o estado de conservação torna-se preocupante. Em 1969, chegou a cair uma chaminé e partes do telhado. É o ano em que a CML o compra, para aí instalar a Hemeroteca Municipal de Lisboa, a partir de 1973. Provisoriamente, resolve cobrir parte do telhado com uma placa de zinco, que se foi eternizando.  

Nos anos noventa, a Santa Casa compra o edifício à Câmara, enquanto a degradação continua imparável até à saída da Hemeroteca, em 2013. Só então, a Misericórdia inicia obras profundas e cede o espaço aos Jesuítas, que lhe dão um cunho próprio, para ali instalar o «Espaço Cultural Brotéria». A intenção foi tomar a traça original do passado como moldura e sustentáculo de propostas inovadoras vindas de uma contemporaneidade sedenta de novos horizontes: «A casa é linda de uma perspectiva histórica, é de um tempo que não é o nosso. Mas a Brotéria não é do passado, é um projecto antigo que vive do presente. Por isso, toda esta carga histórica deslumbrante tem de ser actualizada com outras expressões e linguagens. (…) Tem de haver sempre uma relação entre ter a responsabilidade de manter o que é herdado e entre o que se vai fazer daqui para a frente» – explica o Pe. Francisco Mota, SJ.  

A arte foi escolhida para elo de ligação entre o contributo insubstituível de gerações distantes. Por isso, convidaram artistas contemporâneos e coleccionadores privados a exporem peças de arte moderna: «Normalmente peças destas estão em museus, mas há uma barreira moral entre a obra e o espectador. Aqui não, as peças fundem-se com o espaço, estão à vista de todos e por isso é que conseguimos ter um palácio do século XVI com obras do século XXI (…). (Queríamos) ser o espaço onde em Lisboa a fé cristã se encontre com as culturas urbanas contemporâneas (… numa) atitude de escuta perante a arte e os artistas (…), (ser) uma voz católica num mundo plural, tendo em especial atenção o mundo não-católico, numa óptica de diálogo e de cooperação para o bem comum». À entrada ficou a escultura “Seda”, de Rui Chafes. 

Obra de Rui Chafes, à entrada.

O diálogo entre o antigo e o vanguardismo percorre todo o edifício. Ao arquivo da Brotéria somaram-se as pinturas de Jorge Queiroz expostas ao longo de várias salas, a par de fotografias de Rui Calçada Bastos e de João Penalva ou instalações da dupla Dias & Riedweg. Todo o mobiliário de uso corrente é confortável, de linhas simples, com design do estúdio do Porto ‘Non-verbal Club’, enquanto os móveis são da autoria da dupla Pedrita. As cadeiras assumem as cores fortes da azulejaria antiga, em amarelo e azul, os pufes são bordeaux e ocre, as mesas pequenas são brancas, desmontáveis e com estruturas em ferro, enquanto as grandes estão na cor da madeira clara.

Zona das coleções e arquivos da Brotéria.

Sala dos couros

Sala de conferências com tecto original bem iluminado por focos indirectos.

Assim se chegou a 23 de Janeiro de 2020, data de inauguração da nova sede da revista centenária Brotéria, num palacete desejoso de acolher os variadíssimos frequentadores do Bairro Alto e demais transeuntes de Lisboa. Apostava-se numa acção de proximidade com a rua, para chegar a novos públicos. 

Um chamariz adicional foi o restaurante de comida saudável e bem servida, a aproveitar a esplanada em redor de uma pequena laranjeira, com uma fonte ao fundo. Garantiu logo a afluência de curiosos, primeiro e entusiastas, depois. 

A esplanada.

As salas de leitura revestidas a estuques e madeiras recuperadas davam gosto ser visitadas e usadas, seguindo a pluralidade de gentes acolhida no recém-inaugurado polo cultural. Alguns Jesuítas mais novos costumavam passear-se entre os muitos visitantes, no papel de anfitriões simpáticos de uma festa de portas abertas, a falar com uns e outros, a revelar mais recantos simpáticos da casa ou a explicar a história aventurosa da casa ou da Companhia ou da Brotéria. Enfim, um balão de oxigénio em Lisboa, até vir o confinamento e o país fechar, logo na Sexta-feira 13 de Março de 2020. Lembram-se?... 

Com imaginação, a Brotéria (https://www.broteria.org/programacao/) tem continuado a alimentar uma agenda cultural assente em plataformas digitais, que não têm segredos nem anti-corpos para os millennials nem para a esmagadora maioria de lisboetas & vizinhos da cidade.


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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