24 agosto 2021

De como se conhece cá olhando de lá

 


Há uns anos escrevi para um exercício académico:

O emigrante, o turista, o peregrino ou o exilado fazem tudo para se sentirem em casa: o festejo da passagem do ano pelo fuso português, a colocação de artesanato alegórico barcelense nas varandas dos países da emigração, os estabelecimentos da restauração com as bicas e os pastéis de nata; mas também o acto de ir pelos campos aprendendo com os pés, ou, olhando para a paisagem envolvente, vislumbrar a sua casa.

“O facto de ter passado em Porto Rico as minhas primeiras semanas de Estados Unidos fará com que, daí por diante, eu encontra a América em Espanha. Assim como o fato de ter visitado muitos anos mais tarde, a primeira universidade inglesa no ‘campus’ de edifícios góticos de Dacca, no Bengala oriental, leva-me agora a considerar Oxford como uma Índia que tivesse conseguido controlar a lama, o mofo e os excessos da vegetação.”. 

Neste trecho do livro de Lévi-Strauss [Tristes Trópicos] está uma primeira ideia que concorre, ainda que de forma difusa, para este conceito de viagem como procura do regresso. De facto, nem sempre é aqui que percebemos aqui, por vezes é ali que percebemos aqui. Ainda que inconscientemente, o antropólogo afastou-se de um local para perceber esse local, tal como Naipaul fizera em Wiltshire em relação a Trindade. No entanto, de forma mais consciente, foi no interior da selva amazónica que Lévi-Strauss recordou Chopin, e foi no interior da selva amazónica que o Opus 10 se tornou no lugar geométrico da casa (no sentido lato, de espaço de refúgio e de memória) de onde ele havia partido anos antes.

Este youtube de Marisa Silva Rocha deve ver-se sem som. Marisa é emigrante nos Estados Unidos da América e gosta de fado. A sua incursão pela canção nacional faz-se através de Alfama (o fado, não o bairro). Se ouvirmos a sua interpretação focamo-nos na sua interpretação, porque para algumas pessoas ela (a interpretação) pode ser dominante, como o cravinho num fiambre que se leva ao forno. O youtube de Marisa deve ver-se e, se possível, sem Marisa, dado que ela também é dominante. O que interessa, o que me leva ao devaneio é o sítio onde ela canta, o símbolo que tem nas costas do blusão, o brasão do púlpito de onde modula a voz, os locais por onde passa e as pessoas que cumprimenta.

Lévi-Struass encontrou a América em Espanha, Naipaul encontrou Trindade no Wiltshire. Marisa Silva Rocha encontrou Portugal no fado, na padaria, na Nossa Senhora costurada na ganga, nas armas de Portugal gravadas num pedaço de madeira de onde um padre emigrante perora sobre as parábolas. Eu próprio fiquei imbuído desse espírito - em locais de forte emigração portuguesa, como seja Toronto, no Canadá, privilegiei o Little Portugal, a bica e o pastel de nata, o bacalhau lá, mas à moda de cá.

Podemos sair de Portugal mas Portugal não sai de nós. Talvez não se veja tão bem Portugal como em Toronto - ou na terra de Marisa Silva Rocha.

JdB

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