28 março 2022

Moleskine (com mau feitio)

Apanho um programa de telefonia já no fim. Há uma senhora que diz, falando de ternura:

Eu tenho muita ternura e amizade pelos animais. Tenho um gato e uma gata; eles percebem se eu estou triste e, se eu estou doente, não me largam até eu ficar boa. Há pessoas que não fazem nada por mim, nem sequer se aproximam. Tenho dito!

Apanho uma senhora que fala com amigos numa mesa de café, referindo-se a alguém que está, aparentemente, com um cancro na cabeça em fase algo terminal:

(...) Que qualidade de vida é que ele tem? Nenhuma. Eu, por exemplo, já assinei o meu testamento vital. Sabe, tenho uma nora farmacêutica; se estiver com uma doença grave ela vem, dá-me uma injecção e já está...

***

Relativamente à primeira situação, quis telefonar à senhora que perorava na telefonia e dizer-lhe o seguinte: 

Sabe, já estive muito em baixo, com coisas sérias que me aconteceram. Tive sempre gente à minha volta. Estava a sofrer e o meu cão mijou-me as gardénias... O exemplo do seu casalinho de gatos ilustra o quê? Que os seus gatos são melhores que os seus amigos? Ou que todos os gatos são melhores do que todas as pessoas? Tenho dito!

Relativamente à segunda quis dizer à senhora que perorava na esplanada:

Sabe, o testamento vital é um "documento no qual é manifestada, antecipadamente, a vontade consciente, livre e esclarecida de um utente, sobre quais os cuidados de saúde que deseja receber ou não, por qualquer razão, caso não seja capaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente." Assinar o testamento vital não lhe garante que a sua nora, farmacêutica a a aviar paracetamol em Corroios, tenho o direito de a eutanasiar... 

***

Sou desafiado à compaixão cristã pela ignorância alheia, pois eu próprio afirmo que aquilo que não sei enche várias bibliotecas de Alexandria. O problema destas duas senhoras não é a ignorância, mas o tom de voz. Não me maça que não se saiba, mas maça-me que não se saiba e se perore em tom afirmativo e decidido. Não me incomoda a senhora achar que a ternura dos gatinhos que se espojam na colcha é superior à ternura da rede familiar que a circunda; não me incomoda a senhora achar que testamento vital ou pedido de eutanásia sejam a mesma coisa. Incomoda-me, isso sim, que o digam alto; ou que o digam com um tom sério, de quem está a determinar visões sobre o futuro da raça humana.

Mau feitio meu, logo no dia da parábola do filho pródigo - ou do pai misericordioso... 

JdB

1 comentário:

Anónimo disse...

Esta gente(gentalha) ainda não entendeu nada da Vida. Deixemo-la em paz, não gastando saliva [cuspo] com idiotices.
Abraço

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