FERNANDO PESSOA GANHOU UMA APOSTA (III)
Estava o poeta com um amigo na Brasileira, animadamente a dissertarem sobre a condição ideal para compor poesia. Defendia o amigo ser crucial haver um factor externo a servir de ignição inspirativa, acreditando na ligação da arte à realidade circundante a partir do ângulo de visão do poeta-observador. Mas Pessoa discordava, considerando suficiente a imaginação fértil e fecunda de um poeta. Tomava-a por magma da sua inspiração.
Sem acordo à vista, fizeram uma aposta, propondo-se Pessoa fazer prova da sua tese ao compor, ali mesmo, um poema de tema livre desligado do ameno convívio no Chiado. Assim escrevinhou em quinze minutos, sobre um guardanapo da Brasileira, «O MENINO DE SUA MÃE», conforme testemunhou o seu interlocutor – avô de uma amiga doutorada em línguas e professora de português, fonte desta ‘inside information’. Intencionalmente, o poema adoptou uma tonalidade fúnebre, estranha àquele encontro amistoso na pacata Lisboa das primeiras décadas do século XX. Apesar da proximidade cronológica da Primeira Guerra Mundial, traumática pela quantidade de portugueses enviados sem condições para trincheiras mortíferas, admitiu-se que Pessoa teria ganho aquele debate, nem que fosse como prémio pela qualidade do texto que, em minutos, soubera impregnar do desgosto indizível de uma mãe que perde o filho numa guerra de outros:
«O MENINO DA SUA MÃE
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto, e arrefece.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.»
Primeira publicação, em 1926
Como não haveria de defender a criatividade artística, quem se pulverizou em incontáveis personalidades poéticas, sedento de captar a vida – a interior e a exterior – a partir de todas as perspectivas que a imaginação lhe franqueava? Não por acaso, Pessoa detém o palmarés do escritor com maior número de heterónimos do planeta! Nele, um só coração bateria mas uma profusão de olhares afinavam-se para «sentir tudo de todas as maneiras», na ânsia do infinito:
«Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).
(...) Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.»
Data provável: 1915.
«Sê plural como o universo»
A alma com fronteiras,
Que eu quero sentir tudo
De todas as maneiras.
Do alto de ter consciência
Contemplo a terra e o céu,
Olho-os com inocência...
Nada que vejo é meu.
Mas vejo tão atento
Tão neles me disperso
Que cada pensamento
Me torna já diverso.
E como são estilhaços
Do ser, as coisas dispersas
Quebro a alma em pedaços
E em pessoas diversas. (…)
Assim eu me acomodo
Com o que Deus criou,
Deixo teu diverso modo
Diversos modos sou.
Assim a Deus imito,
Que quando fez o que é
Tirou-lhe o infinito
E a unidade até.»
«Eu sou uma antologia.
Que, pouca ou muita valia
Dos poemas, ninguém diria
Que o poeta é um somente.
Depois para si o poeta
Deve ser poeta também
Se ele não tem a completa
Diversidade
Não é poeta, é só alguém.
Eu graças a Deus não tenho
Nenhuma individualidade
Sou como o mundo (...)»
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
(…)
II
Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.
E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
(…)
Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
(…)
Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me. (…)»
22 de Setembro de 1933
Carta a Adolfo Casais Monteiro
«A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. (…) Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos — felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo — os eu a sós comigo. (...)»
13 de Janeiro de 1935
«Tantas vezes, tantas, como agora, me tem pesado sentir que sinto – sentir como angústia só por ser sentir, a inquietação de estar aqui, a saudade de outra coisa que se não conheceu, o poente de todas as emoções… Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia…»
In “Livro do Desassossego”, do heterónimo Bernardo Soares (1913-…); colectânea de fragmentos, publicada em 1982.
«II - Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades (Álvaro de Campos)
II
Que nem são países, nem momentos, nem vidas.
Que desejo talvez de outros modos de estados de alma
Humedece interiormente o instante lento e longínquo!»
30 de Junho de 1914
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo. (…)
Multipliquei-me para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me entreguei-me.
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.
(…)
Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,
E todas as cidades do mundo rumorejam-se dentro de mim... (…)
Todas as madrugadas são a madrugada e a vida.
Todas as auroras raiam no mesmo lugar:
Infinito...
(…)
Sinto na minha cabeça a velocidade do giro da terra,
E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim,
Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros
(…)
Resolver a equação desta inquietação prolixa,
Saber onde estar para poder estar em toda a parte, (…)»
Álvaro de Campos, 25 de Maio de 1916
Sentir tudo de todas as maneiras,
Ter todas as opiniões,
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
Desagradar a si-próprio pela plena liberalidade de espírito,
E amar as coisas como Deus.
(...)
Caem folhas secas no chão irregularmente,
Mas o facto é que sempre é outono no outono,
E o inverno vem depois fatalmente,
E há só um caminho para a vida, que é a vida...
(…)
E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase,
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa. (…)»
Álvaro de Campos, 1916
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
(…)
Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
(…)
Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
(…)
Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...
Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as acções, a banalidade dos trabalhos,
Só assim — ai de mim! —, só assim se pode viver
Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!
Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco — não sei qual — e eu sofri. (…)»
Álvaro de Campos, 22 de Maio de 1916
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.»
Odes de Ricardo Reis – 14 de Fevereiro de 1933
Fotografia oferecida por Pessoa à sua amada Ophélia Queiroz, em 1929, com a dedicatória: "FERNANDO PESSOA EM FLAGRANTE DELITRO". |
Nas muitas vozes que convocou para ecoar a infinitude do seu mundo interior, Pessoa conseguiu expandir o campo de visão até periferias inimagináveis, qual actor que se desdobra noutros seres para dar vida a múltiplas personagens. Mas, quem só vive uma vez, não arrisca algum esboroar de identidade com esta aventurosa pulverização de personalidades?
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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