Chamava-se António. Mas também se chamava Ernesto. Nascera a 24 de Abril. Mas também nascera a 25 de Abril. Tinha por alcunha o Comba, mas também respondia se lhe chamavam Che. Tudo dependia, não de uma confusão de conservatórias, de uma desorganização familiar ou do momento exacto atribuível ao parto, mas de uma perspectiva parental. Para a mãe, filha de um ministro de Salazar (o Salazar tardio, gostava ela de referir, como quem fala de um poeta ou de um escritor amadurecido pelos anos e pela vida) o rapaz era António, nascido a 24 de Abril, alcunhado Comba. Para o pai, alentejano, filho de um ganhão, da fome e da vastidão lutada dos campos, o rapaz era Ernesto - por vezes Che - nascido no dia da liberdade. Quando a mãe chamava pelo filho Comba! oh Comba!, o marido grunhia num sarcasmo Tiram... Da primeira vez a mulher não se enfurecera porque não havia alcançado o trocadilho. Tiram, tiram o quê? E o marido, armado do sotaque do Alentejo profundo alisava uma quase calvície prematura. E Comba Dão? Dão o quê?
O rapaz - a quem nos referiremos assim para manter uma certa neutralidade - viveu nesta dualidade permanente: Salazar e Guevara, um minuto antes ou depois do momento que estabelece a mudança do dia. Estava escrito nos astros que se tornaria político. Era uma alma santa - o único qualificativo que unia os pais, embora o termo santa provocasse alguns calafrios num dos lados - e, por isso, nunca optou por nenhum partido. Exibia os seus atributos em casa, fosse solteiro ou, mais tarde, casado, distribuindo funções como se estivesse na presidência do conselho de ministros - ou eventualmente num comité central. A mãe tinha a pasta da educação e dos assuntos sociais, ao pai cabia-lhe as finanças e a junta nacional do vinho. Mais tarde atribuiria à mulher a pasta do turismo e o sector alimentar, reservando para si os assuntos fiscais. E a junta nacional do vinho, claro, que herdou no mesmo dia em que lhe entrou o louceiro pela porta dentro. Vivia assim, convicto da bondade das coligações, do desafio das negociações, da equidade nas responsabilidades.
A parceria funcionou durante anos, até à maioridade dos filhos. Cheia de uma espécie de síndrome do ninho vazio, a mulher dedicou-se aos estudos: num ano fez uma pós-graduação em fiscalidade e, no ano seguinte, vários cursos sobre enologia, que completava com visitas a caves e frequência de irmandades vinícolas, onde o santo e a senha se circunscreviam às castas. Alguém batia à porta e dizia touriga. Do lado de dentro, encostado a uma porta de carvalho antigo com laivos de sulfito, alguém sussurrava franca. Se fosse cabernet, a resposta certa seria sauvignon, porque se fosse trincadeira a irmandade resguardava-se, como um convento antigo ameaçado pelo infiel. Um dia, o rapaz - António ou Ernesto, 24 ou 25 de Abril, Comba ou Che - percebeu que perdera a pasta dos assuntos fiscais. Um ano depois destruía o legado da junta nacional do vinho, que também entregaria à mulher, recém-especialista em retenções na fonte e em estágios prolongados. Quando deu por si não lhe restava nenhuma responsabilidade. Perdera tudo para o parceiro de coligação.
Certo momento, a mulher não se lembrava se fora a 25 de Novembro ou a 11 de Março, recebeu um sms. O marido comunicava a sua demissão. Não tenho funções, estou imensamente cheio de um vazio enorme, como se o meu espírito albergasse um excesso de carências. Não voltarei, a minha decisão é irrevogável. Foram encontrá-lo mais tarde na África profunda - muito profunda - onde constituíra uma ONG ligada às questões conjugais. Ensinava aos casais locais a virtude da distribuição de funções - a fiscalidade, as obras públicas, a saúde, o turismo. Aos homens, de quem se aproximava com um cumplicidade toda feita do mesmo género, só dava um conselho: fiquem sempre com a junta nacional do vinho. Mas não se apeguem muito, que nunca se sabe o dia de amanhã.
JdB
* publicado originalmente a 3 de Junho de 2015
1 comentário:
Pois, como escrevi, está fadado para o conto.
Abraço
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