Há uns anos foi-me diagnosticada uma rotura de ligamentos irreversível num pé. Na minha proverbial ignorância - e até esse momento inesquecível de esclarecimento tardio - achava que ligamento era uma palavra do foro desportivo, como médio-ala, florete, falso lento e bola medicinal. Hesitei, na elaboração do rol, na utilização de fato de treino. Na verdade, já fez e talvez venha a fazer parte do vocabulário desportivo; numa dada altura, e pelos piores motivos, passou a ser incorporado na classificação vestuário, tal como calças de fantasia, cuecas, meias de cano alto ou popelina.
Regresso aos ligamentos. Surpreendeu-me o facto de também ter ligamentos, eu que tenho pelo exercício desportivo o mesmo sentimento que a natureza tem ao vácuo: uma espécie de horror. Se o facto de ter ligamentos me irmanava, ainda que numa pequeníssima fracção, aos grandes atletas, a ideia de ter uma rotura de ligamentos - e disso poder falar com um certo orgulho parcimonioso e enganador - dava-me uma determinada aura, como algo que se adquire novo mas já dotado de uma patine surpreendente e valiosa.
A honestidade não me chega por via da virtude, mas da consistência do discurso; ou seja, não minto, não porque tenha uma espécie de nojo ético à falsidade, mas porque sou fraco mentiroso. Como naquele jogo em que ganha a pessoa que estiver mais tempo sem dizer sim ou não, toda a mentira é, em mim, um esforço que denuncio sem arte nem persistência. É por isso que tenho de referir que a rotura de ligamentos não me atingiu por via do desporto, mas de um descuido: coloquei mal o pé na escada de um apartamento onde fui moderadamente infeliz; o destino puniu-me já eu me despedia da casa e, entre o pé mal colocado e a entrega da chave à senhoria, não passou mais de 1 hora. Morri na praia - de contas acertadas e um artelho torcido.
Vem tudo isto a propósito do que oiço constantemente: fulano partiu uma omoplata a fazer ciclismo de corta-mato, beltrano rachou um osso a jogar futebol, sicrano abriu a cabeça na prática violenta do ski. Ora, não me parece que alguma vez tenha ouvido que fulano partiu uma omoplata a redigir uma tese de doutoramento, beltrano rachou um osso na contemplação da suave rotina das marés, sicrano abriu a cabeça na escuta atenta de um Requiem, sobretudo se for o de Mozart. O desporto, e penso que o pensamento é cimeiro na lista dos lugares-comuns, é de uma perigosidade extrema, e o Estado deveria sobrecarregar fiscalmente os desportistas, deixando os obesos em paz na sua gordura imóvel e inócua.
Daqui por 50 anos os meus bisnetos falarão de mim com a ternura falsa que devotamos aos que não conhecemos, mas de quem nos falam com desvelo. Citarão histórias a meus respeito, repetirão com orgulho os elogios que me fizeram, e que me assentam menos por via das minhas virtudes humanas, e mais pelas minhas qualidades de vendedor de feira, perito na arte do logro. E rematarão: coitado, parece que comia carne. Perante a necessidade de pedir desculpa aos animais de terra, do ar e do mar que aquele seu antepassado deglutia com laivos de pecado, sobra-lhes o conforto de poder dizer: ao menos não fazia desporto.
Alguém inventou, como benéfica, a dieta do paleolítico. Alguém inventou, como benéfica, a prática do desporto. Comer mamutes parece ser, para alguns iluminados, uma opção de vida inquestionavelmente saudável, ainda que difícil. Para outros, o esplendor da saúde seria perseguir os ditos animais a pé, antes mesmo de os cozinhar a fogo lento. As minhas convicções de homem moderadamente esclarecido duvidam dessa dieta, como duvidam da virtude de um desporto que imprima um ritmo que acelere o coração para além do que acontece quando nos apaixonamos pela primeira vez; parece-me, aliás, do mais elementar bom senso definir esse ritmo cardíaco como um limite superior. Um dia mais tarde, creio e espero eu, se provará os enormes malefícios do desporto a não ser com uma valência de entretenimento, como ouvir a Marisol ou ler banda desenhada; um dia seremos lembrados por termos comido carne e por nos termos agitado freneticamente sem razão. Seremos, em 2069, os esclavagistas do século XXI, olhados com desdém retrospectivo.
Não serei vegetariano e não farei desporto. Sobre mim ficam memórias de carnívoro e de sedentarismo persistente. Aos meus bisnetos cabe-lhes 50% de alegria, o que já não é de deitar fora.
JdB
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