17 dezembro 2025

Vai um gin do Peter’s ?

O NATAL PEDE OLHOS PARA O IMPREVISTO

Mão amiga enviou-me o testemunho sobre um pater família extraordinário, escrito por um dos filhos mais novos, pouco depois da Partida desse pai marcante. O escrito continua em construção, a receber inúmeros contributos, enquanto uma neta resolveu passar o texto nuclear para o formato de podcast. Assim começou a revelar a vida bondosa e discretíssima do avô, que se cruzou com um mar de gente em dificuldade, desencantando soluções para problemas que não estavam ao alcance dos próprios resolver. A um fez chegar o dinheiro para poder fazer uma cirurgia urgente, a outro comida, a outro a marcação da consulta com o médico certo e a muitos sem-abrigos um cobertor quente para os proteger de mais uma noite invernosa, ao relento! Para lá das muitas pessoas ajudadas, impressiona a simplicidade discreta daquele pai e avô soft, que tive a sorte de conhecer. Era um homem de fé, muito autêntico, com imenso charme e uma boa educação transbordante de generosidade e subtileza. Adivinhava-se no seu olhar límpido e fraternal uma alma grande, embora só antevisse a ponta do “iceberg”. Descobre-se no podcast uma outra dimensão, vivida em segredo, sem que a mão esquerda soubesse o que fazia a direita.   

A aproximação da noite mais estrelada do ano quadra bem com a beleza escondida desta vida tão generosa e empenhada em socorrer quem encontrou desamparado. O filho chamou ao testemunho sobre o pai: «Legado da bondade secreta de Miguel de Almeida», contando o que viu e depois juntando os incontáveis frutos que continuam a despontar onde menos se espera: 

https://drive.google.com/file/d/1b9PJVZUkcN5mLkGnyBZM_P0-CiUsJULs/view?usp=sharing

De facto, a capacidade de amar para além do universo daqueles com quem temos afinidades, sempre tocou a humanidade, embora nem todos tenham (tenhamos) a coragem de ouvir e de responder aos gritos de socorro que nos rodeiam. 

Se há momento onde se sente a presença do amor universal é no Natal. Mas esse expoente do Amor ultrapassa a tal ponto a mente e as capacidades humanas, que se torna vertiginoso, abrindo-nos um horizonte imenso, que nos tira da nossa zona de conforto (para dizer o menos). Quase tudo no Bebé de Belém resulta paradoxal aos olhos humanos: o omnipotente assumir a vulnerabilidade humana, o eterno entrar no tempo, o imortal sucumbir à morte a que os humanos estão sujeitos, mas não os anjos, menos ainda um deus... Oscar Wilde (in “De Profundis”) considerou Cristo a figura mais revolucionária, plena e interessante da História. 

Precisamente, na arte reverbera muito do vanguardismo de Jesus, daquele que mais nos desinstala. Picasso oferece vários exemplos, como na sua tela prenunciadora do cubismo «Les demoiselles d’Avignon» (1907), que desafiou as gerações do princípio do séc. XX, exibindo com desfaçatez e despudor um grupo de prostitutas de um bordel de Barcelona. Claro que chocou a maioria, embora a sua obra possa ser vista como uma réplica modernista da frase chocante de Jesus, quando surpreendeu os Doutores da Lei e demais chefes da Sinagoga, garantindo-lhes que os cobradores de impostos (frequentemente, mercenários e corruptos) e as prostitutas iriam à sua frente para o Céu. Mas não tenhamos ilusões sobre a actualidade desta frase do Evangelho, que sempre se aplicou e aplica a muitos dos cumpridores do culto e dos preceitos religiosos. Esta imprevisibilidade, que vira do avesso os critérios meramente humanos, foi repetida por Cristo de muitos modos: nem todo o que diz, Pai, Pai, entrará no Reino dos Céus, para além da parábola do bom Samaritano (estrangeiro desconsiderado pelos judeus), que em caridade verdadeira dá mil a zero ao sacerdote e ao levita (da elite religiosa judaica)! 

Pablo Picasso (1881-1973):  «Les Demoiselles d'Avignon», 1907, tela de 244cm x 234 cm © MoMA de Nova Iorque.

O ex-galerista de arte, actualmente responsável pela Catedral de Westminter, em Londres, oferece uma interpretação deliciosa sobre a ‘tirada’ desafiante de Jesus, aparentemente, no limite do aceitável: 

«Jesus says something that must have shocked His listeners, when He tells the chief priests and elders that tax collectors and prostitutes are entering the kingdom of God ahead of them. In doing so, He overturned the usual assumptions about who was close to God and who was not. People presumed that holiness was found among the religious leaders, the outwardly respectable, those who kept the rules. Jesus suggests the opposite: that God may be at work in the very people society dismisses or judges.

We too can be so quick to judge others, especially in a religious context. It is easy to assume who is “in” and who is “out,” who is close to God and who is far away, based on what we see on the surface. Yet, only God knows the real story... the hidden battles, the quiet acts of kindness, the longing for grace that lies beneath a person’s life.

In this context, it is interesting to think of Pablo Picasso’s Les Demoiselles d’Avignon, one of the most famous and controversial depictions of prostitutes in Western art. Painted in 1907, it shows five women from a brothel in Barcelona, confronting the viewer with bold, unidealised faces and angular bodies. Picasso was not painting them to celebrate their profession, but to challenge viewers to confront the humanity often hidden behind labels, judgement, and social shame, something not unlike the very people Jesus welcomed in today's Gospel.

What shocked the art world in 1907 was not only the subject matter, but the radical way Picasso painted it. Les Demoiselles d’Avignon is considered by many to be the first great step into Cubism, the movement Picasso later developed with Georges Braque. Cubism broke away from traditional perspective; instead of showing one viewpoint, it fractured forms into sharp facets, presenting multiple angles at once. It was a way of saying that reality is more complex than a single viewpoint can capture, much like the human soul itself.

In a way, this mirrors what Jesus does in today’s Gospel: He asks us to see beyond outward appearances, to look past the labels society gives, and to recognise the dignity, depth, and sacred worth of every person, especially those whom the world is quickest to judge.» 

Do P. Patrick van der Vorst, a 16.DEZ.2025  

Meio século antes de Cristo, Heráclito (500 a.C.-450 a.C.) – filósofo pré-socrático da Grécia antiga, pai da dialética e alcunhado de “obscuro”, nomeadamente, pelos paradoxos – cumpriu a audácia dos bons pensadores, aconselhando o desconforto da busca de um horizonte mais amplo, para conseguirmos responder ao pedido de infinito que nos habita. Intuitivamente, foi arauto do maior anseio do coração humano, estranha e misteriosamente sedento de uma grandeza que não abarca. Heráclito condensou esse conselho neste aparente paradoxo: «Se não esperarmos o inesperado, não o reconheceremos.» (traduzido da citação encontrada em francês: «Si l’on n’éspère pas l’inespérable, et bien, on ne le reconnaîtra pas.»).  Em pleno séc. XX, a muito glosada (frequentemente, adulterada) frase de Camus «sejam realistas, peçam o impossível» ecoa o sábio paradoxo do grego sobre a necessidade vital de desejarmos para lá dos limites visíveis e da mera lógica comum… sob pena de nos escapar o principal. No recentíssimo filme-documentário dedicado pelo actor e realizador italiano Roberto Benigni ao seu Apóstolo preferido, S.Pedro, reitera-se a mesma ideia: «As coisas mais importantes da vida não se aprendem e não se ensinam: encontram-se».  No ano zero da era cristã, coube aos Magos a coragem de procurarem o imprevisto. Por isso, conseguiram reconhecê-Lo abrigado num casebre improvável, onde o Salvador também nos espera… se O procurarmos.  

FELIZ E SANTO NATAL a todos, 

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

Sem comentários:

Acerca de mim

Arquivo do blogue