10 fevereiro 2009

História para adiar

Aquele ventinho que anuncia o lado de lá e agita os cães encontrou-o ainda a palpitar.
A morte afinal apanha-nos vivos, descobriu.
Não lhe fixou o nome nas apresentações, mas apertou-lhe a mão estendida.
A ideia era um cumprimento rápido, mas a coisa prolongou-se.

«- Más vale que no te retrases.»

Outra descoberta: a morte, como era de esperar, falava espanhol: nem bom vento, nem bom casamento …
Sentou-se na cama escangalhada, sempre de mão dada.

«Quanto tempo temos?»

Ela remexia distraída o saco com a mão livre.

«- Já ouviu falar do Dr. José Maria? O Antunes…»

O saco continuava enorme e interessante.

«- O Dr. Antunes um dia sentiu-se mal. Estava a comer um peru e sentiu-se mal. Um peru assado.
O Dr. Antunes contou-me depois que, no momento seguinte, as pessoas estavam todas de preto e a dizer bem dele.
Diz que foi um flash só. Uma dorzita acima da barriga, as pessoas a dizer bem dele e daí a pouco já estava benzinho e de volta ao peru.
Como é? Às vezes arrependes-te? Enganas-te?»

«-Quizá. Es possible. Todo es possible.»

«- Já não lhe soube ao mesmo… Quero dizer, o peru. Disse-me o Dr. Antunes.
Certo é que, logo no dia seguinte, fez-se retratar numa estátua de tamanho natural.
Diz que ficou outro homem. Mais atento à importância relativa das coisas.
A estátua ficou muito bem no Jardim 7 de Maio. Do lado de lá do chafariz.
Que tal? Assamos um peru?»

JCN

2 comentários:

Anónimo disse...

Curiosa e interessante, esta sua história adiada.
Sim, quantos EQMs não davam um certo jeito, já agora quanto mais não fosse por "Diz que ficou outro homem. Mais atento à importância relativa das coisas."
Mas normalmente estas experiências são bastante intensas, regeneradoras, transformadoras...
Será que la mujer se arrepende, se olbida, se enternece e dá outra oportunidade? "Quizá, es possible".

Já leu o "De Profundis - valsa lenta"? JCP, na primeira pessoa.

Conheço vagamente a história do Dr. J. Mª. No ano passado estive lá no "seu sítio público" pela primeira vez, de passagem para uma terapia perto.
E na minha visita desse dia, pude ver a "devocção" ao santo materializada, sentar-me por ali, também ao lado do chafariz e da patada toda no lago.
[só ali, -e em Lisboa!- pude ver com agrado e surpresa, galos empoleirados naquelas árvores a cantar esganiçados, felizes e soltos. Seriam também prendas dos gratos? vá, lá salvou-lhes ainda a sorte de não serem perús, e despacharem-se no pulo ao poleiro.:-)]

Eu, que pouco conheço da vossa urbe, quando começaram as pausas no Largo da Boa-Hora, não sei porquê, imaginei-o logo ali, apesar depois da descrição do lugar me levar para outro lugar.
A nossa imaginação, e as voltas que ela dá.

um abraço
a.

DaLheGas disse...

lollll, que gira storia... só de pensar que tenho uma perna de peru para assar para o jantar. chegarei a logo? mas é uma pequena perninha :)

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