Cada um dos meus colegas bloguistas que aqui escreve deixa um bocado de si. Escrevemos para nos entretermos, para partilharmos, para nos revelarmos, para aprendermos, para rirmos, para chorarmos, para tudo nos ser indiferente ou nos tocarmos com as palavras dos outros. Hoje escrevo, sobretudo, para mim, e para aqueles que, mais íntimos, me conhecem o suficiente para perceberem o que está por detrás deste texto.
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Ontem, há oito anos, ia pela primeira vez ao 12 de Maio em Fátima. 2001 foi um tempo intenso - o ano de todas as tristezas, de todos os sufocos, de todas as angústias. Mas, também, de todas as revelações e de todas as esperanças. Ontem, há oito anos, erguia uma vela igual à que ergui agora. Apesar de todas as diferenças, saíu-me da alma o mesmo fervor: rogai por nós, que recorremos a vós. Ontem, há oito anos, mas também ontem, simplesmente, houve algo que se renovou cá dentro, como se se desse início a uma nova paz, sincera e duradoura, que nos abre mais uma porta para o lado luminoso da vida.
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(...) A quinze metros de mim, não mais, um grupo de peregrinos, tão igual e tão diferente de tantos outros, chamou a minha atenção. Eram pessoas relativamente novas, dos seus quarenta e poucos anos, com crianças de várias idades. Dei por mim a fixar a vista num pai que levava uma filha aos ombros. Porquê, não faço ideia. Não havia nada naquele quadro que merecesse uma atenção especial ou mais demorada. Um olhar farol sobre o recinto mostraria com certeza inúmeros pais com filhos ao colo, aos ombros, às cavalitas. Porquê aquele, meu Deus? Enfim, mistérios da mente para os quais nem sempre temos explicação. Alguém que estava ao meu lado apercebeu-se da minha curiosidade e murmurou-me ao ouvido, entre duas Ave-Marias, a história daqueles personagens anónimos. Confesso que fiquei perturbada. Não só porque a minha cabeça, dos milhares e milhares de peregrinos que ali estavam, se fixou especificamente naqueles – que quem estava comigo conhecia -, mas também pela própria história. Na realidade, há acasos na vida de uma pessoa que, de tão extraordinários, mais vale ficaram sem um entendimento lógico que lhes tire o encanto.
O terço continuava, rezado em várias línguas, dez ou doze nacionalidades irmanadas na mesma fé que não olha a fronteiras nem a classes sociais. Deixei-me ir embalada naquela ladainha, mistério após mistério, Ave-Maria, Pai-Nosso, um sem fim de orações com os dedos a percorrerem lentos as contas do Rosário. A minha mente era uma confusão de sentimentos, as ideias como bolas percorrendo anarquicamente uma mesa de bilhar. Era a angústia devido ao estado de saúde do Joaquim, o pensamento desesperado ‘faço tudo o que for preciso para o salvar’, lado a lado com uma imensa perturbação por não saber com exactidão o que ali estava a fazer, as dúvidas de fé a contribuírem para o desassossego do espírito.
Findo o terço começou a procissão da velas, um dos momentos altos da Fátima do 13 de Maio. O andor continuava o seu percurso pelo recinto e, ao som de cada refrão, os peregrinos sentiam seguramente o mundo inteiro mais iluminado, vela ao alto, corações ao alto, os olhos postos no andor e a alma no Céu. Entrei mais uma vez naquele ritual de fé, como se quisesse mostrar a Nossa Senhora que eu estava ali, que precisava dela, sem na realidade ter uma opinião muito definida do seu verdadeiro poder e da sua influência na minha vida. ‘Rogai por nós que recorremos a vós’.
A minha atenção dividia-se de uma maneira quase ostensiva entre o ponto onde se encontrava a imagem de Nossa Senhora e aquele quadro familiar que, indiferente ao meu olhar e à minha curiosidade, prosseguia a sua jornada de devoção. O pai mantinha a filha aos ombros, esquecendo possivelmente o esforço físico, subjugado por um peso muito mais difícil de suportar. Mesmo na escuridão da noite iluminada por uma miríade de velas, consegui olhar ambos nos olhos. Surpreendeu-me como lhes consegui ver – no mesmo instante - o sofrimento e a esperança, a angústia e a confiança. Uma mistura de sentimentos que eu admitia não conseguir vislumbrar em toda a sua dimensão faltando-me, claramente, a experiência da maternidade para sentir o que é o verdadeiro amor por um filho. Naquela imagem tão singela estava o esplendor e a miséria das nossas vidas, o princípio e o fim de tudo. ‘Ave, Ave, Ave Maria’, pai e filha elevavam os braços e imagino que ambos gostariam, na diferença do entendimento de cada um, que o andor se voltasse para eles, que Nossa Senhora lhes desse um sinal – ainda que imperceptível para todos os outros – que os tinha visto e que tomaria conta deles. Para sempre.
Impressionou-me este encontro. Os olhos mareados de dor e esperança do pai, o olhar espantado, confuso e fascinado da criança agarrada com determinação a quem a suportava, como se quisesse imortalizar aquele abraço, validá-lo pela presença da Mãe de Cristo. (...)
(Excertos do livro Deus pregou-me uma partida, do editor e dono deste estabelecimento e de Rita Jonet, Edições Lucerna, 2005)
5 comentários:
Não a conheço, nem sei a mensagem deste texto, mas prezumo que seja de algum sofrimento.
Também não li o livro a que se refere e até desconhecia a sua existência.
Só deixo uma palavra, obrigada por este texto, foi com imenso prazer que o li e reli.
Bem-haja a quem escreve tão bem e tem sentimentos tão intensos, pois dentro da sua dor, ainda conseguiu olhar para o lado.....
Até sempre.
fiquei comovida. é lindíssima uma Fé espelhada assim. mas tão importantes quanto, ou derivadas de, são as luzes que se acendem em nós. mas mais: deliciosa, suave, meiga, protectora a imagem de Nossa Senhora que peregrina no meio da multidão ... que bonita e delicada fotografia.
Cris: Obrigado pela visita. Ontem, mas há oito anos, foi um dia cheio de contradições. Mas não é isso a nossa vida? A esperança e o desalento, a dor e a alegria, tudo misturado na mesma alma?
Anónima: agradecimento igual. De facto, ninguém fica indiferente à procissão das velas. eu que o diga...
Sincronicidades...
Há vários dias que não vinha aqui mas ontem à noite, depois de ter ido dia 12 a Fátima, resolvi ir ao livro reler esta passagem... Hoje, quando a li aqui, "recompreendi" o serendipismo.
Beijinhos
Não sei definir esse sentimento, não tenho nem desejo
essa experiência/perda
apenas me posso dizer solidária perante alguém que a teve
e, independentemente da falta, do desgosto, da saudade(...) sei o que me ajudaria a suporta-la, de acordo com as convicções pessoais com que oriento a vida
um dia Alguém me disse :"a vida é uma festa, e estão sempre a entrar e sair pessoas"
e é de contraditórios sentimentos que compomos esta nossa vida, e de contraditórios momentos que sentimos a nossa fragilidade/força, e nos impelem a continuar, enquanto existir algum sopro de vida.
e aquele abraço, e aqueles momentos,e muitos outros, ficarão gravados na sua pele enquanto viver, e serão refúgio e abrigo sempre que precisar
o Amor é assim
a.
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