Que me dás tu de bom, ó Lisboa, sua revoada? Que me dás de bom, senão ventanias cheias de saudade? A mesma ventania que te levou a canastra, o lenço, que escorraçou as fragatas e os corvos negros do cais. A barra vazia, o porto mais triste do que nos dias em que via partir tudo e todos. Sempre as mesmas saudades, dos mesmos lugares, nos próprios lugares. Saudades de ti, mesmo que em ti esteja, ó sorte maldita. Inveja raivosa de dias passados, das ocasiões que te palmilhei. Nem sei se enruguei à conta de ti, traquina. Desço-te ao Camões saudosa das vezes, de todas as vezes que já o desci. Passo a Madragoa e não vejo guitarra, nem água furtada, nem janela florida, nem pregão nenhum. Mas insistes que existem todas essas graças pelas tuas ruas. Gritas, aflita, que tens boa voz, que tocas trinado, que como tu não há. Tens uma mania e eu vou caminhando com ela no peito. Dás comigo em doida, tão depressa que chegas ao meu velho jeito. Raposa velhaca, tu sabe-la toda, sabes que me picas. Deixo-me levar nessa ventania que adoras soprar sobre as minhas costas, mostrando-me o tempo em que fui ingénua. Também tu já foste…
Mas há dias senhores, que eu não te aturo, mesmo que tu queiras. Há dias que fujo pró teu lado norte a ver se me curo. Escondo-me de ti em qualquer taberna, numa casa velha, no beco mais escuro. Que mal fiz a Deus que me topas sempre onde quer que esteja? Não posso sozinha correr ao Castelo que hás-de vir também… mulher do Diabo, omnipresente no meu pensamento, sempre à minha frente. Valha-te este tempo com que te disfarças à conta de Santos. Valha-me um copinho para matar a sede com que tu me deixas. Valha-me esta festa e o calor das marchas e o manjerico e mais uma ginja que me afogue as mágoas. Ai Lisboa tonta que eu sem ti morria e não levava nada. Nem uma agonia nem uma alegria para contar no céu. Viva o Santo António, esse mártir teu, que bem te conhece. Não sabe outra coisa senão o teu molde e era franciscano, é a tua sorte. Corre o céu coitado em prece sentida, não vá o São Pedro fazer-lhe a partida. Ah, Lisboa emproada, como tu és bela nos meses de Junho. Como tu te enfeitas, como te ajeitas, dás cabo de mim. Hás-de m’enterrar e fazer o mesmo a outros que venham. Quero lá saber, tu já foste minha, isso é que me importa e bem posso morrer.
Não me dês ouvidos, Lisboa, vamos esquecer. Quero convidar-te para este ano seres minha rainha. Vem bailar comigo nesses arraiais até de manhãzinha. Vamos beber vinho e comer sardinha, depois na Avenida é aquele furor. É o nosso povo e a sua voz a cantar amor. E é o cavalinho sempre a acompanhar, dá-me esse gostinho, só por uma vez. Dizes-me que não? Quem sabe, talvez…? Maria-papoila, és é uma atrevida. Sabes tu mais qu’eu sobre a minha vida. Escabichas tudo, porque me conheces, que alcoviteira, e eu parva ‘inda digo. O que queres ouvir o que queres saber, e ficas-te a rir. Mal sabes tu no entanto que eu gosto de ver esse teu regalo, p’ra mim um encanto. Ri Lisboa ri que quem ri por último é que ri melhor. Fazes-te de cara, só porque és airosa e eu pinga-amor. Se não vens comigo, deixa-me correr esses bairros teus que tanto apregoas – sou a Mouraria, a Alfama velhinha, sou a Madragoa… Vaidosa. Hei-de atravessá-los mesmo que te doa.
Ficas a saber que há gente de fora que vem ver as Marchas. Gente de outras terras muito bem capazes de me distrair. De me diluir esta obsessão que tenho por ti. E de lés a lés hei-de provocar-te insónias seguidas. ‘Inda te vou ver no Martim Moniz meia às escondidas, a pedir ajudas à Senhora da Saúde por mor das mordidas. Tadinha de ti, eterna gaiata, salta-pocinhas, ingrata. Toma lá cuidado com aquilo que dizes a essa Senhora. Olha que não tem a mesma paciência de Santo Antoninho, que aqui entre nós há muito que anda também p’lo beicinho. E ela não é burra, sabe bem que as dores são de cotovelo. Que o que tu tens, nas ventas, é pêlo. Estás enciumada e ‘inda te sujeitas a cumprir a pena que ela te ditar. Vires ao pé de mim e pedir desculpa para compensar.
E aí, Lisboa… vou olhar pra ti e vou-me encolher de arrependida. E vou-me entregar moendo as lembranças, as melhores lembranças desta nossa vida. Dos dias que foste a minha companhia numa solidão que ninguém entendia. Entendias tu quando me atiravas o riso mais terno que já conheci. E davas-me o céu e a brisa do mar… chamavas o sol e as gaivotas para eu me alegrar. Ali no Terreiro, no cais das colunas, mostravas-me o Tejo, leal companheiro. E chorando à mesma que não sossegava, fazias-me entrar em qualquer cacilheiro a ver se embalava. E no meio do rio o último soluço. Porque ao ver-te assim, Lisboa, eu sentia uma esperança. Eras tu inteira diante de mim. Que arrependimento, que nó na garganta, eu perdoo-te tudo cidade. Deixa lá as desculpas que os teus pecados são tão pequeninos. Eu sei que às vezes tu já não me ligas, mas não é desprezo. Tens em que pensar, andam-te a mudar, estás atordoada. Perdes a cabeça com tanta importância que o mundo te dá. Ficas deslumbrada com o que quer de ti essa gente fina. Apagam-te o tempo que em não passavas de uma só colina. E eras povo corajoso, marinheiro, eras varina. Tens alguma dúvida que é desse teu jeito que a gente mais gosta? Pergunta na rua Lisboa, pergunta na rua. Qual é a luz que melhor os alumia. Qual é a Festa que os faz mesmo vibrar. Continua Lisboa, continua. Continua a apregoar com o mesmo ar. E faz sonhar essa gentinha que te vem ver, deixa a alma alfacinha perdurar. Quero lá saber que seja mentira. Quero lá saber. Tu não podes é morrer.
Mas há dias senhores, que eu não te aturo, mesmo que tu queiras. Há dias que fujo pró teu lado norte a ver se me curo. Escondo-me de ti em qualquer taberna, numa casa velha, no beco mais escuro. Que mal fiz a Deus que me topas sempre onde quer que esteja? Não posso sozinha correr ao Castelo que hás-de vir também… mulher do Diabo, omnipresente no meu pensamento, sempre à minha frente. Valha-te este tempo com que te disfarças à conta de Santos. Valha-me um copinho para matar a sede com que tu me deixas. Valha-me esta festa e o calor das marchas e o manjerico e mais uma ginja que me afogue as mágoas. Ai Lisboa tonta que eu sem ti morria e não levava nada. Nem uma agonia nem uma alegria para contar no céu. Viva o Santo António, esse mártir teu, que bem te conhece. Não sabe outra coisa senão o teu molde e era franciscano, é a tua sorte. Corre o céu coitado em prece sentida, não vá o São Pedro fazer-lhe a partida. Ah, Lisboa emproada, como tu és bela nos meses de Junho. Como tu te enfeitas, como te ajeitas, dás cabo de mim. Hás-de m’enterrar e fazer o mesmo a outros que venham. Quero lá saber, tu já foste minha, isso é que me importa e bem posso morrer.
Não me dês ouvidos, Lisboa, vamos esquecer. Quero convidar-te para este ano seres minha rainha. Vem bailar comigo nesses arraiais até de manhãzinha. Vamos beber vinho e comer sardinha, depois na Avenida é aquele furor. É o nosso povo e a sua voz a cantar amor. E é o cavalinho sempre a acompanhar, dá-me esse gostinho, só por uma vez. Dizes-me que não? Quem sabe, talvez…? Maria-papoila, és é uma atrevida. Sabes tu mais qu’eu sobre a minha vida. Escabichas tudo, porque me conheces, que alcoviteira, e eu parva ‘inda digo. O que queres ouvir o que queres saber, e ficas-te a rir. Mal sabes tu no entanto que eu gosto de ver esse teu regalo, p’ra mim um encanto. Ri Lisboa ri que quem ri por último é que ri melhor. Fazes-te de cara, só porque és airosa e eu pinga-amor. Se não vens comigo, deixa-me correr esses bairros teus que tanto apregoas – sou a Mouraria, a Alfama velhinha, sou a Madragoa… Vaidosa. Hei-de atravessá-los mesmo que te doa.
Ficas a saber que há gente de fora que vem ver as Marchas. Gente de outras terras muito bem capazes de me distrair. De me diluir esta obsessão que tenho por ti. E de lés a lés hei-de provocar-te insónias seguidas. ‘Inda te vou ver no Martim Moniz meia às escondidas, a pedir ajudas à Senhora da Saúde por mor das mordidas. Tadinha de ti, eterna gaiata, salta-pocinhas, ingrata. Toma lá cuidado com aquilo que dizes a essa Senhora. Olha que não tem a mesma paciência de Santo Antoninho, que aqui entre nós há muito que anda também p’lo beicinho. E ela não é burra, sabe bem que as dores são de cotovelo. Que o que tu tens, nas ventas, é pêlo. Estás enciumada e ‘inda te sujeitas a cumprir a pena que ela te ditar. Vires ao pé de mim e pedir desculpa para compensar.
E aí, Lisboa… vou olhar pra ti e vou-me encolher de arrependida. E vou-me entregar moendo as lembranças, as melhores lembranças desta nossa vida. Dos dias que foste a minha companhia numa solidão que ninguém entendia. Entendias tu quando me atiravas o riso mais terno que já conheci. E davas-me o céu e a brisa do mar… chamavas o sol e as gaivotas para eu me alegrar. Ali no Terreiro, no cais das colunas, mostravas-me o Tejo, leal companheiro. E chorando à mesma que não sossegava, fazias-me entrar em qualquer cacilheiro a ver se embalava. E no meio do rio o último soluço. Porque ao ver-te assim, Lisboa, eu sentia uma esperança. Eras tu inteira diante de mim. Que arrependimento, que nó na garganta, eu perdoo-te tudo cidade. Deixa lá as desculpas que os teus pecados são tão pequeninos. Eu sei que às vezes tu já não me ligas, mas não é desprezo. Tens em que pensar, andam-te a mudar, estás atordoada. Perdes a cabeça com tanta importância que o mundo te dá. Ficas deslumbrada com o que quer de ti essa gente fina. Apagam-te o tempo que em não passavas de uma só colina. E eras povo corajoso, marinheiro, eras varina. Tens alguma dúvida que é desse teu jeito que a gente mais gosta? Pergunta na rua Lisboa, pergunta na rua. Qual é a luz que melhor os alumia. Qual é a Festa que os faz mesmo vibrar. Continua Lisboa, continua. Continua a apregoar com o mesmo ar. E faz sonhar essa gentinha que te vem ver, deixa a alma alfacinha perdurar. Quero lá saber que seja mentira. Quero lá saber. Tu não podes é morrer.
DaLheGas
4 comentários:
DaLheGas,
Parabéns por este texto, este grande tributo a Lisboa.
É pena que os Portugueses, não tratem tão bem da Cidade como por exemplo os Parisienses, pois cada "Maire", que passa pela Camara de Paris, faz questão de deixar feita uma obra notável.
Cabe também a cada um de nós não deixar morrer Lisboa.
Obrigada. Até sempre.
ai mulher alfacinha, ladina, que bem escreves tu sobre esta cidade que, de si, já vaidosa, se apregoa beldade e se diz orgulhosa da sua celebridade e da sua luz radiosa.
Dalhe, parabéns por este excelente texto.
Obrigada Cris e Maf. Velho texto este. Escrevi em 2003 para a revista Blue Living. Postei para não se esquecerem de ir gozar a romaria que se avizinha. E já vi a marcha de Alcântara a ensaiar. Parece uma miragem ve-los ali a rodopiarem num recinto ao ar livre contíguo à avenida de Ceuta. Homens, mulheres e crianças. Ainda há gente com sangue na guelra.
Soberbo.
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