Há dias assim, em que somos tomados pela tristeza, encarcerados na melancolia, abatidos pelo desânimo.
São dias negros, cujo breu cobre e cega os nossos olhos, de nada valendo o esforço do sol para nos devolver a luminosidade, ou o azul do céu para nos serenar.
Sentimo-nos prostrados na enxovia da infelicidade, em tormentosa solidão que nenhum carinho consegue apartar.
Tudo nos surge como vão, inútil, despiciendo, inconsequente.
São as trevas em que caímos.
Estes dias de agonia surgem como resultado de certo percurso que tentarei denunciar nesta reflexão, como alerta à navegação.
Normalmente, as “trevas” só ocorrem em tempos de vazio de acontecimentos, em momentos nos quais a vida crucial está omissa, suspensa, ou seja, quando não estamos absorvidos, dedicados, consumidos, em relevantes feitos ou dolorosos tormentos.
Os eventos importantes, sejam positivos ou negativos, determinam-nos à reacção, ao confronto com eles, ao seu desfrute ou combate. A respectiva iminência e vivência esgotam a disponibilidade e a capacidade de todo o nosso ser, não havendo distracção possível.
Como animais que somos, essa ocorrências, de gratificação ou de agressão, são nexo de causalidade para a acção, e não para o processo que é pressuposto do estado de “trevas” que abordo.
Mas esse hiato, essa falta de acontecimentos ou desafios relevantes, não é, em absoluto, suficiente, pois a regra é os tempos de vulgaridade e rotina decorrerem serenamente, em paz, sem vislumbre das garras das trevas. O intervalo é condição necessária, mas não bastante.
O que passo a descrever é algo de complexo, mas que acredito sucede efectivamente, pois cada um de nós é intérprete dos mais extraordinários processos de vivência psicológica, os quais ocorrem quando e onde menos se podem esperar, e a que nenhum de nós está imune.
Assim, o primeiro passo para as “trevas” é acontecer-nos um episódio de metamorfose, em que, durante esse episódio, nos transformamos de seres sociais, originados e vocacionados para os outros, em entidades isoladas, como ostras fechadas na sua concha. Quebramos todas as amarras com os outros, despojamo-nos deles, ignoramos a sua existência, função, importância, apagamos sentimentos, afectos, compromissos, num percurso egocêntrico que culmina com o olhar, o confronto exclusivo de eu próprio comigo mesmo, numa solidão absoluta.
Concluído esse desprendimento dos outros, segue-se o segundo passo, que consiste em dividirmos o eu em dois, em que um deles será o observado e o outro observador. Acontece, pois, um desdobramento, em que do uno resultam dois entes: um é destinado a jazer na pedra fria da mesa de observações e o outro a assumir-se como o catedrático patologista que autopsiará o primeiro.
O terceiro passo será, pois, a autópsia, cujo resultado, antecipo desde já, será inevitavelmente a queda nas “trevas”.
Com efeito, o catedrático observador vai adoptar critérios de análise científicos e objectivos, desconsiderando qualquer circunstância específica e particular do observado. Vai seguir cânones de avaliação desumanizados, no sentido de não atinentes ao caso concreto em observação, mas sim conformes à teoria geral e pelo uso da razão pura.
Como tal, todas as imperfeições, defeitos, incapacidades, erros cometidos, falhanços, oportunidades perdidas, frustrações do observado são identificadas, descritas, denunciadas, severa e implacavelmente, originando um relatório condenatório demolidor, porque a sua objectividade não consente o respectivo enquadramento nas circunstâncias específicas, reais e históricas em que sucederam.
Do mesmo modo, as virtudes, aptidões, talentos, potencialidades e outras benesses, são objecto de igual tratamento, culminando com o confronto entre o que teria ou deveria ter sucedido e o que sucedeu de facto; entre a obra que poderia ter sido e a obra feita, sendo evidente que o juízo é necessariamente negativo, pois o conseguido fica, em todos nós, muito aquém do potencial de realização.
Ora, no fim desta sessão, o eu faz o caminho de reunificação no uno e de reencontro com os outros e depara-se, confronta-se com um relatório sobre si mesmo, sobre a sua vida, sobre o seu caminho, que o arrasa e condena por acumulador de erros e falhanços, esbanjador de oportunidades, e artífice de obra pequena e banal, senão mesmo medíocre.
É então que as trevas lançam as garras e arrastam o eu para as suas profundezas.
Sofre-se por um passado demasiadamente maculado e improdutivo, desdenha-se o presente por insignificante e irrisório, e teme-se o futuro por se antever continuidade do mal que é o todo.
No fim, e a culminar, tem-se saudades de si próprio.
Tristeza mais profunda não há que a provinda desta descrença em si mesmo.
Este texto é uma tentativa de encontrar a “chave” para explicar certos estados de depressão que, como escrevo, podem radicar no descrito processo de isolamento do eu, na sua “desconstrução” e subsequente sujeição a julgamento cego, demasiado crítico, exigente, baseado em paradigmas e postulados, fora do enquadramento na realidade que é cada um de nós, com as suas vicissitudes e circunstâncias próprias.
Para mim, tento evitar estes caminhos, radicais, perigosos e opressivos. “Não me desconstruo”, antes, sem prejuízo do constante exame de consciência – que é coisa diversa – procuro aceitar-me e conformar-me com as minhas misérias e grandezas, pecados e virtudes, erros e méritos, confiando que a vida é sempre mais leve, doce, suave e boa do que esses “exames” a mostram, porque o amor, o perdão e a esperança permitem-nos o reerguer quando caímos, a tolerância, a benevolência e a bondade avaliam justamente a obra feita, e a fraternidade, a solidariedade e a sabedoria apontam o bom caminho para o futuro.
ATM
São dias negros, cujo breu cobre e cega os nossos olhos, de nada valendo o esforço do sol para nos devolver a luminosidade, ou o azul do céu para nos serenar.
Sentimo-nos prostrados na enxovia da infelicidade, em tormentosa solidão que nenhum carinho consegue apartar.
Tudo nos surge como vão, inútil, despiciendo, inconsequente.
São as trevas em que caímos.
Estes dias de agonia surgem como resultado de certo percurso que tentarei denunciar nesta reflexão, como alerta à navegação.
Normalmente, as “trevas” só ocorrem em tempos de vazio de acontecimentos, em momentos nos quais a vida crucial está omissa, suspensa, ou seja, quando não estamos absorvidos, dedicados, consumidos, em relevantes feitos ou dolorosos tormentos.
Os eventos importantes, sejam positivos ou negativos, determinam-nos à reacção, ao confronto com eles, ao seu desfrute ou combate. A respectiva iminência e vivência esgotam a disponibilidade e a capacidade de todo o nosso ser, não havendo distracção possível.
Como animais que somos, essa ocorrências, de gratificação ou de agressão, são nexo de causalidade para a acção, e não para o processo que é pressuposto do estado de “trevas” que abordo.
Mas esse hiato, essa falta de acontecimentos ou desafios relevantes, não é, em absoluto, suficiente, pois a regra é os tempos de vulgaridade e rotina decorrerem serenamente, em paz, sem vislumbre das garras das trevas. O intervalo é condição necessária, mas não bastante.
O que passo a descrever é algo de complexo, mas que acredito sucede efectivamente, pois cada um de nós é intérprete dos mais extraordinários processos de vivência psicológica, os quais ocorrem quando e onde menos se podem esperar, e a que nenhum de nós está imune.
Assim, o primeiro passo para as “trevas” é acontecer-nos um episódio de metamorfose, em que, durante esse episódio, nos transformamos de seres sociais, originados e vocacionados para os outros, em entidades isoladas, como ostras fechadas na sua concha. Quebramos todas as amarras com os outros, despojamo-nos deles, ignoramos a sua existência, função, importância, apagamos sentimentos, afectos, compromissos, num percurso egocêntrico que culmina com o olhar, o confronto exclusivo de eu próprio comigo mesmo, numa solidão absoluta.
Concluído esse desprendimento dos outros, segue-se o segundo passo, que consiste em dividirmos o eu em dois, em que um deles será o observado e o outro observador. Acontece, pois, um desdobramento, em que do uno resultam dois entes: um é destinado a jazer na pedra fria da mesa de observações e o outro a assumir-se como o catedrático patologista que autopsiará o primeiro.
O terceiro passo será, pois, a autópsia, cujo resultado, antecipo desde já, será inevitavelmente a queda nas “trevas”.
Com efeito, o catedrático observador vai adoptar critérios de análise científicos e objectivos, desconsiderando qualquer circunstância específica e particular do observado. Vai seguir cânones de avaliação desumanizados, no sentido de não atinentes ao caso concreto em observação, mas sim conformes à teoria geral e pelo uso da razão pura.
Como tal, todas as imperfeições, defeitos, incapacidades, erros cometidos, falhanços, oportunidades perdidas, frustrações do observado são identificadas, descritas, denunciadas, severa e implacavelmente, originando um relatório condenatório demolidor, porque a sua objectividade não consente o respectivo enquadramento nas circunstâncias específicas, reais e históricas em que sucederam.
Do mesmo modo, as virtudes, aptidões, talentos, potencialidades e outras benesses, são objecto de igual tratamento, culminando com o confronto entre o que teria ou deveria ter sucedido e o que sucedeu de facto; entre a obra que poderia ter sido e a obra feita, sendo evidente que o juízo é necessariamente negativo, pois o conseguido fica, em todos nós, muito aquém do potencial de realização.
Ora, no fim desta sessão, o eu faz o caminho de reunificação no uno e de reencontro com os outros e depara-se, confronta-se com um relatório sobre si mesmo, sobre a sua vida, sobre o seu caminho, que o arrasa e condena por acumulador de erros e falhanços, esbanjador de oportunidades, e artífice de obra pequena e banal, senão mesmo medíocre.
É então que as trevas lançam as garras e arrastam o eu para as suas profundezas.
Sofre-se por um passado demasiadamente maculado e improdutivo, desdenha-se o presente por insignificante e irrisório, e teme-se o futuro por se antever continuidade do mal que é o todo.
No fim, e a culminar, tem-se saudades de si próprio.
Tristeza mais profunda não há que a provinda desta descrença em si mesmo.
Este texto é uma tentativa de encontrar a “chave” para explicar certos estados de depressão que, como escrevo, podem radicar no descrito processo de isolamento do eu, na sua “desconstrução” e subsequente sujeição a julgamento cego, demasiado crítico, exigente, baseado em paradigmas e postulados, fora do enquadramento na realidade que é cada um de nós, com as suas vicissitudes e circunstâncias próprias.
Para mim, tento evitar estes caminhos, radicais, perigosos e opressivos. “Não me desconstruo”, antes, sem prejuízo do constante exame de consciência – que é coisa diversa – procuro aceitar-me e conformar-me com as minhas misérias e grandezas, pecados e virtudes, erros e méritos, confiando que a vida é sempre mais leve, doce, suave e boa do que esses “exames” a mostram, porque o amor, o perdão e a esperança permitem-nos o reerguer quando caímos, a tolerância, a benevolência e a bondade avaliam justamente a obra feita, e a fraternidade, a solidariedade e a sabedoria apontam o bom caminho para o futuro.
ATM
7 comentários:
Gostei e muito. A vida é mesmo assim e estes momentos, quando bem geridos, criam e reforçam os alicerces da nosa existência.
Parabéns.
moc
Como descrever o encantamento que estes quadros de experiencias humanas nos proporcionam.
Dos seus textos, de todos eles sobressaem a mesma força de caráter, o mesmo apuro tecnico, a mesma reconhecível assinatura.
Registo a chave da solução, "não me desconstruo" aceitando todas as miserias e virtudes e seguindo confiando...porque afinal a vida é muito mais simples e infinitamente bela.
Morrer e esperar que das trevas nasça a luz. E ela vem, sempre com mais brilho. Hoje levo menos tempo no processo. Cansa-me um estado moribundo prolongado e sei que amanhã o filme seguirá outro guião. A vida é muito efémera. Nada permanece igual. Aleluia, aleluia :)
ATM, a boa notícia é que até as trevas têm fim. Eu, quando entro em fase de trevas, digo a mim própria "aguenta-te, aguenta-te quietinha, sossegadinha, que assim como vieram, também hão-de ir !".
Cheer up, que a vida são 2 dias.
ATM,
Fomos criados, como seres inteligentes para sabermos lidar com a constante metamoforse.
A desconstrução é natural.
È na construção que devemos aperfeiçoar, pois se descemos às trevas, é porque era absolutamente necessário naquele momento da nossa existência metafísica.
Para escrever o que escreveu, e profundo em analise, não está em constante processo de construção? Pois para chegar aqui teve de se desconstruir muitas vezes.
Penso que não teria esta construção há 10, pois ainda não estaria preparado.
Já foi ver a sua Árvore, esta semana?
Até para a semana
Há estados depressivos e depressões, ATM. A meu ver. Os primeiros têm a ver com o que já foi referido acima e são um passo a mais, e fundamental, no nosso caminho metafísico e de descoberta individual. Estados esses que podem durar anos, a bem dizer. As depressões, provenientes de uma qualquer carga genética, de uma qualquer fragilidade de nascença que pode ou não ser agravada com a vida e o seu percurso, são outra coisa. Deste tipo de depressão padece-se a vida inteira. Há altos e há baixos, mas é uma fragilidade que está sempre lá, no fundo de nós, à espreita para vir ao de cima ... Não há positivismo, bondade, confiança, fé, esperança que valham.
Mas obrigada por mais um texto muito bem construído. pcp
A 'descontrução', é perigosa, sim.
Fases de morte e renascimento, são constantes ao longo do caminho. Mas não implicam a anulação do eu.
Mas de facto, só nos aceitando como um todo, com tudo o que temos de belo e feio, poderemos seguir.
Só aceitando a nossa falibilidade, podemos não nos colocar em patamares de perfeição que não temos que ter, ainda que tudo possamos em consciência alerta fazer, para que essas fasquias de exigência, possam ser superadas, e possamos subir outros degraus.
Temos valor (TODOS), temos capacidades, temos defeitos, temos fraquezas, temos vontades, temos talentos,e temos que nos valorizar pelo bom/belo/... que somos, amando-nos na nossa fragilidade, fortificando-nos nessa mesma fragilidade.
A chave estará algures em fazer desaparecer em nós a ideia de que não somos, não temos, não fazemos, não conseguimos, não abc...
A chave estará na afirmação diária do: 'Eu sou..., eu consigo, eu realizo, eu tenho, eu construo, EU SOU ALEGRIA, AMOR, SOLIDARIEDADE, ESPERANÇA, .........
a.
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